domingo, 7 de abril de 2024

De: Confissões de um homem suficientemente insano para viver com as feras


Estava acomodado com outra pessoa. Estávamos no segundo andar de uma cabana e eu estava trabalhando. Foi isso que quase me matou, beber toda a noite e trabalhar o dia inteiro. Continuava jogando a garrafa pela mesma janela. Costumava levar aquela janela até uma vidraçaria na esquina e eles a arrumavam para mim, colocavam um novo vidro na janela. Fazia isso uma vez por semana. O homem olhava para mim estranhamente todas as vezes, mas sempre aceitava meu dinheiro, que parecia normal para ele. Eu andava bebendo muito, continuamente há 15 anos, e, certa manhã, acordei e lá estava: o sangue escorrendo pela minha boca e pelo meu cu. Cagalhões pretos. Sangue, sangue, cachoeiras de sangue. Sangue fede mais que merda. Ela chamou um médico e a ambulância veio me buscar. Os paramédicos disseram que eu era grande demais para ser carregado pelas escadas e me pediram para caminhar.
Tudo bem, caras – eu disse.
Ficamos agradecidos... não queremos que faça muita força.
Lá fora subi na maca. Eles a abriram para mim, e me estendi ali em cima como uma flor a fenecer. Uma flor infernal. Os vizinhos estavam com as cabeças para fora das janelas, ficavam nos degraus da escada enquanto eu passava. Viam-me bêbado na maior parte das vezes.
Olhe, Mabel – disse um deles –, lá se vai aquele homem terrível!
Deus tenha piedade de sua alma! – era a resposta.
Boa e velha Mabel. Escapou-me boca afora uma golfada de sangue que atingiu a ponta da maca, e alguém pronunciou:
OOOOOhhhhhh.
Embora eu estivesse trabalhando, não tinha nenhum dinheiro, então fui levado novamente para a ala de caridade. A ambulância estava cheia. Tinham compartimentos na ambulância e todos estavam tomados por outras pessoas.
Casa cheia – disse o motorista. – Vamos lá.
Foi uma viagem péssima. Balançamos e sacudimos. Fiz todo o esforço que podia para não botar mais sangue para fora, porque não queria deixar ninguém fedendo.– Oh – ouvi a voz de uma negra –, não posso acreditar que isso esteja acontecendo comigo, não posso acreditar, oh, Deus, me ajude!
Deus é muito popular em lugares como esse.
Colocaram-me em um porão escuro e alguém me deu alguma coisa para tomar em um copo com água e isso foi tudo. De vez em quando eu vomitava um pouco de sangue no pote que ficava perto da cama. Havia quatro ou cinco de nós ali. Um dos homens estava bêbado... e insano... mas parecia forte. Ele saiu de seu catre e vagueou pelos arredores, andou aos tropeços, caindo por cima de outros homens, derrubando as coisas no chão:
Eu era, era, eu, eu sou o juba, o joba, jujoba, eu era, uepa, juba.
Peguei o jarro de água para bater nele, mas ele não se aproximou o suficiente. Finalmente caiu em um canto e desmaiou. Fiquei em um porão a noite inteira e até o meio-dia do dia seguinte. Então me levaram para o andar de cima. A ala estava superlotada. Fui colocado em um canto escuro.
Oh, ele vai morrer naquele canto – disse uma das enfermeiras.
É... – disse a outra.
Levantei, numa noite, e não consegui chegar até o banheiro. Deixei sangue sobre toda a parte central do piso. Caí e estava muito fraco para me levantar. Chamei por uma enfermeira, mas as portas que davam acesso para aquela ala eram cobertas de estanho de três a seis polegadas de espessura e ninguém poderia me ouvir. Uma enfermeira vinha fazer uma ronda uma vez a cada duas horas, procurando por mortos. Levavam muitos mortos embora durante a noite. Eu não conseguia dormir e costumava ficar observando a retirada. Puxavam um sujeito de um catre para a maca e puxavam um lençol por sobre a cabeça dele. Aquelas macas estavam sempre muito bem lubrificadas. As rodinhas não faziam nenhum barulho. Gritei:
Enfermeira! – sem saber exatamente por quê.
Cale a boca! – um dos velhos me disse. – Queremos dormir!
Desmaiei.
Quando retomei a consciência, todas as luzes estavam acesas. Duas enfermeiras estavam tentando me erguer.
Disse para você não sair da cama – falou uma delas.
Eu não conseguia falar. Tambores rufavam em minha cabeça. Senti que estava me esvaziando. Parecia que conseguia ouvir tudo, mas não conseguia ver, apenas clarões de luz, era o que parecia. Mas nada de pânico nem medo, apenas uma sensação de estar esperando, aguardando por algo sem me importar.
