Thomas
Hudson tomou banho esfregando a cabeça com sabonete e depois lavou-a
debaixo do forte jorro de água penetrante do chuveiro. Era um
homenzarrão e nu parecia ainda maior do que vestido. Estava bem
bronzeado, com o cabelo mais claro, malhado pelo sol. Não tinha
engordado nada e viu na balança que continuava com 96 quilos.
Devia
ter ido dar um mergulho antes da ducha, pensou. Mas nadei muito hoje
de manhã antes de começar o trabalho e agora estou cansado. Não há
de faltar ocasião quando os meninos chegarem. E Roger também está
aí. Que bom.
Enfiou
um calção limpo, uma velha camisa basca, o par de mocassins, saiu,
desceu o barranco e cruzou o portão da cerca de tábuas,
encontrando-se de chofre sob a claridade ofuscante do coral
esbranquiçado de sol da Estrada do Rei.
Pouco
adiante, um preto velho de passo empertigado, com casaco de alpaca
preta e a calça escura frisada, surgiu de uma das cabanas de madeira
crua, ao longo do caminho sombreado por dois coqueiros altos, e tomou
a estrada. Quando virou de frente, Thomas Hudson enxergou-lhe o belo
rosto negro.
Nos
fundos da cabana, uma voz infantil começou a cantar uma antiga
modinha inglesa em tom de deboche.
O
tio Dudu veio de Nassau
Vender
doce pra gente
Eu
comi e me fez mal
Não
há barriga que aguente…
O
tio Dudu virou o belo rosto, parecendo tão triste quanto brabo na
brilhante luz da tarde.
— Eu
te conheço — disse ele. — Não posso te enxergar, mas sei quem
és. Vou me queixar pro guarda.
A
voz infantil continuou, nítida e alegre:
Ai,
Dudu
Ai,
Dudu
Safado,
danado, malvado Dudu
Teu
doce tava estragado.
— O
guarda vai saber disso — disse o tio Dudu. — O guarda sabe o que
ele tem que fazer.
— Hoje
tem doce estragado, tio Dudu? — perguntou a voz infantil, cuidando
para não aparecer.
— O
homem é perseguido — queixou-se o tio Dudu em altos brados,
seguindo adiante. — O homem tem o manto da dignidade arrancado e
destruído. Ah, Senhor, perdoai-os porque não sabem o que fazem.
Mais
abaixo na Estrada do Rei havia mais cantoria, vinda dos quartos do
sobrado do Ponce de León. Um negrinho passou correndo pelo caminho
de coral.
— Deu
uma briga, seu Tom — disse. — Ou troço parecido. Um moço que
chegou de iate andou atirando coisas pela janela.
— Que
coisas, Louis?
— De
tudo quanto é jeito, seu Tom. O moço atira fora tudo o que
encontra. A moça tentou fazer ele parar, ele disse que também
atirava ela.
— De
onde veio o moço?
— Lá
do norte. Um baita homem. Disse que pode comprar e vender a ilha
inteira. Acho que ele vai conseguir um preço bem barato se não
parar de fazer bagunça como ele tá fazendo.
— O
delegado não tomou nenhuma atitude, Louis?
— Não
tomou, não, senhor, seu Tom. Ninguém mandou chamar o delegado
ainda. Mas do modo que a coisa vai, tá na hora de ele vir.
— Você
anda com eles, Louis? Eu precisava que você me arrumasse umas iscas
pra amanhã.
— Sim,
senhor, eu arrumo isca pro senhor, seu Tom. Não se preocupe. Não
saio de perto deles. Contrataram-me pra levar eles pra pescar hoje de
manhã, e não arredei mais o pé de junto deles. Só que não foram
pescar coisa nenhuma. Não, senhor. A não ser que atirar pratos,
xícaras, canecas e cadeiras seja pescar. Toda vez que o seu Bobby
traz a conta, ele rasga e chama seu Bobby de gatuno, larápio,
canalha e patife.
