— Olha
aí, ô Zé Mário, tu lavou bem esse copo? Tu tá sabendo que tem de
dar lavagem dupla nesses copos, devia até ferver, os caras tão
dizendo que o Aids também passa pela baba!
— Qual
é baba, rapaz, tu tá por fora. O que pega pela baba é a epilepsia,
todo mundo sabe disso. O Aids só pega nesse pessoal alegre aí, essa
turma aí que... sabe como é, o contágio não é bem pelo copo, tu
tá me entendendo, não é bem por aí, he-he!
— Aí
é que tu demonstra tua ignorância. Tu conhece o dr. Carvalho? Tu
conhece, ele vinha muito aqui, ultimamente é que não tem vindo,
depois que a mulher dele internou ele numa clínica pelo problema do
alcoolismo. Tu conhece ele, verdadeira sumidade, respeitado aqui e em
todos os outros Estados, su-mi-da-de, pergunte a qualquer daqueles
velhotes bêbados do Degrau, não tem um que ele não tenha curado a
pancreatite, até o Lula Grande, que ficou paralítico de um porre de
Johnny Bull, ele botou pra andar. Agora só tá bebendo água
mineral e guaraná, é por isso que ele só pinta aqui de vez em
quando, para se resguardar da nostalgia. Eu tive com ele no
Bracarense, no dia em que o Flamengo perdeu, eu tomando um porre de
vodca e ele de água mineral com gás, e tu sabe o que eu vi ele
fazer na hora que o português botou o copo na frente dele? Ele tirou
do bolso um pedacinho de algodão e um frasquinho parecendo desses de
colírio, molhou o algodãozinho no líquido do frasquinho e esfregou
pela beirada do copo toda, esfregou várias vezes com a maior
meticulosidade.
— E
o que era que tinha no frasquinho?
— Álcool,
xará, álcool de farmácia. Eu falei: não tou sacando nada, doutor,
será que o senhor não está esfregando esse álcool no copo para
dar uma alegria aí na água mineral? Aí ele falou: deixa de ser
otário, Lourival, acho bom tu também adotar o álcool na beirada do
copo como eu, que a barra do Aids tá ficando pesada. Aí eu falei:
mas, doutor, esse Aids não é uma transação que só dá em boneca,
o cara que... ali... o cara que... justamente... não é?
— E
ele falou que não?
— Ele
falou duas coisas. Primeiramente ele falou que é verdade que dá
mais em boneca, mas é só por enquanto e, além disso — aí é que
você vê o raciocínio do homem que tem cultura, a pessoa tem de
admirar —, ele falou o seguinte: meu caro Lourival, você é um
homem que conhece a vida e vai concordar comigo no seguinte: quem
parece é, e muitos que não parecem também são, a verdade é essa,
tu sabe disso.
— Bom,
isso é, isso é uma grande verdade.
— É
uma grande verdade! Tem muito moleque safado por aí que não dá
nenhuma bandeira! Tu conhece o Carlão?
— Que
Carlão? O Carlão da Humberto de Campos, um que faz musculação ali
na esquina da João Lira, o da motoca?
— Pois
é, Carlão-Carlão, esse mesmo.
— Não!
O Carlão? Não! Que é que você está me dizendo, cara, o Carlão...
Agora, pensando bem, com aquela machidão toda, todo fortão, todo
cabeludão nas costas... Agora que tu tá me falando, tu sabe que eu
sempre desconfiei, pensando bem... O Carlão, quem diria... Mas ele
não tá de Aids, ontem ele passou pelo Maré Mansa e tá com a mesma
cara, não dá nenhuma pinta de Aids.
— Que
é isso, cara, o Carlão não é nada disso, é meu amigo, conheço
ele bem, nada disso.
— Ué,
tu não falou que...
— Tu
não esperou eu acabar de falar, que é isso, o Carlão não... Não,
nada disso. É que o Carlão teve um problema com um travesti no
carnaval passado.
— Ah,
ele saiu com um travesti no carnaval, hein? Aí o travesti... É,
cara, tem muita gente que toma bonde errado com esse negócio de
travesti aí que... He-he! Quer dizer que o Carlão, como é que se
diz, o Carlão foi buscar a lã e saiu atosquiado, não é assim que
se diz? O travesti... he-he, vai ver que o Carlão bebeu demais, se
distraiu... He-he!
— Não,
cara, nada disso, foi um caso de engano, o Carlão não tava sabendo
que o cara era travesti, era desses todos cheios de silicone, sabe
como é, desses que se tu não prestar atenção tu dança, tá
sabendo como é que é?
