Chico
Buarque desenvolve, em suas composições, temáticas que tratam do
homem comum na multidão, do guri delinquente, do malandro, da moça
solitária, da separação dos amantes, do carnaval e até dá voz à
mulher que faz o doce predileto de seu homem que voltará da labuta
diária, visitando pelo caminho estações do universo masculino.
O
conjunto da obra de Chico Buarque permite que se diga que se trata de
um poeta da vida urbana, seja quando reconstitui a alegria da banda
em um cenário com marcas de cidadezinha interiorana, seja na
contemplação da vida da gente humilde da periferia da metrópole.
Apesar
de só ter estreado mais tarde na ficção e na dramaturgia, sua
poesia vai além da contemplação pontual de uma cena interiorizada
poeticamente e instaura personagens, às quais atribui ações,
angústias, perspectiva de vida (ou não). Essa característica é
muito bem observada por Affonso Romano de Sant’Anna: “O poeta tem
uma certa preferência por textos narrativos onde se conta uma
história ou uma parábola”.
Assim,
contemplando a multidão anônima da(s) metrópole(s), Chico Buarque
volta-se para criaturas destituídas de traços nobres ou de heroísmo
diante dos olhos comuns, e que só merecem destaque graças ao olhar
poético do compositor, como, por exemplo, o trabalhador da
construção civil, em “Pedro pedreiro” e em “Construção”.
Sua poética compromete-se com o reflexo da realidade.
Esse
olhar poético, Júlio Cesar Valladão Diniz chama “lirismo
prosaico”. O mesmo crítico ressalta que o fenômeno é notável
desde o início da carreira de Chico Buarque, apontando para
uma
poética da música como abertura para os temas prosaicos do
cotidiano, literalmente ocupado por personagens que vivem o peso de
suas próprias tragédias (Juca, Madalena, Pedro Pedreiro, Rita,
Carolina, Januária).
A
essas personagens, Diniz acrescenta, como traços da poesia
buarqueana, a
observação
das manifestações sociais e culturais como celebração (o desfile
da banda, a festa do carnaval); e [...] forte sentimento de nostalgia
diante de um mundo que perdia a sua inocência, ligado à ideia de
que a música reafirma a possibilidade utópica de transformação
política e social, um certo retorno ao paraíso e suas visões,
atitude de afirmação de uma ideia de identidade nacional a ser
construída.
Tais
características levaram muitas de suas criações à classificação
de canção de protesto. Todavia, Anazildo Vasconcelos da Silva, um
dos primeiros a estudar essas composições, reafirmando a visão
crítica de seu trabalho pioneiro, lembra que
Na
introdução do livro, eu afirmava que a poesia de Chico Buarque,
como toda poesia autêntica, rompia com os possíveis
condicionamentos externos e integrava a problemática
humano-existencial na universalidade das formas artísticas. Meu
objetivo era, então, combater as interpretações que, de uma forma
generalizada, prendiam a poesia de Chico Buarque ao contexto
circunstancial da Canção de Protesto, advertindo que enquadrá-la a
uma circunstância efêmera, qualquer que fosse sua natureza, seria
negar-lhe a validade poética e reduzi-la a coisa nenhuma.
Explica
o mesmo crítico:
Canção
de Protesto foi um rótulo utilizado, nas décadas de 60 e
70 do século XX, para designar um tipo de produção poética no
setor da MPB que denunciava a opressão instaurada com o regime
militar. Definida apenas pelo aspecto contestatório dos textos, que
a vinculavam a uma suposta militância política, a Canção de
Protesto não constituiu, de fato, uma categoria crítica, por isso
caiu em desuso com o desaparecimento da situação política a que
aludia.
Evitando
o rótulo do passado, Leonardo Boff, muito provavelmente inspirado na
Teologia da Libertação, prefere dizer:
Os
valores recorrentes em sua vasta obra são aqueles ligados à
tradição da solidariedade, da igualdade e da fraternidade. Apóia,
sempre que solicitado, os destituídos e pobres, os sem-terra. Jamais
negocia com a liberdade e, mesmo dentro da escuridão, convoca a
alegria de viver e preserva a utopia contra todo o cinismo e
pragmatismo. Com razão canta no “Pedro pedreiro” (1965): “Pedro
não sabe mas talvez no fundo / Espera alguma coisa mais linda que o
mundo”.