— Parece
um moço difícil, Louis.
— Seu
Tom, ele é o maior desgraçado que já vi, fora de comparação.
Pediu pra eu cantar pra eles. O senhor sabe que não canto tão bem
como o Josey, mas eu faço o que posso e às vezes canto até melhor
do que posso. Eu estava cantando como eu posso. Sabe como é. O
senhor já me ouviu cantar. Pois ele só queria que eu cantasse
aquele negócio de
mamãe-não-quer-ervilha-nem-arroz-nem-azeite-de-dendê. Sem parar. A
música é velha, eu cansei e então falei pra ele: “Moço, eu sei
música nova. Música da boa. Música bonita. E sei música velha,
que nem a da morte do John Jacob Astor no Titanic, quando ele foi ao
fundo por causa do iceberg e queria cantar elas em vez dessa
nem-ervilha-nem-arroz, se o senhor deixar.” Falei com bons modos,
educado que só vendo. Como sei que o senhor falaria. Aí então o
tal moço disse: “Olha aqui, seu negrinho cretino e ignorante, eu
tenho mais lojas, fábricas e jornais do que o John Jacob Astor tinha
penicos pra, o senhor sabe a palavra, dentro, e eu vou te pegar e
enfiar a tua cabeça nesses penicos se tu tentares dizer-me o que eu
quero escutar.” Aí então a moça que tava com ele disse: “Meu
bem, não precisa ser tão grosseiro assim com o rapaz. Eu achei que
ele cantou muito bem e gostaria de ouvir alguma música nova.” E o
moço falou: “Olha aqui. Você não vai ouvir, e ele vai cantar.”
Seu Tom, o cara é um troço. Mas a moça que tava com ele só falou:
“Ah, meu bem, como você é difícil.” Seu Tom, ele é mais
difícil que motor de locomotiva pra mico de árvore que mal saiu da
barriga da macaca. Desculpe se tô falando demais. É que o negócio
me enfezou. Ele deixou ela se sentindo muito chateada.
— O
que é que você vai fazer agora com eles, Louis?
— Fui
buscar pérolas de caramujo — disse ele.
Tinham
parado na sombra de um coqueiro enquanto ele falava. Tirou do bolso
um pano muito limpo, desdobrando-o para mostrar meia dúzia de
pérolas que não pareciam pérolas, brilhantes, de um rosa nacarado,
que às vezes os nativos encontram quando limpam as conchas e que
nenhuma mulher que Thomas Hudson conhecia, com exceção da rainha
Mary da Inglaterra, jamais valorizava como presente. Naturalmente
Thomas Hudson não podia imaginar que conhecesse a rainha Mary, a não
ser pelos jornais, fotografias e um artigo publicado no New
Yorker, mas o simples fato de gostar de pérolas de caramujo
dava-lhe a sensação de que a conhecia melhor que várias pessoas
que conhecia há muito tempo. A rainha Mary gosta de pérolas de
caramujo, e a ilha hoje à noite vai festejar o aniversário dela,
pensou. Mas parecia-lhe que as pérolas não iam contribuir em nada
para melhorar a disposição da “moça que tava com o moço”.
Além disso, era bem possível que a rainha Mary tivesse dito aquilo
só para agradar os súditos das Bahamas.
Foram
caminhando até o Ponce de León, e Louis ia dizendo:
— A
moça começou a chorar, seu Tom. Começou a chorar pra valer. Então
eu me ofereci pra ir lá no Roy buscar umas pérolas de caramujo pra
ela escolher.
— Decerto
vão deixá-la muito contente — disse Thomas Hudson. — Se é que
ela gosta desse tipo de pérola.
— Tomara
que sim. Vou levar lá pra cima agora mesmo.
