segunda-feira, 8 de abril de 2024

Homens e mulheres


Verdade seja dita:
O jovem Michael Dunbar tinha uma determinação louvável.
Conseguiu ficar com o calendário de homens notáveis, mas só depois de recorrer à mãe, pedindo ajuda para listar as vinte e quatro mulheres solicitadas — incluindo a própria Adelle, que ele descreveu como a maior datilógrafa do mundo.
Precisaram de alguns dias de pesquisa e de uma pilha de enciclopédias, mas até que encontraram com facilidade mulheres que tinham transformado o mundo:
Marie Curie, Madre Teresa.
As irmãs Brontë.
(“Elas não valem por três?”)
Ella Fitzgerald.
Maria Madalena!
A lista era infinita.
Por outro lado, com apenas oito anos e tão machista quanto qualquer garotinho poderia ser, só os homens ganharam espaço no quarto dele. Só os homens foram pendurados na parede.

***

Ainda assim, devo admitir.
De uma maneira meio estranha, até que era legal — um menino vivendo a vida real, seguindo a rotina de sua cidade escaldante, mas também com o próprio recorte temporal, em que o mais próximo de um pai que chegava a ter era uma sequência de páginas com alguns dos maiores ícones da história. No mínimo, esses homens aguçariam a curiosidade dele ao longo dos anos.
Aos onze, conheceu Albert Einstein e foi pesquisar. Não aprendeu nada sobre a teoria da relatividade (sabia apenas que era genial), mas amava o velho de cabelo arrepiado mostrando a língua na folha central do calendário. Aos doze, antes de dormir, imaginava-se fazendo treinos de altitude com Emil Zátopek, o lendário fundista tcheco. Aos treze, espantou-se com Beethoven em seus últimos anos de vida, compondo sem conseguir ouvir uma única nota que tocava.
E então — aos catorze:
A grande descoberta veio no início de dezembro, arrancando a folha do prego na parede.
Minutos depois, sentou-se com o calendário.
Passados mais alguns minutos, ainda não havia tirado os olhos do calendário.
Meu Deus.
Nos anos anteriores, na última página, ele passara muitas manhãs, muitas noites observando o gigante mais conhecido como Il David, ou a estátua de Davi — no entanto, naquele momento, notou algo diferente. E instantaneamente percebeu a quem devotaria toda a sua lealdade. Quando se levantou, não sabia dizer quanto tempo tinha passado ali, perscrutando a expressão no rosto de Davi — uma estátua que era a personificação da determinação. Resoluto. Temeroso.
Também havia uma ilustração menor em um dos cantos. A criação de Adão, da Capela Sistina. A curvatura do teto.
Aí, repetiu:
Meu Deus.
Como era possível que alguém tivesse criado algo assim?

***

Então ele foi atrás de livros, e havia um total de três volumes sobre Michelangelo na biblioteca da escola e na biblioteca pública de Featherton, somando os dois acervos. Da primeira vez, leu os três, um por um, depois releu dois ao mesmo tempo. Lia-os todas as noites, a luminária acesa até altas horas da madrugada. O objetivo seguinte foi desenhar por cima de algumas das obras, memorizando-as para depois reproduzi-las outra vez.
Às vezes, ficava se perguntando o porquê daquilo tudo.
Por que Michelangelo?
Pegava-se dizendo o nome dele ao atravessar a rua.
Ou enumerando suas obras preferidas, sem uma ordem em particular:
Centauromaquia.
Davi.
Moisés. A Pietà.
Prisioneiros, ou, como também eram conhecidos, Escravos.

