É
lógico que Abbey Hanley nunca teve a intenção de destruí-lo.
Foi
só uma dessas coisas da vida.
Mas
uma coisa dessas acaba virando outras, que incorrem em mais
coincidências, que, por sua vez, muitos anos depois, incorrem em
garotos e cozinhas, garotos e ódio — e, sem aquela menina perdida
tanto tempo antes, não teria havido nada:
Nem
Penélope.
Nem
garotos Dunbar.
Nem
ponte, nem Clay.
***
Tantos
anos antes, tudo era claro e lindo para Michael e Abbey.
Ele
a amava com linhas e cores.
Ele
a amava mais do que a Michelangelo.
Ele
a amava mais do que a Davi e outras estátuas de escravos extenuados.
Tanto
ele quanto Abbey se formaram na escola com boas notas, boas o
suficiente para a cidade grande, números de fuga e de
deslumbramento.
Ele
até ganhou um ou outro tapinha nas costas.
Alguns
parabéns.
Mas,
de vez em quando, ele também era alvo de um leve desprezo, como se
não entendessem por que teria vontade de ir embora dali. Essa era
uma especialidade dos homens, sobretudo os mais velhos, o rosto
curtido, um dos olhos sempre cerrado contra o sol. Os comentários
eram bem tendenciosos:
— Então
você vai pra cidade grande, é?
— Sim,
senhor.
— Senhor?
Que porra é essa? Você ainda nem se mudou!
— Cacete,
desculpa...
— Tudo
bem, mas vê se não deixa eles te transformarem em um cuzão, ouviu?
— Como?
— Você
me ouviu muito bem... Não deixa eles mudarem você, como acontece
com todo filho da puta que vai embora daqui. Nunca se esqueça de
onde veio, sacou?
— Tá.
— Ou
do que você é.
— Tá.
Bom,
Michael Dunbar certamente vinha de Featherton e era um filho da puta,
potencialmente um cuzão. O problema foi que ninguém nunca disse a
ele: “E não dê motivos para chamarem você de Assassino.”
O
mundo lá fora era grande demais, e as possibilidades, infinitas.
***
No
dia em que o resultado saiu, bem na época do Natal, Abbey contou a
ele que ficara esperando do lado da caixa de correio. Ele até
poderia pintar a cena:
Uma
imensidão de céu aberto.
A
mão na cintura.
Ela
torrando no sol por uns vinte minutos antes de voltar lá dentro para
buscar uma cadeira de praia e um guarda-sol, mesmo a milhares de
quilômetros do mar. Depois, indo buscar uma bolsa térmica e uns
picolés; minha nossa, ela precisava desesperadamente dar o fora
daquele lugar.
No
centro da cidade, Michael arremessava tijolos para um cara em um
andaime que, por sua vez, os arremessava para outro cara. Em algum
lugar bem mais alto, alguém estava assentando aqueles tijolos, e um
novo pub tomava forma: para mineiros, fazendeiros e menores de idade.
Na
hora do almoço, ele foi para casa andando e avistou de longe o seu
futuro, dobrado e quase caindo do cilindro reservado para panfletos
de propagandas da caixa de correio.
Ignorando
o mau agouro, ele abriu a carta. Sorriu.
Ligou
para Abbey e ela atendeu ofegante, pois tinha acabado de correr para
dentro de casa.
— Ainda
estou esperando! Essa merda de cidade parece que faz questão de me
segurar aqui durante mais uma hora ou duas, só para me castigar.
Mais
tarde, porém, quando ele já tinha voltado ao trabalho, ela apareceu
por lá e parou atrás dele. Michael olhou para trás, largou os
tijolos, um de cada lado, e se virou para encará-la.
— E
aí?
Ela
assentiu.
Ela
soltou uma risada, e ele também, até que uma voz veio lá de cima e
pousou entre eles.
— Ô
Dunbar, seu pirralho! Manda a porra do tijolo, caralho!
Abbey
gritou de volta, na lata:
— Poesia!
Abriu
um sorriso e partiu.
Semanas
depois, eles partiram.
***
Sim,
eles fizeram as malas e se mudaram para a cidade grande, e como posso
resumir aqueles quatro anos de uma aparente felicidade idílica? Se
Penny Dunbar era muito boa em usar a parte para contar o todo, essas
partes não passavam disto: meros fragmentos e momentos efêmeros.
Viajaram
onze horas de carro, até que avistaram o horizonte da cidade.
Pararam
no acostamento para admirar toda a sua extensão, e Abbey subiu no
capô.
Continuaram
dirigindo até que se viram dentro dela, e parte dela, a garota
correndo atrás de seu diploma em administração, enquanto Michael
pintava e esculpia, penando para se manter entre os gênios que o
cercavam.
Ambos
tinham trabalhos de meio expediente:
Uma
era garçonete numa boate.
O
outro trabalhava na construção civil.
À
noite, se atiravam na cama, e um no outro.
Eram
duas peças que se encaixavam.
Estação
após estação.
Ano
após ano.
De
quando em vez, passavam a tarde na praia comendo peixe frito com
batatas e observando as gaivotas surgirem como em um passe de mágica,
como coelhos saindo da cartola. Sentiam a miríade de brisas do mar,
cada qual sempre diferente da anterior, e o peso do calor e da
umidade. Às vezes, permaneciam sentados enquanto uma gigantesca
nuvem preta acimava o horizonte, como uma nave-mãe, então saíam
correndo com a chegada da chuva. Era uma chuva que se assemelhava à
própria cidade, com seu vento sul noturno que varria o litoral.
Também
havia efemérides e aniversários; em uma dessas datas em especial,
ela o presenteou com um livro — uma linda edição em capa dura com
letras douradas — chamado O marmoreiro, e Michael varou as
madrugadas lendo, noite após noite, enquanto ela dormia deitada em
suas pernas. Antes de fechar, ele sempre voltava ao início, à
página com a minibiografia do autor, na qual, logo abaixo, bem no
meio da folha, ela escrevera:
Para
Michael Dunbar, o único homem
que
eu amo, e amo, e amo.
Com
carinho, Abbey
Pouco
depois, é claro, houve o momento de voltar à cidade natal para se
casarem, em um dia tranquilo de primavera, com os corvos crocitando
do lado de fora da igreja como piratas em terra firme:
A
mãe de Abbey chorava de alegria na primeira fileira.
Seu
pai trocara a costumeira camiseta puída de trabalho por um terno.
Adelle
Dunbar estava sentada ao lado do bom doutor, olhos marejados por trás
dos óculos novinhos em folha, de armação azul.
Houve
Abbey chorando, toda molhada, vestido branco e fumaça.
Houve
Michael Dunbar, o jovem, carregando-a no colo para o sol que brilhava
lá fora.
Houve
a viagem de volta dias depois, e a parada no meio do caminho, no
ponto onde o rio era uma coisa extraordinária, delirante, com uma
correnteza violenta — um rio com um nome estranho, mas que eles
amavam: Amahnu.
Houve
o momento de ficarem deitados ali, sob a árvore, o cabelo dela
fazendo cócegas nele, e ele fazendo questão de não afastá-lo,
jamais, e Abbey dizendo que adoraria voltar àquele lugar, e Michael
afirmando:
— Claro,
vamos trabalhar, juntar dinheiro e construir uma casa, para voltar
aqui sempre que quisermos.
Houve
Abbey e Michael Dunbar:
Dois
dos filhos da puta mais felizes que já tiveram a audácia de deixar
a cidade.
Sem
saber tudo que estava por vir.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
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