quarta-feira, 15 de maio de 2024

Menino do Mato | V

O lugar onde a gente morava quase só tinha bicho
solidão e árvores.
Meu avô namorava a solidão.
Ele era um florilégio de abandono.
De tudo que me restou sobre aquele avô foi esta
imagem: ele deitado na rede com a sua namorada, mas
se a gente o retirasse da rede por alguma necessidade,
a solidão ficava destampada.
Oh, a solidão destampada!
Essa imagem da solidão que ficara dentro de mim por
anos.
Ah, o pai! O pai vaquejava e vaquejava.
Ele tinha um olhar soberbo de ave.
E nos ensinava a liberdade.
A gente então saía vagabundeando pelos matos sem aba.
Chegou que alcançamos a beira de um rio.
A manhã estava pousada na beira do rio desaberta moda
um pássaro.
Nessa hora já o morro encostava no sol.
Logo adiante vimos um quati a lamber um osso de ema.
A tarde crescia por dentro do mato.
O lugar nos perdera de rumo.
A gente se sentia como um pedaço de formiga perdida
na estrada.
Bernardo completava o abandono.
Logo encontramos uma criame de caracóis nas areias
do rio.
Quase todos os caracóis eram viúvos de suas lesmas.
Contam que os urubus, finórios, desciam naquele lugar
para degustar as lesmas ainda vivas.
Se diz ainda que este recanto teria sido um pedaço do
Mar de Xaraiés.
Na beira da noite a gente estava sem rumo.
Bernardo apareceu e disse que vento é cavalo.
Então montamos na garupa do vento e logo chegamos
em casa.
A mãe aflitíssima estava.
Ela cuidava de todos: lavava, passava e cozinhava
para todos.
Porém à noite a mãe ainda encontrava uma horinha
para o seu violino.
Ela tocava para nós Vivaldi.
E a gente ficava pendurado em lágrimas.
Um dia que outro eu contei para a Mãe que tinha visto
um passarinho a mastigar um pedaço de vento. A Mãe
disse outra vez: Já vem você com sua visões! Isso é
travessura da sua imaginação.
É a voz de Deus que habita nas crianças, nos passarinhos
e nos tontos.
A infância da palavra.

Manoel de Barros, in Menino do Mato 

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