A
noite foi longa e, com os pensamentos de Clay, escandalosa.
Em
determinado momento, ele se levantou para ir ao banheiro e topou com
o Assassino, quase engolido pelo sofá. Soterrado por livros e
diagramas.
Ficou
de pé ao lado dele por um tempo.
Olhou
para os livros e as plantas baixas no peito do Assassino. Parecia que
a ponte era seu cobertor.
Então
chegou a manhã — uma manhã que de manhã não tinha nada, pois
eram duas da tarde quando Clay despertou no susto, o sol agarrado em
seu pescoço como Heitor, uma imensa presença no quarto.
Levantou-se
mortificado; cambaleou. Não, não. Onde está ele? Apressado, foi
aos tropeços até a porta da frente, saiu de casa e parou na
varanda, de pijama. Como pude dormir tanto?
— Olá.
O
Assassino o observava.
Tinha
acabado de chegar pela lateral do terreno.
***
Clay
se vestiu, e então os dois se sentaram à mesa da cozinha; dessa
vez, ele comeu. O relógio preto e branco do fogão antigo mal tinha
acabado de passar das 2:11 para 2:12, e Clay já estava terminando de
comer algumas fatias de pão e um bom punhado de ovos assassinos.
— Coma
mais. Você vai precisar de muita força.
— O
quê?
O
Assassino continuou mastigando, parado ali, sentado de frente para
ele.
Será
que estava omitindo alguma coisa de Clay?
Sim.
Gritos
durante a manhã inteira.
Enquanto
dormia, ele gritou o meu nome.
***
Um
sono exagerado, e já fiquei para trás.
Esse
era o pensamento que não saía da cabeça de Clay enquanto comia a
contragosto — e decidiu que faria de tudo para se livrar daquilo.
Pão
e palavras.
— Não
vai acontecer de novo.
— O
quê?
— Nunca
durmo tanto assim. Na verdade, mal durmo.
Michael
sorriu; sim, ele era mesmo o Michael. Será que o sangue vital do
passado estava voltando a correr em suas veias? Ou era só impressão?
— Está
tudo bem, Clay.
— Mas
não... ah... meu Deus!
Ele
deu um pulo da cadeira, levando a mesa junto com o joelho.
— Clay...
por favor...
Pela
primeira vez, meu irmão observou o rosto diante de si. Era uma
versão mais velha de mim, mas sem o fogo nos olhos. No entanto, o
resto, desde o cabelo preto até o próprio cansaço, era igual.
Então,
Clay afastou a cadeira, dessa vez como manda a educação, mas o
Assassino estendeu a mão, pedindo:
— Espera.
Clay,
contudo, estava pronto para sair, e não só da cozinha.
— Não
— falou. — Eu...
Outra
vez a mão. Calejada e gasta. Mãos de trabalhador. Acenou, como se
quisesse espantar uma mosca de um bolo de aniversário.
— Shh.
O que você acha que vai encontrar lá fora?
Ou
seja:
O
que foi que trouxe você aqui?
Tudo
que Clay conseguia ouvir eram os insetos. A nota única.
E
então o pensamento de algo grandioso.
Levantou-se,
debruçando-se na mesa. Mentiu, dizendo:
— Não
há nada lá fora.
O
Assassino não engoliu aquilo.
— Não,
Clay, essa coisa trouxe você até aqui, mas você está com medo,
então é mais fácil ficar aí sentado e discutir comigo.
O
garoto se empertigou.
— De
que merda você está falando?
— Só
estou dizendo que está tudo bem... — A voz de Michael morreu
enquanto ele analisava com atenção um garoto que não conseguia
tocar ou alcançar. — Não sei bem quanto tempo você passou lá
fora, entre aquelas árvores, mas se saiu de lá para vir até aqui,
deve ter sido por um bom motivo...
Meu
Deus.
O
pensamento invadiu a casa junto com o calor.
Ele
me viu. A tarde inteira.
E
então:
— Fica
aí — pediu o Assassino — e come mais um pouco. Porque amanhã eu
tenho que te mostrar... Tem uma coisa que você precisa ver.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
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