Estes últimos sempre o intrigavam por serem inacabados — figuras gigantescas, aprisionadas no mármore. Um dos livros, chamado Michelangelo: o mestre, detalhava aquelas quatro esculturas e onde viviam agora, no corredor da Galeria da Academia, em Florença; elas abriam caminho até Davi (embora outras duas tivessem fugido para Paris). Em um domo de luz erguia-se um príncipe — uma perfeição —, e ao redor, abrindo caminho, ficavam aqueles prisioneiros tristes-porém-deslumbrantes, todos em uma luta eterna para se libertarem do mármore:
Todos brancos, maculados.
Com as mãos aprisionadas na pedra.
Eram cotovelos, costelas, mãos e pés torturados, contorcidos de dor; uma luta claustrofóbica por ar, por vida, enquanto as hordas de turistas passavam... Todos atentos, hipnotizados por ele:
A realeza resplandecente mais adiante.
Um dos escravos, chamado Atlas (de quem havia muitas fotos, sob diversos ângulos, naquele livro da biblioteca), ainda carregava o prisma de mármore no pescoço, digladiando-se com suas dimensões e seu peso: nos braços, uma erupção de mármore; seu torso era uma guerra sobre pernas.
Michael Dunbar, o adolescente, foi mais um fisgado por Davi, mas também tinha uma queda pelos esplêndidos e sofridos escravos. Às vezes, lembrava-se de um traço, um detalhe, e o passava para o papel. Às vezes (e isso o deixava um tanto constrangido) chegava mesmo a desejar ser Michelangelo, transformar-se no mestre nem que fosse por um ou dois dias. Passava noites em claro permitindo-se fantasiar, mesmo sabendo muito bem que chegara com alguns séculos de atraso e que Featherton era muito longe da Itália. Para completar (e, na minha opinião, essa é a melhor parte), suas notas em arte sempre tinham sido péssimas e, aos catorze anos, nem mesmo cursava essa matéria na escola.
Além disso, o teto dele era plano e media três por quatro.

***

Mas Adelle fazia de tudo para encorajá-lo.
Nos anos antes do início, e nos que ainda estavam pela frente, comprou novos calendários para o filho, e livros também: as grandes maravilhas naturais do mundo, assim como as do mundo moderno. Outros artistas — Caravaggio, Rembrandt, Picasso, Van Gogh —, e ele lia os livros, copiava as obras. Tinha um apreço especial pelos retratos que Van Gogh fizera do carteiro (talvez uma homenagem ao bom e velho Harty); com o passar dos meses, ele cortava as imagens dos calendários e colava na parede. Na escola, assim que pôde, matriculou-se de novo na aula de artes, e aos poucos foi melhorando, até alcançar e ultrapassar os outros alunos.
No entanto, nunca conseguiu se desfazer do primeiro calendário.
Este continuou em lugar de destaque, bem no meio do quarto.
Quando Adelle implicou com ele por causa disso, o garoto falou:
Vou nessa, que está na hora.
E aonde o senhor pensa que vai?
Foi o mais próximo que ele chegara de um sorriso astuto, lembrando-se do jantar mensal.
Para a casa do Walt, é claro.
Ia levar o cachorro para passear, isso, sim.
E o que ele vai servir hoje?
Espaguete.
De novo?
Trago um pouco pra você.
Não precisa. Quando você chegar é bem provável que eu já esteja dormindo aqui na mesa — falou ela, dando um tapinha na velha Tec-tec.
Tudo bem, mas vê se não exagera, hein?
Exagerar, eu? — Ela enfiou uma folha em branco na barriga da máquina cinzenta. — De jeito nenhum. Só vou escrever para uns amigos e acabou.
Riram, quase sem motivo — talvez fosse só felicidade.
Ele saiu.

***

Aos dezesseis, ele encorpou, seu cabelo tomou forma.
Não era mais o menino que precisaria de todas as forças para carregar a máquina de escrever, e sim um adolescente bonito de olhos cor de mar, cabelo escuro ondulado e um físico que se desenvolvia rápido. Começava a mostrar talento para o futebol e para quaisquer outras coisas consideradas importantes, o que basicamente significava “esportes”.
No entanto, Michael Dunbar não se interessava muito por esportes.
Entrou para o time de futebol da escola, é claro; era lateral, e dos bons. Travava os adversários. Parava para ver se o jogador que precisava marcar era bom e às vezes se aventurava no ataque; dava algumas assistências para os atacantes e de vez em quando até fazia gols.
Fora do campo, era dotado de uma bondade que o distinguia dos demais, além de uma curiosa perseverança. Era um sofrimento para se enturmar, e tinha dificuldade de mostrar quem era de verdade; tendia a fiar-se a esperanças maiores, como a de encontrar alguém que fosse conhecê-lo por inteiro.
Como ditava a tradição (pelo menos com meninos atléticos), logo apareceram as garotas, e elas eram previsíveis: vinham em um conjunto de saias e sapatos e farra. Mascavam chicletes. Bebiam bebidas.
Ei, Mikey.
Ah... oi.
Ei, Mikey, o pessoal vai lá no Astor hoje à noite.
Mikey não estava interessado — pois, enquanto Michelangelo era o único homem que ele amava de verdade, o garoto também vivia às voltas com três garotas:
Primeiro, a grande datilógrafa — a boxeadora de teclas na sala de espera.
Depois, a velha boiadeira australiana de pelo avermelhado que ficava ao seu lado no sofá, assistindo às reprises de A Feiticeira e Agente 86, e que dormia pesado enquanto ele limpava o consultório, três noites por semana.
Por fim, aquela que se sentava no canto direito da fileira da frente na aula de inglês, encurvada e adorável, magricela como um bezerro. (E essa era a que ele vivia desejando que o notasse.) Tinha olhos cinzentos cor de fumaça, usava o uniforme xadrez verde, e seu cabelo era tão longo que, solto, chegava aos quadris.
A destruidora de espaçonaves da sala de espera também havia mudado.

