Após
dormir tanto durante o dia, a noite foi tão terrível e agitada
quanto a anterior. Olhou o conteúdo da caixa de madeira e pensou na
varanda daquela manhã:
O
leite respingando corrimão.
A
jugular pulsando no meu pescoço.
Ele
viu Aquiles e Tommy e Rory.
E
Carey.
É
óbvio que pensou em Carey, e no sábado, e se perguntou se ela iria
às Cercanias mesmo que ele não estivesse lá. Daria tudo para
saber, mas nunca perguntaria a ela, então parou de repente ao se dar
conta de uma coisa, uma última e intensa descoberta.
Levantou-se
e se debruçou na escrivaninha.
Você
se foi, pensou ele.
Você
foi embora.
***
Pouco
depois do nascer do sol, o Assassino também já estava acordado, e
eles foram caminhar pelo rio; saindo da casa, seguiram pelo leito
como se fosse uma estrada.
Primeiro
havia uma boa inclinação, e o terreno começou a se elevar.
No
entanto, horas depois, eles escalavam gigantescos rochedos áridos,
segurando-se em troncos de carvalho e eucalipto. Fosse íngreme ou
gradual, uma coisa nunca mudou ao longo da subida: o poder estava
sempre evidente. As margens tinham marcas. Havia um histórico claro
de escombros.
— Olha
só pra isso — disse o Assassino.
Estavam
em um trecho de vegetação densa; o sol, bem acima das sombras,
despejava raios em várias direções, os feixes de luz como degraus.
Ele estava com um dos pés apoiado numa raiz desgarrada. Uma capa de
musgo e folhagem.
E
mais essa agora, pensou Clay.
Estava
diante de uma pedra imensa, que aparentava ter sido arrastada.
A
caminhada tomou mais da metade do dia, e eles pararam para almoçar
em uma imensa saliência de granito. Ficaram observando os maciços
montanhosos ao redor.
O
Assassino abriu a mochila.
Água.
Pão e laranjas. Queijo e chocolate amargo. Tudo foi passado de mão
em mão, mas palavras mesmo eles quase não trocaram. No entanto,
Clay tinha certeza de que estavam pensando na mesma coisa — no rio
e em suas demonstrações de força.
Então
é isso que nós temos que enfrentar.
***
Ao
longo da tarde, eles desceram a trilha de volta. Aqui e ali, a mão
de um surgia para ajudar o outro no caminho, e, quando chegaram ao
escuro do leito do rio, pouco havia sido dito.
Mas
aquele era o momento, com certeza.
Se
havia uma hora para começar, só poderia ser aquela.
Mas
não.
Não
era mesmo:
Ainda
havia perguntas demais, lembranças demais — no entanto, um deles
teria que dar o braço a torcer; e não poderia ter sido diferente,
foi o Assassino. Se alguém deveria estabelecer uma relação de
parceria ali, esse alguém era ele. Depois de percorrerem muitos
quilômetros juntos, ele olhou para o filho e perguntou:
— Você
quer construir uma ponte?
Clay
assentiu, mas desviou o olhar.
— Obrigado.
— Por
quê?
— Por
ter vindo.
— Não
foi por sua causa que eu vim.
Laços
de família, à moda de Clay.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
Nenhum comentário:
Postar um comentário