Thomas
Hudson entrou no bar, fresco e quase escuro depois da claridade do
caminho de coral, e tomou um gim-tônica com um pedaço de casca de
lima misturada com umas gotas de angustura. Seu Bobby, parado atrás
do balcão, estava com cara de enterro. Quatro rapazes negros jogavam
bilhar erguendo de vez em quando a mesa, quando se fazia necessário
executar uma carambola difícil. A cantoria no sobrado tinha parado,
e o salão se achava muito silencioso, só se ouvindo o estalo das
bolas. Dois membros da tripulação do iate ancorado no cais estavam
no bar, e, quando os olhos de Thomas Hudson se acostumaram com a luz,
o ambiente se encontrava em penumbra, refrescante e agradável. Louis
desceu a escada.
— O
moço tá dormindo — disse. — Deixei as pérolas com a moça que
tava com ele. Ela ficou olhando pra elas e chorando.
Notou
que os dois marinheiros do iate se entreolharam, mas nenhum deles
disse nada. Continuou ali parado, segurando o copo grande com a
bebida agradavelmente ácida, saboreando o primeiro gole, que o fez
lembrar de Tanga, Mombasa, Lambu e toda aquela costa, dando-lhe uma
súbita nostalgia da África. Cá estava ele, instalado na ilha,
quando podia andar perfeitamente na África. Que diabo, pensou,
sempre posso ir pra lá quando quiser. A gente tem que se sentir bem
é no íntimo, pouco importa o lugar onde se está. Você está se
saindo muito bem aqui mesmo.
— Tom,
você gosta mesmo do gosto desse troço? — perguntou-lhe Bobby.
— Lógico.
Senão não bebia.
— Uma
vez eu abri uma garrafa por engano e tinha gosto de quinino.
— É
que contém quinino.
— As
pessoas sem dúvida são bem loucas — disse Bobby. — Um homem
pode beber tudo o que quer. Tem dinheiro pra comprar. A gente imagina
que ele queira tirar algum proveito, e ele vai e estraga gim do bom
misturando com uma espécie de bebida hindu que contém quinino.
— Eu
acho o gosto ótimo. Gosto do gosto de quinino com casca de lima.
Acho que ele abre, por assim dizer, os poros do estômago ou coisa
que valha. Estimula mais que qualquer outro drinque com gim. Dá uma
sensação ótima.
— Sei.
A bebida sempre lhe dá uma sensação ótima. A mim me dá uma
sensação horrível. Onde tá o Roger?
Roger
era o amigo de Thomas Hudson que tinha uma cabana de pesca na outra
ponta da ilha.
— Não
demora deve aparecer por aí. Vamos jantar com o Johnny Goodner.
— Por
que é que gente como você, o Roger Davis e o Johnny Goodner, que já
andaram por tudo quanto é parte, ficam nessa ilha é que eu não
sei.
— A
ilha é ótima. Você também fica, não fica?
— Fico
pra ganhar a vida.
— Podia
ganhar em Nassau.
— Nassau,
porra. Aqui é mais divertido. Esta ilha é boa pra gente se
divertir. Já ganhei muito dinheiro aqui também.
— Eu
gosto de morar aqui.
— Claro
— disse Bobby —, eu também gosto. Você sabe disso. Desde que dê
pra ganhar a vida. Você vende todos esses quadros que vive pintando?
— Agora
eles estão vendendo bem.
— Gente
pagando dinheiro por retratos do tio Dudu. Retratos denegros dentro
d’água. Negros em terra. Negros em barcos. Barcos de pescar
tartaruga. Barcos de pescar esponja. Tempestades se armando.
Trombas-d’água. Escunas indo a pique. Escunas em estaleiros. Tudo
o que podiam ver de graça. Isso de fato tem saída?
— Lógico
que tem. Você faz uma exposição por ano em Nova York, e todo mundo
compra.
— Em
leilão?
— Não.
O proprietário da galeria que faz a exposição estipula um preço
pra cada quadro. O pessoal compra. De vez em quando os museus ficam
com um.