1.
“PEDRO PEDREIRO”: LEVEZA, RAPIDEZ E MULTIPLICIDADE NA ECONOMIA DO
TEXTO
A
canção citada por Boff integra o primeiro compacto do artista,
lançado em 1965; foi incluída no álbum Chico Buarque de
Hollanda, lançado em 1966(7). Considerando que essa composição
pode ter sido responsável pela inclusão de Chico Buarque na série
da chamada canção de protesto ou na temática da solidariedade, da
igualdade e da fraternidade, salientada por Boff, façamos, então,
uma breve leitura de seus versos.
A
composição, lançada no ano seguinte ao início do regime militar,
é considerada por Toninho Spessoto como “emblemática”.
Wagner
Homem transcreve trecho da entrevista de Chico Buarque à Rádio do
Centro Cultural São Paulo, em 1985, no qual assim o autor explica
sua criação:
[...]
ainda era resquício do movimento que havia da chamada resistência,
que foi logo depois de 64, quando veio aquela onda toda do Opinião,
da oposição que se fazia dentro dos teatros, na música popular –
já que noutros campos a oposição foi abortada, calada, e então se
transferiu das fábricas, da praça pública e do Congresso para as
artes: o teatro, o cinema e a música.
Gostaríamos
de ressaltar que os sessenta versos de “Pedro pedreiro”205 não
apresentam grande variedade vocabular. Sem contar conjunções,
artigos, pronomes e advérbios, apenas considerando-se as formas
nominais (substantivos e adjetivos), são usadas 34 palavras e mais o
neologismo “penseiro” (total: 35), que, repetidas, alcançam 93
nomes. Chico Buarque usou onze verbos em variadas flexões, somando
33 expressões verbais, algumas locuções verbais e mais o verbo
“esperar” no gerúndio 35 vezes e em outras flexões nove vezes,
em um total de 44 ocorrências.
Com
tal economia lexical, o poema oferece um tipo urbano, o pedreiro, no
início de seu dia de trabalho, em uma estação de trem. O segundo
verso esclarece o instante em que o olhar poético toma a figura
desse trabalhador: madrugada (“Manhã, parece, carece de esperar
também”).
Nomeado
Pedro, o personagem remete a pedra, firmeza, peso. Dita sua
profissão, confirmam-se os sentidos de seu nome, acrescentando-se
construção, possível construção de solidez, de estabilidade. O
adjetivo que lhe é conferido, penseiro, contribui para imprimir
movimento, fluidez. Ora, além de ter como profissão ser pedreiro,
essa criatura também exerce o ofício de penseiro: constrói
pensamentos, que podem ser interpretados como planos, sonhos. Graças
a ser também penseiro, o pedreiro Pedro ganha leveza, movimento. O
personagem que, a princípio, parece ser contemplado pontualmente,
sem movimento, em um ponto de passagem e de seguimento do trem,
mostra-se dinâmico em sua espera de penseiro. A leveza da situação
acentua-se com “Manhã”, “sol”, “festa”, “mar”,
“carnaval” e na utopia de “alguma coisa mais linda que o mundo”
e até nos parcos recursos “de quem não tem vintém”.
Evidentemente,
nada há de idílico ou bucólico na história de Pedro, e nem é
esse o interesse da composição. Em um gesto de empatia e de
comunhão, o poeta apreende as contradições da experiência do
personagem. Dessa análise da situação, resulta a atitude crítica
que o texto procura alcançar, na perspectiva do reflexo da
realidade. Por isso, à leveza do penseiro, contrapõem-se o peso de
seu nome Pedro, o peso da desesperança do aumento salarial nunca
recebido, o da sorte do bilhete nunca premiado, o do desejo “de
voltar pro Norte”, e o da morte e mais o do “desespero de esperar
demais”. Aliás, muito do peso da composição deve-se também à
máquina tão presente em todo o poema, que, apesar de sugerir leveza
na rapidez de seu deslocamento, traz a ideia de ferro, de destino
fixo no traçado da linha pela qual deve sempre seguir, do vai e
volta interminável, da impossibilidade de mudança. Italo Calvino
lembra o peso como valor oposto à leveza, salientando que tal
característica não significa menor valor estético, mas que nos
leva a apreciar a leveza.