***

Toda noite, ele caminhava pela cidade com a cadela de pelo avermelhado que se chamava Lua; o nome tinha sido em homenagem à lua cheia na noite em que a mãe levara o animal para casa.
Lua tinha pelo vermelho-acinzentado e dormia no chão do barracão nos fundos do quintal enquanto o menino desenhava na bancada de trabalho do pai ou pintava ao cavalete — presente de Adelle no aniversário de dezesseis anos do filho. Quando ele fazia carinho em sua barriga, Lua rolava de costas na grama e sorria para o céu.
Vem, garota.
E ela ia.
Trotava toda feliz ao lado de Michael Dunbar enquanto ele percorria a pé os meses de anseios e rascunhos, anseios e retratos, anseios e paisagens; as obras de arte e Abbey Hanley.
Todas as vezes, em uma cidade que voltava vagarosamente para a escuridão — dava para sentir a escuridão chegando a quilômetros de distância —, ele a admirava de longe. Seu corpo era uma pincelada. O longo cabelo negro, uma trilha.
O menino e a cachorra podiam pegar qualquer rua para atravessar a cidade: eles sempre iam dar na estrada. Paravam em frente a uma cerca de arame.
Lua aguardava.
Arfava, lambia o nariz.
Michael levava a mão à cerca, tocando nos nós do arame farpado; inclinava-se para a frente, esquadrinhando o telhado de metal corrugado sobre a propriedade distante.
Poucas luzes acesas.
Uma TV piscando em tons de azul.
Toda noite, antes de ir embora, Michael ficava ali, imóvel, com a mão na cabeça da cachorra.
Vem, garota.
E ela ia.
Foi só quando Lua morreu que ele conseguiu cruzar a cerca.

***

Pobre Lua.
Foi numa tarde comum, depois da escola.
A cidade estava besuntada de sol.
Ela estava caída no chão perto dos degraus nos fundos da casa, com uma cobra mulga, também morta, ao seu lado.
Para Michael, foi um “Ah, meu Deus” e passos apressados. Correu até o quintal e ouviu a mochila arrastar no chão enquanto se ajoelhava ao lado de Lua. Jamais se esqueceria do concreto quente, do cheiro morno de cachorro e da sensação de enterrar a cabeça no pelo avermelhado dela.
Ah, meu Deus... Luazinha, não...
Implorou a ela que respirasse.
Ela não respirou.
Insistiu que ela virasse de barriga para cima e sorrisse ou saísse trotando até o pote de comida. Ou dançasse, levantando as patinhas, esperando a avalanche de ração.
Ela não fez nada disso.
Já não restava nada além de corpo e mandíbula, os olhos vidrados pela morte, e ele ajoelhado sob o sol de fundo de quintal. O menino, a cachorra e a cobra.
Mais tarde, pouco antes de Adelle chegar em casa, ele carregou Lua para o meio do quintal, passando por baixo do varal, e a enterrou ao lado de uma árvore de banksia.
Fez duas escolhas.
Primeiro, cavou outro buraco, coisa de alguns pés para a direita, e ali colocou a cobra; amiga e inimiga, lado a lado. Depois, decidiu que finalmente cruzaria a cerca de Abbey Hanley naquela noite. Iria até a porta cansada na frente da casa e enfrentaria a TV com seus tons de azul.

