quinta-feira, 16 de maio de 2024

Da bem-aventurança involuntária


Com tais enigmas e amarguras no coração Zaratustra viajou através do mar. Mas, quando estava a quatro dias de distância das ilhas bem-aventuradas e de seus amigos, havia superado toda a sua dor —: vitorioso e firme, ele novamente dominava seu destino. Naquele momento, Zaratustra assim falou à sua exultante consciência:

Sozinho estou novamente e quero estar, sozinho com o puro céu e o livre mar; e novamente é tarde a meu redor.
Foi à tarde que encontrei meus amigos da primeira vez, e à tarde também de outra vez: — na hora em que toda a luz fica mais sossegada.
Pois o que de felicidade ainda se acha a caminho entre céu e terra, busca então abrigo numa alma luminosa: de felicidade toda a luz ficou agora mais sossegada.
Ó tarde da minha vida! Um dia, também a minha felicidade desceu ao vale para buscar abrigo: então achou essas almas abertas e hospitaleiras.
Ó tarde da minha vida! O que não dei para possuir uma coisa: essa viva plantação de meus pensamentos e essa luz matinal de minha mais alta esperança!
Companheiros buscou um dia o criador, e filhos de sua esperança: e eis que não podia encontrá-los, a menos que primeiramente os criasse.
Assim, estou em meio a minha obra, indo para meus filhos e deles voltando: por seus filhos deve Zaratustra consumar a si mesmo.
Pois no fundo se ama apenas a seu filho e sua obra; e, onde há grande amor a si mesmo, ele é sinal de gravidez: assim enxerguei.
Meus filhos ainda verdejam em sua primeira primavera, próximos um do outro e juntamente sacudidos pelos ventos, árvores de meu jardim e de meu melhor terreno.
E, em verdade, onde árvores tais se acham juntas, ali existem ilhas bem-aventuradas.
Mas um dia quero arrancá-las e pôr cada uma separada da outra: para que aprenda a solidão, a obstinação e a cautela.
Retorcida, curvada, com flexível dureza ficará ela então junto ao mar, um vivo farol da vida invencível.
Ali, onde as tempestades se precipitam no mar e a tromba das montanhas aspira a água, cada um fará suas vigílias do dia e da noite, para seu exame e conhecimento.
Conhecido e provado deverá ser, para sabermos se é de minha espécie e origem — se é senhor de uma longa vontade, silencioso mesmo quando fala, e complacente de modo que tome ao dar: —
de modo que um dia se torne meu companheiro e crie e celebre juntamente com Zaratustra —: alguém que escreva minha vontade em minhas tábuas: para a mais plena consumação de todas as coisas.
E por ele e seus iguais devo eu próprio consumar-me: por isso agora evito minha felicidade e me ofereço a toda infelicidade — para meu último exame e conhecimento.
E, em verdade, era tempo de eu ir; e a sombra do andarilho, o momento mais longo e a hora mais silenciosa — todos me diziam: “É mais que tempo!”.
O vento soprava pelo buraco da fechadura e me dizia: “Vem!”. A porta se abria de par em par e me dizia: “Vai!”.
Mas eu estava agrilhoado ao amor por meus filhos: o desejo me punha esse laço, o desejo de amor, para que eu me tornasse presa de meus filhos e me perdesse para eles.
Desejar — para mim isso já significa: haver me perdido. Eu vos tenho, meus filhos! Nesse ter, tudo deve ser certeza e nada deve ser desejo.
Mas o sol de meu amor se achava sobre mim, me incubava; em seu próprio sumo cozia Zaratustra — e sombras e dúvidas se afastaram voando acima de mim.
Eu já ansiava por inverno e gelo: “Oh, que o inverno e o gelo me fizessem novamente estalar e ranger!” — suspirei: e uma gélida bruma subia de mim.
Meu passado rompeu seus túmulos, mais de uma dor enterrada viva despertou —: apenas havia dormido, oculta em pano mortuário.
Assim tudo me gritava em sinais: “É tempo!”. — Mas eu — não escutava: até que, por fim, meu abismo se agitou e meu pensamento me mordeu.
Ah, pensamento abismal que é meu pensamento! Quando acharei a força para ouvir-te cavar e não mais tremer?
Até à garganta me vêm as batidas do coração, quando te ouço cavar! Mesmo teu silêncio me quer sufocar, ó abismal silencioso!
Jamais ousei chamar-te para cima: era bastante que comigo — te carregasse! Ainda não era forte o bastante para a derradeira exuberância e petulância de leão.
Já bastante terrível sempre me foi teu peso: mas um dia acharei ainda a força e a voz de leão que te chamem para cima!
Quando eu me houver superado nisso, então me superarei também em algo maior; e uma vitória será o selo de minha consumação! —
Entretanto vagueio por mares incertos; o acaso me lisonjeia, o de língua macia; olho para a frente e para trás — e ainda não enxergo fim.
Ainda não chegou a hora de minha derradeira luta — ou estará chegando agora? Em verdade, com insidiosa beleza me olham o mar e a vida ao redor!
Ó tarde de minha vida! Ó felicidade anterior ao anoitecer! Ó porto em alto-mar! Ó paz na incerteza! Como desconfiei de todos vós!
Em verdade, tenho desconfiança de vossa insidiosa beleza! Semelho o amante que desconfia do sorriso aveludado demais.
Tal como ele afasta de si a bem-amada, ainda carinhoso em sua dureza, o ciumento — assim afasto eu de mim essa hora bem-aventurada.
Fora contigo, hora bem-aventurada! Contigo me chegou uma bem-aventurança involuntária! Pronto para minha dor mais profunda me acho aqui: — chegaste no momento errado!
Fora contigo, hora bem-aventurada! É melhor te abrigares por lá — com meus filhos! Rápido! E ainda os abençoa, antes do anoitecer, com a minha felicidade!
Aproxima-se o anoitecer: o sol afunda. Ali vai — minha felicidade! —

Assim falou Zaratustra. E esperou por sua infelicidade a noite inteira; mas esperou em vão. A noite permaneceu clara e silenciosa, e a felicidade mesma lhe chegou cada vez mais perto. Pela manhã, porém, Zaratustra riu com seu coração e disse, zombeteiro: “A felicidade corre atrás de mim. Isso vem de eu não correr atrás das mulheres. Mas a felicidade é uma mulher”.

Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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