Em
qualquer madrugada/manhã, em algum subúrbio metropolitano, há
várias pessoas aguardando transporte, a caminho do trabalho. Pode
até ser possível reconhecer suas profissões a partir da
vestimenta, de instrumentos de trabalho que carregam (pastas,
sacolas, ferramentas presas ao macacão, por exemplo). Mas
dificilmente pode-se ver algum traço material que informe que tal
pessoa tem o ofício de penseiro ou que se ocupe de construir ou
elaborar pensamentos. O gesto autoral na criação desse adjetivo
traduz o que Calvino entende como “a narração de um raciocínio
ou de um processo psicológico no qual interferem elementos sutis e
imperceptíveis, ou qualquer descrição que comporte um alto grau de
abstração”. Adiante, penseiro é traduzido analiticamente em uma
locução verbal: “Pedro pedreiro fica assim pensando”. Logo,
pensar é característica atribuída a Pedro pedreiro e, ao mesmo
tempo, seu modo de ser, de viver. Outro traço do perfil do
personagem decorre de esperar: “Pedro pedreiro penseiro esperando o
trem”.
Na
verdade, antes de informar ação do personagem, “esperando”
remete a sua condição, qualificando-a. O primeiro verso, sendo uma
oração subordinada adjetiva reduzida de gerúndio,209 não se tendo
notícia da oração principal (portanto, não há predicado a ser
modificado), soma mais um adjetivo a pedreiro e penseiro: esperando.
Não seria leviano traduzir assim a apresentação do personagem:
Pedro pedreiro penseiro esperador.
Assim,
o olhar poético interioriza a figura do trabalhador, interpretando-o
e conferindo leveza a sua imagem.
A
abstração realizada pelo poeta desparticulariza a criatura
objetiva, que passa a ser qualquer trabalhador ou todos aqueles que,
começando a jornada, sonham, fazem planos, fazem um rápido balanço
da vida e de suas perspectivas: “Assim pensando o tempo passa / E a
gente vai ficando pra trás / Esperando, esperando, esperando /
Esperando o sol / Esperando o trem”. Pedro é o nome de todos os
pedros, que vivem a mesma história contada na repetida oração
subordinada reduzida de gerúndio, agora de natureza adverbial, na
medida que modifica “a gente vai ficando pra trás”. O fado
coletivo está indicado na rapidez da síntese: “E a mulher de
Pedro / Está esperando um filho / Pra esperar também”.
O
gerúndio de esperar não reduz a contemplação poética a um
instante, a um presente. A ação de esperar não se esgota nem no
aspecto pontual e nem no conclusivo, como, por exemplo: Pedro esperou
o trem. A repetição de esperar em variadas flexões, mas
principalmente no gerúndio, instaura o aspecto cursivo ou durativo
da ação, que, no recurso da repetição, também se realiza no
aspecto frequentativo. Esperar expande-se como marca da coletividade
e, no processo, como certeza da continuidade.
Esse
emprego do verbo esperar atribui ao poema um tom narrativo: Pedro,
ontem, hoje, amanhã, esperou, espera, esperará. A mulher de Pedro
está esperando um filho. O filho de Pedro esperará. O poeta conta a
vida de Pedro, da mulher de Pedro como uma constante e repetida
espera. “A gente”, outros pedros, também espera. O movimento
contido nessa espera permanente está na certeza do futuro: o filho
de Pedro esperará. A presença do trem imprime movimento à espera e
abre a perspectiva para adiante: continuar a esperar.
