Não
existe redenção para as grandes tragédias, mas a vingança sublime
e a única forma de transcendência dos homens ao desmazelo da vida é
transformar a má fortuna e a dor em beleza, civilização e arte. Os
meus heróis civilizadores não frequentaram bibliotecas, não
discutiram a alta filosofia nas academias e universidades, não
escreveram tratados iluministas, não pintaram os quadros do
Renascimento, não escreveram romances, não compuseram sinfonias,
não conduziram exércitos em grandes guerras, não redigiram leis,
não fundaram empresas, não elaboraram tratados e constituições e
não planejaram monumentos, edifícios e pontes.
Os
homens que me civilizaram chegaram às praias do meu país nos porões
infectos dos tumbeiros e foram vendidos e marcados feito gado no
mercado.
Eu
fui civilizado pelo rufar dos tambores misteriosos, pelo toque de São
Bento Grande no berimbau de cabaça, pela dança desafiadora do Obá
dos Obás, pelo bailado da dona do afefé – sagrado vento – e
pelo xaxará do senhor da varíola, a quem reverencio e peço a calma
para não estranhar o mundo – Atotô!
Aprendi
a olhar com admiração os homens ao conhecer os dribles de Mané, a
ginga de Pastinha, a sabedoria de Menininha, a força de Candeia, os
versos de Silas, o miudinho de Argemiro, as esculturas de Mestre
Didi, as toalhas rendadas de Tia Prisciliana, o cachimbo de Dona
Eulália, o canto de Anescar, o tempero da Iyá Bassê, o lamento dos
vissungos, o machado do jongo, as folhas de Ossain e os cantos de
evocação de Oxupá, dindinha Lua.
Quem
me criou não tinha educação formal e não me deu o Quixote, o
Crime e Castigo, o Dom Casmurro, o Grande Sertão e outros tantos
grandes livros que, como esses, eu li um dia e passei a amar. Quem me
criou, porém, me contou das artimanhas de Exu, da flecha certeira de
Oxóssi, dos amores de Ogum, das mulheres de Xangô, do tronco forte
de Tempo e do pano branco de Lemba – e eu passei a gostar de ouvir
e inventar histórias, no alargamento da vida.
Quem
me criou não me levou aos teatros, não me apresentou a grandes
óperas e não me presenteou com discos de sublimes sinfonias – que
dessas coisas quem me criou não sabia. Mas quem me conduziu cantou,
para confortar as minhas noites, sambas, toadas, jongos, afoxés,
cirandas, maracatus, alujás, calangos, xibas e xotes – e eu fui
apaziguando a alma com os sons do meu povo.
E
é por isso, por essas áfricas que me fizeram como sou, que gosto da
rua, do mercado, dos amigos, da gente miúda feito eu, do porre, da
bola, do beijo, da troça, da raça, do sol, da cachaça, da carne,
da alegria, da subversão, da insubmissão, da guerrilha, do vento,
da aldeia, do mistério, da mistura, do dendê, das pernas tortas, do
português torto, da língua do Congo e do pranto do banzo.
E
eu me pego todo dia a orar a Zâmbi por um Brasil mais tolerante com
o seu povo. Há que se lamentar e reverenciar – todos os dias – o
martírio dos tumbeiros, fazer do tronco do castigo o totem da
humanidade e louvar a todos os quilombolas, de ontem e de hoje, que
me ensinaram a amar a terra e celebrar a vitória da vida sobre a
morte – lição maior de Licutam, Luísa Mahin, Zomadônu e Zacimba
Gaba. O Brasil haverá de saber quem eles são.
É
só assim que a gente afaga o tempo, serpenteia a dor e apascenta,
entre um tombo e outro, o olhar sobre a belezura do que pode ser o
mundo.
Luiz Antonio Simas, in Pedrinhas miudinhas – Ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros
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