— Ah,
essa não, quer dizer que o Carlão só foi descobrir depois que a
desgraça já tava feita? Ah, qual é, Vavá, pra cima de mim? Ah,
vai, conta outra, essa daí não cola.
— Tou
falando sério, cara, eu conheço o Carlão! O problema não é nada
disso, cara, deixa eu acabar de falar!
— Tá
legal, vá falando, mas minha idéia é que essa história do Carlão
tá muito mal contada.
— É
o seguinte, ele descobriu que o cara era travesti, mas só depois que
tinha dançado com o cara e tudo, tinha tomado assim umas
intimidades, sabe como é carnaval. Eu vou lhe dizer uma coisa aqui
confidencialmente, você vai me prometer que não conta isso pra
ninguém, é uma questão de confiança, o Carlão é uma pessoa que
me merece muito. É o seguinte — olhe aqui, se tu sair falando isso
por aí, eu vou ter uma grande decepção com você, veja bem —, é
o seguinte. Tou te falando isso até por uma questão de saúde
pública, pode crer, o grilo do Carlão é um grilo sério, é o
seguinte: teve um momento que o Carlão beijou o travesti, um momento
em que ele não tava sacando qual era a do cara. Logo em seguida, ele
sacou, tu tá sabendo como é beijo de carnaval, ele inclusive — eu
conheço o Carlão, eu sei que é um rapaz de caráter, eu manjo ele
assim como eu manjo você, tá sabendo? — partiu para dar uma
bolacha no sem-vergonha, mas o cara sentiu a barra do choque do
Carlão e se pirulitou na hora, sumiu no ar. O Carlão ficou
desgostoso etc., passou a noite bochechando com conhaque etc., mas
depois esqueceu, que na ocasião esse grilo do Aids não tinha
pintado ainda, era uma transa que ninguém tava sabendo ainda. Mas
agora...
— Mas
não foi no carnaval? Se foi no carnaval já tem tempo, não tem nada
a ver, se o Carlão tivesse de pegar a doença já tinha pegado.
— Aí
é que tu tá errado outra vez! O dr. Carvalho me explicou, o cara
pode estar contaminado uns cinco ou seis anos sem saber!
— Ih,
cara, grilo grande!
— Pois
é, você precisa ver o Carlão, cara, parece assim que ele tá bem,
mas tá um farrapo, cara! Quer dizer, fisicamente não, ele
fisicamente tá ótimo, mas a psicologia do cara desmoronou. Ele
agora só come macarronada, só come comida engordante, não pode ver
balança de farmácia. Sabe aquelas farmácias todas da Ataulfo de
Paiva? Pois não tem uma que ele passe que ele não pule em cima pra
controlar o peso, tu tá sabendo que a primeira batida do Aids é o
cara perder peso, tu viu a cara do Rock Hudes, um cara boa-pinta como
o Rock Hudes, tu saca ele do Maquimila and Uáife, pois é, não pode
ver comida engordante que não caia de boca na hora, é inhoque, é
milquechêique, é batata frita, é vitamina de banana, é rissole de
camarão em tudo que é boteco, é um inferno em vida, cara! Tou
dizendo a você, é um inferno em vida, grilo grande mesmo.
— Eu
não tava sabendo disso, cara. Quer dizer que a transação do Aids
leva até cinco anos pra rebentar?
— Incubadão
aí, cara, pode crer, incubadão. Tipo fantasma da ópera, tá
sabendo?
— Grilo
grande, grilo grande. Cinco anos, tu disse?
— Cinco,
seis. O dr. Carvalho bateu pra mim, cinco, seis.
— Tu
tá perdendo peso?
— Nada,
cara, tou segurando firme em 78, tenho acompanhado.
— Aquela
farmácia ali em frente a Sendas tem balança, não tem não?
— Vai
ver que tem, eu não sei, porque eu controlo naquela da Zé Linhares,
criei confiança.
— É,
eu acho que vou dar um pulo lá, só uma pesadinha, faz muito tempo
que eu não me peso.
— Tá
legal, mas acabe aí tua caipirosca, não tem pressa. Eu tenho uma
teoria. Minha teoria é que o álcool por dentro faz o mesmo efeito
que o álcool por fora, a gente vai bebendo e vai desinfetando. O dr.
Carvalho achou interessante essa minha teoria, deu valor.
— É,
com certeza, com certeza.
— E,
além de tudo, o álcool ajuda a esquecer, é ou não é?
— É.
Não que eu tenha nada a esquecer, mas ajuda.
— Eu
também não, mas ajuda.
— O
dr. Carvalho falou o que era melhor, se era caipirinha ou caipirosca?
João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite
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