– Você é muito grande – disse uma delas –, suba nesta cadeira.
Colocaram-me em uma cadeira de rodas e me empurraram pelo corredor. Sentia-me como se não pesasse mais de três quilos.
Então estavam ao meu redor: pessoas. Lembro de um médico vestindo um avental verde, um avental de operação. Parecia estar furioso. Estava falando com a enfermeira-chefe.
– Por que esse homem não recebeu uma transfusão? Ele está quase sem nada.
– Seus papéis passaram pelo andar inferior enquanto eu estava no andar de cima e foram preenchidos antes que eu os visse. E, além disso, doutor, ele não tem nenhum crédito sanguíneo.
– Quero um pouco de sangue aqui em cima e quero AGORA!
“Quem raios será esse sujeito”, pensei, “muito estranho. Muito incomum para um médico.”
Começaram as transfusões... nove bolsas de sangue e oito de glicose.
Uma enfermeira tentou me alimentar com rosbife e batatas e ervilhas e cenouras na minha primeira refeição. Ela colocou a bandeja na minha frente.
Raios, não posso comer isso – eu lhe disse. – Esse negócio vai me matar!
Coma – ela disse –, está na sua lista, é a sua dieta.
Traga-me um pouco de leite – eu disse.
Coma isso – ela disse e se afastou.
Deixei a comida onde estava.
Cinco minutos depois, ela voltou correndo pela ala.
Não COMA ISSO! – ela gritou. – Você não pode COMER ISSO!! Houve um erro na lista!
Ela levou tudo embora e voltou com um copo de leite.
Assim que a primeira bolsa de sangue esvaziou-se dentro de mim, colocaram-me em uma maca com rodas e me levaram para a sala de raio X. O doutor me mandou ficar em pé. Eu não conseguia, acabava sempre caindo de costas.
PORRA DO CARALHO! – ele gritou. – VOCÊ ME FEZ DESPERDIÇAR OUTRO FILME! AGORA FIQUE EM PÉ E NÃO CAIA!
Tentei, mas não consegui ficar em pé. Caí de costas.
Oh, merda – ele disse para a enfermeira –, leve-o daqui.
Domingo de Páscoa, a banda do Exército da Salvação tocou bem embaixo da nossa janela às cinco horas da madrugada. Tocaram músicas religiosas horrorosas, tocaram mal e muito alto, e isso era para mim como mergulhar em um pântano, sentia a música correr pelo meu corpo, quase me matou. Senti-me tão perto da morte naquela manhã como jamais tinha me sentido antes. Estava a um centímetro de distância, um fio de cabelo de distância. Finalmente foram embora para outra parte do pátio e comecei a voltar à vida. Diria que, naquela manhã, eles mataram provavelmente meia dúzia de prisioneiros com aquela sua música.
Então meu pai apareceu com a minha puta. Ela estava bêbada, e eu sabia que ele tinha dado dinheiro a ela para beber e que também a havia trazido, deliberadamente, para que eu a visse bêbada. Fez isso para me entristecer. O velho e eu éramos inimigos de longa data... ele acreditava em tudo aquilo que eu não acreditava e vice-versa. Ela cambaleava em frente à minha cama, embriagada, o rosto rubicundo.
Por que você a trouxe aqui nesse estado? – perguntei. – Por que não esperou até outro dia?
Disse que ela não prestava! Sempre disse que ela não prestava!
Você a embebedou e então a trouxe aqui. Por que você continua fazendo isso comigo?
Eu disse que ela não prestava, eu avisei, eu avisei!
Seu filho da puta, se você disser mais uma palavra, vou tirar essa agulha do meu braço e cagar você a pau!
Ele a tomou pelo braço e os dois partiram.
Acho que telefonaram para eles dizendo que eu ia morrer. A hemorragia continuava. Naquela noite, um padre veio me visitar.
Padre – eu disse –, sem ofensas, mas, por favor, gostaria de morrer sem nenhum rito, sem nenhuma palavra.
Fiquei surpreso, então, porque ele balançou e se inclinou para trás sem acreditar no que tinha ouvido, foi quase como se eu tivesse batido nele. Digo que fiquei surpreso, porque imaginava que esses rapazes levassem as coisas de maneira mais tranquila. Mas, enfim, eles também tinham que limpar os próprios rabos.
Padre, fale comigo – disse um velho –, você pode falar comigo.
O padre foi até ele e o velho e todos os demais ficaram felizes.
Treze dias depois da noite em que fui internado, estava dirigindo um caminhão e carregando sacos de 25 quilos. Uma semana mais tarde, bebi meu primeiro copo de cerveja... o copo que, diziam, iria me matar.
Acho que algum dia vou morrer em uma ala de caridade de merda. Parece que simplesmente não consigo me livrar disso.

Charles Bukowski, in Sobre bêbados e bebidas

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