***

À noite, na estrada, tinha a cidade atrás dele, as moscas e a dor do luto pela cachorra — o ar nu, sem arquejos. O vazio ao lado dele. Mas então surgiu aquele outro sentimento. Aquela doçura nauseante de fazer algo acontecer: a novidade. E Abbey. O tudo que equivalia a ela.
Ao longo do caminho, ele repetia para si mesmo que não deveria ficar parado na frente da cerca, mas, ao chegar, cedeu à tentação. Sua vida ficou reduzida a minutos até que engoliu em seco e dirigiu-se à porta. Foi Abbey Hanley quem a abriu.

***

É você — disse ela, o céu explodindo de estrelas.
Uma abundância excessiva de água-de-colônia.
Um garoto com os braços em chamas.
A camisa dele era grande demais, em um país que também era grande demais; à porta da casa, tinha um enxame de ervas ao redor. O restante da família estava lá dentro tomando sorvete, e o teto de zinco ali em cima o pressionava, intimidador, enquanto ele tentava encontrar as palavras — e a presença de espírito. As palavras ele até achou. A presença de espírito, não.
Dirigindo-se às canelas dela, disse:
Minha cachorra morreu hoje.
Eu estava mesmo me perguntando por que você veio sozinho. — Ela sorriu, a dois passos da arrogância. — Sou a substituta?
Estava tirando o couro dele!
Ele aguentou firme.
Ela foi mordida. — Pausa. — Por uma cobra.
E, de alguma maneira, aquela pausa mudou tudo.
Enquanto ele virava o rosto para a escuridão que caía, a menina passou da arrogância ao estoicismo em questão de segundos; se aproximou e olhou para o mesmo ponto. Parou tão perto dele que seus braços quase se tocavam.
Eu rasgaria a cobra ao meio antes que ela pensasse em chegar perto de você.

***

Depois disso, os dois se tornaram inseparáveis.
Assistiam àqueles sitcoms já reprisados incansavelmente nos anos anteriores — o dele era A Feiticeira, o dela, Jeannie É Um Gênio. Ficavam sentados na beira do rio ou andavam pela estrada até sair da cidade, o mundo crescendo diante de seus olhos. Faziam a faxina do consultório e escutavam as batidas do coração um do outro com o estetoscópio de Weinrauch. Verificavam a pressão até o braço ficar a ponto de explodir. No barracão dos fundos, ele desenhava as mãos dela, os tornozelos, os pés. Empacava quando chegava a vez do rosto.
Ah, Michael, qual é... — Ela ria, cutucando o peito dele. — Será possível que você não consegue me desenhar direito?
Ah, mas ele conseguia, sim.
Conseguia encontrar a fumaça nos olhos dela.
Seu sorriso zombeteiro e corajoso.
Mesmo na folha de papel, ela parecia prestes a falar.
Vamos ver se você é bom mesmo... Agora pinte com a outra mão.
Certa tarde, na fazenda à beira da estrada, ela se entregou a ele. Colocou uma pilha de livros atrás da porta do quarto para fechá-la, pegou-o pela mão e o ajudou com tudo: os botões, os fechos, o caminho até o chão.
Vem — disse ela.
E então havia o carpete e o calor dos ombros e costas e quadris. Havia o sol na janela, e livros da escola, e trabalhos ainda por terminar espalhados por todos os lados. Havia a respiração — a respiração dela — e o fim, repentino. E o constrangimento. Um rosto que se voltou para o outro lado, mas que foi logo trazido de volta.
Olha pra mim. Michael, olha pra mim.
E ele olhou.
A garota, seu cabelo e a fumaça.
Sabe — disse ela, a doçura entre os seios. — Eu nunca te disse que sentia muito.
Michael olhou para ela.
Embaixo do corpo de Abbey, seu braço estava dormente.
Por quê?
Ela disse, sorrindo:
Por causa da sua cachorra, e... — Estava à beira das lágrimas — ... e por pisar na sua nave espacial aquele dia no consultório.
Michael Dunbar poderia ter deixado o braço ali para sempre; estava aturdido, estático, perplexo.
Você se lembra disso?
É claro — respondeu Abbey, e foi sua vez de desviar o olhar para o teto. — Você ainda não entendeu? — Metade do corpo dela estava nas sombras, mas o sol cobria as pernas. — Naquela época, eu já te amava.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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