Fugindo
do manifesto, mas em conformidade com os valores declinados por Boff,
Chico Buarque trabalha com um ritmo marcante, que imprime rapidez ao
que se narra, usando a consoante oclusiva surda [p]:
1.
nas aliterações “Pedro pedreiro penseiro”, “Pedro pedreiro”,
“passado para”, “pedreiro pobre”, por exemplo, além da que
se espalha pelo poema, conferindo-lhe a marcação melódica
definitiva “Esperando, esperando, esperando”;
2.
no insistente ruído que pontua os versos graças a “Para”,
“pensando”, “passa”, “passado”, “pra” etc.;
3.
na alternância com sua opositiva sonora [b], como em “bem”,
“também”, “[não] sabe”.
Outro
recurso para cadenciar o poema é o eco, como “bem de quem tem bem
/ De quem não tem vintém”, que se repete (ecoa) ao longo da
composição, pontuando-a com a nasalização. A vogal nasal “e”
compõe a rima trem/também/vintém/vem e bem na rima interna,
alternando-se com sorte/morte/Norte .
Essas
sonoridades podem sugerir tanto a lembrança do barulho resultante do
trabalho de pedreiro ([p], [b]) como podem imitar o ruído do trem e
seu movimento; essa impressão culmina na mimese do apito da máquina
em “aflita, bendita, infinita / Do apito do trem”, em rimas
internas consoante (ita) e soante (ita/ito), que nem mesmo evita a
presença do que sugere: “apito [do trem]”.
Por
outro lado, o recurso de tal jogo fônico insinua a monotonia da
repetição da interminável espera, que, por nunca terminar,
contamina Pedro, a mulher e o filho que virá, e a gente, tal como o
barulho da máquina sempre na mesma cadência: “Que já vem / Que
já vem / Que já vem / Que já vem / Que já vem / Que já vem”,
ao se aproximar da estação, para logo recomeçar a seguir seu
caminho.
Na
economia do discurso, Chico Buarque narra a aventura de Pedro, sua
mulher e anuncia a de seu filho, valendo-se, principalmente, do verbo
esperar e de recursos sonoros da língua portuguesa: “um
despojamento da linguagem por meio do qual os significados são
canalizados por um tecido verbal quase imponderável até assumirem
essa mesma rarefeita consistência”. Como diria Calvino, sua
narrativa “é um cavalo, um meio de transporte cujo tipo de
andadura, trote ou galope, depende do percurso a ser executado,
embora a velocidade de que se fala aqui seja uma velocidade mental”.
Assim, na leveza e na rapidez do poema buarqueano, podemos entrever
outros Pedros pedreiros penseiros esperadores e outras mulheres
grávidas de outros Pedros pedreiros penseiros esperadores:
multiplicidade.
2.
“PEDRO PEDREIRO”: VISIBILIDADE E EXATIDÃO EM UMA HISTÓRIA
EXEMPLAR
O
primeiro verso oferece o personagem em um cenário claramente
definido: trabalhador na estação de trem. A construção da cena
contribui para anunciar o que vai ser falado (narrado): o tempo da
aventura é o início da jornada. A caracterização do personagem
Pedro pedreiro penseiro esperador permite a visualização do quadro
nas primeiras horas do dia, ainda na madrugada (“Manhã, parece,
carece de esperar também”), e fixa definitivamente o interesse do
que será contado/cantado.
Chico
Buarque permite que o leitor ou o ouvinte do poema apreenda a cena e
antecipe a aventura de Pedro. Anos depois, Calvino explicou seu
interesse por textos capazes de permitir tal experiência ao
receptor:
Se
incluí a visibilidade em minha lista de valores a preservar foi para
advertir que estamos correndo o perigo de perder uma faculdade humana
fundamental: a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados,
de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres
alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por imagens.
Se
o discurso de “Pedro pedreiro” permite a visibilidade da cena
inicial, também persegue a exatidão do tempo do evento. Sabe-se que
o personagem se encontra na estação ainda de madrugada, quando o
poeta diz “Esperando o sol”; tanto o protagonista como os demais
na mesma estação: “Assim pensando o tempo passa / E a gente vai
ficando pra trás / Esperando, esperando, esperando / Esperando o sol
/ Esperando o trem”.
