Já
passava das 23 horas, o restaurante do hotel estava vazio e assim eu
podia fazer uma coisa que me dá prazer: conversar com o garçom. Sem
ter mais ninguém para atender, ele estava por minha conta. Parecia
ter uns cinquenta anos. Perguntei sobre sua vida, onde nascera, como
vivera... O seu rosto se iluminou e ele começou a falar com o maior
entusiasmo. Nascera num lugarzinho ínfimo. Esqueci-me do nome. Só
sei que tinha alguma coisa a ver com “antas”. Lá no norte de
Minas. Matas, onças, antas, pacas, macacos, pássaros de todos os
tipos. Solidão. Farmácia plantada na horta. Fazer fogo batendo uma
pedra na outra. Tinham de sobreviver com o que havia ao redor, na
natureza, e com o que plantavam. Pai pobre, só pôde fazer o grupo,
curso primário. Depois se mudara para Belo Horizonte. Já trabalhava
naquele hotel havia mais de 25 anos. Aí ele deu uma paradinha,
sorriu e disse sem a menor vergonha: “Sou homem inteligente. Não
me conformei com o curso primário. Resolvi estudar. Fui numa
livraria que vende livros para pobres. Comprei vários. Estou
terminando o supletivo...”. Aí começou a me falar sobre o que
aprendera. Eu escutava fascinado. “Faz uns dias fui atender uma
senhora. Eu disse: Por aqui, minha senhora... Ela respondeu: ‘I
don’t speak Portuguese’. Eu disse: ‘But I speak English’”.
E desandou a falar inglês num sotaque bonito. Os mineiros da roça,
bem como os piracicabanos e os tatuienses, têm, por causa do sotaque
natural, facilidade para falar os erres tortos dos americanos. E
acrescentou: “E falo também alemão!”. Com o meu alemão de pé
quebrado tratei de colocá-lo à prova, para ver se ele não sabia só
meia dúzia de palavras. Que nada! Ele falava mesmo! Seu nome: João
Batista Souto, 54 anos, maître do restaurante do Belo
Horizonte Othon Palace. No dia seguinte, ao sair, deixei na portaria
uns livros para ele.
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola
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