quarta-feira, 15 de maio de 2024

O amahnu

Após dormir tanto durante o dia, a noite foi tão terrível e agitada quanto a anterior. Olhou o conteúdo da caixa de madeira e pensou na varanda daquela manhã:
O leite respingando corrimão.
A jugular pulsando no meu pescoço.
Ele viu Aquiles e Tommy e Rory.
E Carey.
É óbvio que pensou em Carey, e no sábado, e se perguntou se ela iria às Cercanias mesmo que ele não estivesse lá. Daria tudo para saber, mas nunca perguntaria a ela, então parou de repente ao se dar conta de uma coisa, uma última e intensa descoberta.
Levantou-se e se debruçou na escrivaninha.
Você se foi, pensou ele.
Você foi embora.

***

Pouco depois do nascer do sol, o Assassino também já estava acordado, e eles foram caminhar pelo rio; saindo da casa, seguiram pelo leito como se fosse uma estrada.
Primeiro havia uma boa inclinação, e o terreno começou a se elevar.
No entanto, horas depois, eles escalavam gigantescos rochedos áridos, segurando-se em troncos de carvalho e eucalipto. Fosse íngreme ou gradual, uma coisa nunca mudou ao longo da subida: o poder estava sempre evidente. As margens tinham marcas. Havia um histórico claro de escombros.
Olha só pra isso — disse o Assassino.
Estavam em um trecho de vegetação densa; o sol, bem acima das sombras, despejava raios em várias direções, os feixes de luz como degraus. Ele estava com um dos pés apoiado numa raiz desgarrada. Uma capa de musgo e folhagem.
E mais essa agora, pensou Clay.
Estava diante de uma pedra imensa, que aparentava ter sido arrastada.
A caminhada tomou mais da metade do dia, e eles pararam para almoçar em uma imensa saliência de granito. Ficaram observando os maciços montanhosos ao redor.
O Assassino abriu a mochila.
Água. Pão e laranjas. Queijo e chocolate amargo. Tudo foi passado de mão em mão, mas palavras mesmo eles quase não trocaram. No entanto, Clay tinha certeza de que estavam pensando na mesma coisa — no rio e em suas demonstrações de força.
Então é isso que nós temos que enfrentar.

***

Ao longo da tarde, eles desceram a trilha de volta. Aqui e ali, a mão de um surgia para ajudar o outro no caminho, e, quando chegaram ao escuro do leito do rio, pouco havia sido dito.
Mas aquele era o momento, com certeza.
Se havia uma hora para começar, só poderia ser aquela.
Mas não.
Não era mesmo:
Ainda havia perguntas demais, lembranças demais — no entanto, um deles teria que dar o braço a torcer; e não poderia ter sido diferente, foi o Assassino. Se alguém deveria estabelecer uma relação de parceria ali, esse alguém era ele. Depois de percorrerem muitos quilômetros juntos, ele olhou para o filho e perguntou:
Você quer construir uma ponte?
Clay assentiu, mas desviou o olhar.
Obrigado.
Por quê?
Por ter vindo.
Não foi por sua causa que eu vim.
Laços de família, à moda de Clay.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

Nenhum comentário:

Postar um comentário