Para
melhor estabelecer os principais traços da aventura, o texto enumera
o aumento salarial, o carnaval, a sorte grande do bilhete de loteria,
a festa, o dia de voltar para a terra natal, algum acontecimento bom
em sua vida, na indeterminação “coisa mais linda que o mundo /
Maior do que o mar”. Isolada, a enumeração dos desejos do
personagem pode remeter à utopia, dispensando a atitude crítica da
narrativa. Por isso, os valores positivos são perpassados pela
negatividade da morte, pelo “desespero de esperar demais”. Mas a
radical desconstrução do sonho está na espera do filho, uma vez
que, para ele, nada mudará na certeza de que seu descendente viverá
espera e desencanto iguais aos seus, de “pedreiro pobre”. Com o
apontamento das contradições dos sonhos e planos do personagem,
face às condições sociais de seu mundo, o poema traduz a dimensão
da angústia, da monotonia, do desencanto da aventura de Pedro.
Segundo
lição de Calvino,
exatidão
quer dizer principalmente três coisas:
1.
um projeto de obra bem definido e calculado;
2.
a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis;
[...]
3.
uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua
capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação.
3.
“PEDRO PEDREIRO”: CONCISÃO COMO PROJETO POÉTICO
A
leitura ou a audição desse poema chama atenção tanto para a
economia lexical como para a repetição de palavras e sons, conforme
já foi salientado. Porém, esses recursos não bastam para apontar a
concisão como valor literário da composição.
O
projeto poético de “Pedro pedreiro” pretende mais do que falar
de um trabalhador, esperando transporte, na madrugada. Quando o eu
poético se aproxima e se confunde com seu personagem (“Assim
pensando o tempo passa / E a gente vai ficando pra trás / Esperando,
esperando, esperando / Esperando o sol / Esperando o trem”), revela
que não fala apenas do personagem singular. A forma pronominal “a
gente” significa “nós”; Pedro e mais o eu que fala: nós.
Todavia, esse “nós” tem uma carga de indefinição que contribui
para uma pluralidade mais ampla: nós todos, nós outros.
Assim,
na concisão de “a gente”, o poeta inclui muitos outros ou todos
os outros trabalhadores na aventura de Pedro.
Na
enumeração dos desejos e sonhos do personagem, merecem destaque
dois itens: o carnaval e o bilhete de loteria.
Ambas
as manifestações culturais não se fazem com sujeito singular. O
carnaval é festa coletiva e seu sentido implica inversão de
valores, como o pobre travestir-se de rico, de rei; subversão da
ordem do trabalho, da disciplina do horário, na libertação da
folia, do canto, da dança; eliminação temporária da figura do
patrão no feriado de festa, de festa de fantasia, de irreverência.
No carnaval esperado pelo personagem estão contidas a mesma espera e
a mesma inversão de valores de uma coletividade; portanto, aí estão
muitos e muitos outros trabalhadores que sonham com a libertação da
monotonia repetitiva do cotidiano.
Interpretação
semelhante merece o bilhete de loteria. Sabe-se que a existência de
loteria depende do interesse de muitos jogadores, uma vez que esse
tipo de empresa se sustenta com o dinheiro dos apostadores. O bilhete
de Pedro não sai premiado, pois outro trabalhador tirou a sorte
grande. Logo, o sonho do prêmio é sonho de muitos.
Juntamente
com o carnaval, o bilhete premiado é recurso para a inversão de
valores. Contudo, o sonho do prêmio é para uma mudança de estatuto
definitiva: tornar-se rico, rei; enquanto o carnaval permanece na
condição de mudança provisória, ilusória. Carnaval e bilhete de
loteria situam-se no plano da utopia de Pedro e de nós outros: a
gente.
“Pedro
pedreiro” fala da aventura de muitos outros trabalhadores reunidos
em Pedro e remete a elementos culturais, tecendo no espaço
hipertextual a utopia da libertação, ao incluir comportamentos
brasileiros, notáveis entre trabalhadores.