— Não
dava pra você vender pessoalmente?
— Claro
que dá.
— Eu
gostaria de comprar uma tromba-d’água — disse Bobby. — Uma
tromba-d’água danada de grande. Preta como o diabo. Talvez fosse
melhor duas trombas-d’água passando com estrondo pelos baixios,
fazendo um barulhão desgraçado. Engolindo toda a água que
encontram pela frente e deixando a turma morta de medo. Eu lá na
canoa, pescando esponja, sem poder fazer nada. A tromba-d’água
arrancando o copo d’água bem da minha mão. Quase levando a canoa
pelos ares. Uma tromba-d’água do rabo, inventada por Deus. Quanto
custaria um assim? Eu podia pendurar aqui mesmo. Ou então lá em
casa, se não deixasse a minha velha apavorada.
— Depende
do tamanho.
— Faz
do tamanho que você quiser — pediu Bobby, com largueza. — Um
bruto quadro desses nunca é grande que chega. Põe logo três
trombas-d’água. Uma vez eu vi três trombas-d’água bem de perto
lá pela ilha Andros. Subiam até lá em cima no céu, e uma atirou o
barco dum pescador de esponja pelos ares, e quando caiu o motor
entrou pelo casco adentro.
— Custaria
só o preço da tela — disse Thomas Hudson. — Eu cobraria apenas
a tela.
— Por
Deus, então compre uma tela enorme — disse Bobby. — Vamos pintar
trombas-d’água que farão o pessoal sair correndo de medo deste
bar e ir bem pra longe desta droga de ilha.
Empolgado
com a grandeza do projeto, as possibilidades mal começavam a se
abrir para ele.
— Tom,
meu rapaz, você não acha que dava pra pintar um furacão completo?
Pintá-lo bem no meio do vendaval, quando já soprou de um lado,
acalmou, e está recém-começando do outro? Pondo de tudo, desde os
negros chicoteados pela ventania nos coqueiros até os navios
arrastados pro topo da ilha? Pondo o hotel grande levado embora.
Pondo tudo quanto é coisa cortando o ar feito lança, as carcaças
de pelicanos voando como se fizessem parte das rajadas de chuva. Faz
o barômetro baixar pra vinte e seis e explode as velocidades do
vento. Faz o mar quebrar na marca de dez braças e a lua surgir no
meio do temporal… Faz aparecer um maremoto submergindo o que ainda
estiver vivo. Faz as mulheres serem arrastadas nuas pro mar, com a
roupa arrancada pelo vendaval. Faz os negros mortos boiando por toda
a parte e voando pelos ares.
— Vai
dar uma tela grande pra cachorro — disse Thomas Hudson.
— A
tela que se dane! — exclamou Bobby. — Eu consigo uma vela mestra
de escuna. Vamos pintar os quadros mais danados de grande no mundo e
teremos os nossos nomes gravados na história. Até agora você só
pintou uns quadrinhos de nada.
— Vou
dedicar-me às trombas-d’água — prometeu Thomas Hudson.
— Ótimo
— disse Bobby, detestando ter que interromper o grande projeto. —
Isso é o que vale. Mas, palavra, a gente pode fazer uns quadros
fabulosos com a experiência que nós dois temos e a prática que
você já adquiriu.
— Vou
começar as trombas-d’água amanhã.
— Perfeito
— disse Bobby. — Já é um início. Mas, por Deus, eu também
gostaria que a gente pintasse aquele furacão. Alguém já pintou o
naufrágio do Titanic?
— Não
numa escala realmente grande.
