Não
sei se alguém já disse isto, mas tudo neste mundo é relativo. Por
exemplo, não escondo ou diminuo minha idade, embora não censure
quem o faça, mas tampouco a aumento, como já foi minha prática
corriqueira. Ao matutar agora, neste fim de ano, que como sempre nos
traz um estado de espírito diferente, lembro o tempo comoventemente
patético em que, na companhia de amigos corajosos, dispensava a
carteira de estudante que, em troca da meia-entrada, me denunciava a
idade, para enfrentar com a bravura possível a severidade do
porteiro do cinema, quando estava passando “filme impróprio”.
Entregava meu ingresso e me embarafustava pela passagem, antes que
meu rosto imberbe e cheio de espinhas chamasse a atenção do
porteiro. A maioria deles era simpática, mas havia um (não esqueço
a cara dele, baixinho de bigode, hoje certamente falecido e Deus o
tenha, embora eu não faça tanta questão), no antigo Cine Glória
em Salvador, que me pegava sempre e que quase me fez perder a cena em
que aparecia um peito de Françoise Arnoul, num filme em que ela era
amante de Fernandel.
Sim,
só a turma de meu tope se lembra, se é que se lembra, de Françoise
Arnoul e Fernandel, mas não tem importância. Basta imaginar a
espera palpitante na fila, o suspense da passagem pelo porteiro e a
ansiedade terminal de quem ia ver pela terceira ou quarta vez, ou
quantas lhe coubessem no esquálido orçamento, um peito de Françoise
Arnoul. Se bem me lembro, a cena era trivial e podia ter acontecido
de forma imprevista, mantida mais tarde pelo diretor, tamanha era a
casualidade com que acontecia. Discutindo com Fernandel, Françoise
Arnoul, de combinação e sem sutiã (e isto, distinta jovem, amável
rapaz, num tempo em que as atrizes americanas dormiam maquiladas e de
sutiã e ficavam grávidas sem que a barriga aumentasse), vai pegar
algo, uma alça da combinação escorrega e — aaaaai! — aparece
um peito durante meio segundo, que ela logo esconde outra vez, com
uma puxada distraída na alça. Barato indescritível,
insubstituível, irrevivível.
Aumentei
muito a idade por causa dos filmes impróprios. Cheguei a ser uma
autoridade no assunto, talvez o rapaz de minha idade que a mais
filmes impróprios assistiu. Devo dividir com mais uns dois ou três
gatos-pingados a lembrança, há muito levada pelo vendaval do tempo,
das deusas que ninguém mais celebra. Não me refiro a Martine Carol,
Silvana Pampanini e outras ainda saudosamente cultuadas, num eventual
momento de solidão nostálgica, pelos quirômanos d’antanho
(domingo, dia de levantar dicionário, precisamos fazer alguma coisa
quanto à barriga — pelo menos eu preciso), ainda hoje na ativa.
Eles não esqueceram, por exemplo, da lourinha Mylène Demongeot, que
tanto sucesso fez no Rio de Janeiro e que hoje estará sabe-se lá
onde. Tentei uma enquete, ninguém se lembrava de Mylène Demongeot.
Eu me lembro de Mylène Demongeot. E também tem outro coroa, de quem
muitos de vocês já devem ter ouvido falar, que se lembra de Mylène
Demongeot, só que com muito mais profundidade do que eu, mas não
lhe posso revelar o nome porque a mulher dele pega pesado.
E
também levo vantagem pela minha condição de itaparicano. Hoje em
dia não tem cinema em Itaparica, mas já teve. Teve dois, aliás,
sendo que um, o de Waldemar, no Alto de Santo Antônio, era com
poltrona estofada, coisa finíssima. Já o de Nélson era no Campo
Formoso, mais ou menos perto lá de casa e, quando a bilheteria
fraquejava, Nélson contratava uma série policial (não vou explicar
o que era o perigo da série às novas gerações, quem tem seu neto
que se vire) e um filme impróprio. Comparecimento infanto-juvenil
garantido, e ninguém era besta de negar entrada aos meninos, não só
por consideração a Nélson como porque do contrário os pais iriam
reclamar, era pelo menos uma folguinha que eles tinham. O que eu vi
de peito europeu, modéstia à parte, merecia um certo reconhecimento
cultural.
Mas
não era sobre peitos, hoje mais à mostra que feijão na feira, que
eu queria escrever, à beira deste ano que vai entrar. Queria apenas
referir-me à ironia com que a vida nos trata o tempo todo. Aumentei
a idade para ver peitos no cinema. Aumentei a idade para não ser
considerado pirralho pelas moças (mas mesmo assim era). E cada
réveillon me deixava ansioso que passassem logo os dias até meu
aniversário, que é no mesmo mês. Era um ano começando, era eu
ficando mais homem, eram perspectivas se abrindo — era, enfim, uma
boa sensação ver um ano esvoaçando para nunca mais voltar e outro
se abrindo em promessas, esperanças ou certezas, pois naquele tempo
havia certezas, hoje finadas.
Bem,
o futuro chegou, é isto aqui onde estou. De início, pensei que a
vaga melancolia que me tem acometido era causada pelo que temo do que
talvez venha pela frente. Pode ser isso, mas meu temor é misturado
irracionalmente com esperança. Não, não era somente isso. Talvez
já estivesse notando o que vou dizer e ocultando-o de mim mesmo, mas
este ano foi que me pegou. Foi o primeiro ano que não sinto chegar,
mas sinto passar. Daí ter pensado nesse título bobo. Para uns é
mais um ano que vai, para outros é mais um ano que chega. Para mim,
verdade, pois não cuspo no prato nem me queixo, também é um ano
que chega. Mas é principalmente, sinto que doravante cada vez mais,
um ano que vai. Claro que, para todos vocês, além de um ano que
chega, é um ano que vai. Mas alcancei claramente um ponto em que
decididamente o ano não chega, vai. E o próximo também irá. É
bom saber disso, é bom para a humildade que deve acompanhar a
condição humana. Boas entradas e, para os encalacrados, boas
saídas.
João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite
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