A
concisão do texto assegura-se no projeto de “voltar pro Norte”,
alimentado pelos trabalhadores migrantes, em demanda de oportunidades
no Sudeste e no Sul. A longa história dos trabalhadores
desenraizados, que servem à lenta marcha do progresso nas regiões
mais desenvolvidas; um extenso rol de planos, de decepções dos
migrantes. Alguns têm sucesso (graças ao bilhete de loteria?). Mais
do que uma aspiração individual do personagem, o sonho de “voltar
pro Norte”, como hipertexto, é parte da história do trabalho no
Brasil.
Recorrendo
a alguns expedientes de linguagem e mencionando certos traços
culturais, Chico Buarque, no exercício da concisão, conduz seu
poema a significações que ampliam a aventura de Pedro.
4.
“PEDRO PEDREIRO”: DISCURSO POLÍTICO
Uma
melhor leitura do poema mostra que sua construção obedece à
rigorosa unidade temporal e espacial: madrugada; estação de trem.
Sem quebrar essas duas unidades, o texto perscruta o passado e prevê
o futuro da rotina, da desesperança.
Chico
Buarque toma a história de Pedro como situação sensível e
exemplar da vida cotidiana, com a qual o eu lírico se identifica e
se amplia na pluradidade de “a gente”. O uso do gerúndio
repetido de esperar traduz o desconforto, o mal-estar, a insatisfação
permanente. A reação do personagem consiste em buscar refúgio na
festa, no carnaval, no sonho do bilhete de loteria e no de voltar
para a terra natal.
A
lição de Alfredo Bosi, em sua hipótese de trabalho sobre o
romance, pode ser aplicada ao texto buarqueano: “o herói procura
ultrapassar o conflito que o constitui existencialmente pela
transmutação mítica ou metafísica da realidade”. Não se
expondo ao enfrentamento das contradições da realidade em uma
proposta de luta transformadora, o personagem não mantém em relação
a seu mundo uma tensão crítica, mas sim uma tensão transfigurada.
Instaurando-se semelhante ao herói, o eu poético (“a gente”)
socializa a tensão do protagonista, em conformidade com o projeto de
reflexo da realidade. O conflito é gerado na tensão entre a espera
e as contradições da estrutura social (“Esperando o aumento /
Desde o ano passado / Para o mês que vem”), que impedem a mudança
da ordem estabelecida:
Mas
pra que sonhar
Se
dá o desespero de esperar demais
Pedro
pedreiro quer voltar atrás
Quer
ser pedreiro pobre e nada mais
Sem
ficar esperando, esperando, esperando
Esperando
o sol
Esperando
o trem
Esperando
o aumento para o mês que vem
Esperando
um filho pra esperar também
[...]
Esperando
o dia de esperar ninguém
Esperando
enfim nada mais além
Da
esperança aflita, bendita, infinita
Do
apito do trem
Permitindo
o escapismo para o plano mítico do sonho, Chico Buarque afasta-se do
épico e confere à sua narrativa a condição de poesia e, ao mesmo
tempo, empresta-lhe a natureza da tragédia, uma vez que a estrutura
social na qual Pedro está inserido (tanto quanto “a gente”)
antecede e excede seu sonho de mudança.
“Pedro
pedreiro”, de fato, não se contém na classificação de canção
de protesto, pois sua temática não se esgota na denúncia de uma
circunstância histórica, possível de ser superada a partir de
alguma forma de proposta de mudança decorrente de militância
política. Na dinâmica da reconstituição das angústias do
personagem, resultante do mergulho do eu lírico na tensão do herói
e da atitude crítica advinda da desparticularização dessa mesma
tensão, que passa a ser de uma classe social, Chico Buarque concede
a “Pedro pedreiro” um estatuto universalizante, donde a
atualidade da denúncia em pleno século XXI.
A
tradição da solidariedade, da igualdade e da fraternidade, de que
fala Boff, alimenta o discurso político, na contundência da
denúncia da espera de mudanças, derrotada pelas contradições da
realidade.
Não
se organizando como manifesto, o poema deixa que a rotina esmagadora
de nova perspectiva de vida se traduza no bem traçado caminho do
trem.
Sônia Maria van Dijck Lima, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos
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