— Pois
é. Taí um assunto que sempre empolgou minha imaginação. Você
podia captar a frieza do iceberg se afastando depois de bater no
navio. Pintar o troço todo no meio de um nevoeiro denso. Incluir
todos os detalhes. Pegar aquele sujeito que se meteu no salva-vidas
com as mulheres pensando que poderia ajudar porque estava habituado a
pilotar o iate dele. Pintá-lo entrando no bote, pisando em cima de
uma porção de mulheres em tamanho natural. Ele me fazlembrar esse
camarada que está agora aí em cima. Por que você não vai lá e o
desenha enquanto ele tá dormindo e depois aproveita pro quadro?
— Acho
melhor a gente começar pelas trombas-d’água.
— Tom,
eu quero que você seja um grande pintor — disse Bobby. —
Deixe todas essas titicas de galinha de lado. Você está
desperdiçando seu talento. Ora, a gente imaginou junto três quadros
em menos de meia hora, e eu ainda nem comecei a desenhar de cabeça.
E o que é que você andou fazendo até agora? Pintando negro virando
tartaruga marinha na praia. Se ao menos fosse uma tartaruga-verde.
Não. Uma reles tartaruga marinha. Ou pintando dois negros numa canoa
mexendo numa redada de lagostas. Você desperdiça sua vida, rapaz.
Parou
para tomar um gole às pressas de um copo que tinha embaixo do
balcão.
— Este
não conta — disse. — Você nunca me viu tomar este. Olhe, Tom,
são três grandes quadros. Quadros fabulosos. Universais. Próprios
pra serem pendurados no Palácio de Cristal ao lado das obras-primas
de todos os tempos. Menos o primeiro, naturalmente, que é um projeto
modesto. Mas a gente ainda nem começou. Não há motivo pra não se
pintar um que liquide com todos. Que você acha disso?
Tomou
outro, rapidíssimo.
— Disso
o quê?
Debruçou-se
sobre o balcão para que os outros não pudessem escutar.
— Não
tire o corpo fora — disse. — Não se assuste com a magnitude do
projeto. Você precisa ter visão, Tom. A gente pode pintar o Fim do
Mundo. — Fez uma pausa. — Em tamanho natural.
— Com
os diabos! — exclamou Thomas Hudson.
— Não.
Antes dos diabos. Os diabos mal estão começando a aparecer. Os
fiéis vão empurrando a igreja deles morro acima, todos falando numa
língua que ninguém entende. Tem um demônio que vai fisgando um por
um com o forcado e empilhando numa carroça. A turma grita, geme e
pede socorro a Jeová. Dá negro caído por tudo quanto é canto, com
moreias, lagostas e caranguejos se arrastando no meio e por cima
deles. Há uma espécie de escotilha aberta, gigantesca, por onde os
diabos atiram os negros, os padres, os fiéis e tudo mais,que somem
de vista. A água se levanta em torno da ilha inteira, e as cornudas,
os tubarões-sombreiros, os cações e os esqualos rondam por perto,
papando os que tentam fugir a nado pra não serem fisgados e jogados
na imensa escotilha aberta que solta rolos de fumaça. Os beberrões
tomam seus últimos porres e batem com as garrafas nos diabos. Mas os
diabos continuam fisgando-os com os forcados, ou então eles se veem
engolfados pelo mar bravio, agora cheio de baleias, grandes
tubarões-brancos, baleias assassinas e outros peixes enormes, que
giram ao redor do lugar em que os tubarões maiores estraçalham o
pessoal que caiu n’água. O topo da ilha fica atulhado de cães e
gatos, que os diabos também vão fisgando, e os cães se encolhem,
aos uivos, e os gatos correm na disparada metendo as garras nos
diabos, de pelo arrepiado, e por fim mergulham no mar, nadando de um
jeito que você nem queira saber. Às vezes um tubarão abocanha um,
e a gente vê o gato indo ao fundo. Mas a maioria consegue escapar.
“Começa
a sair um calor medonho da escotilha, e os demônios têm que
arrastar as pessoas lá pra perto porque quebraram os forcados ao
tentar fisgar alguns dos padres. Você e eu estamos parados no centro
do quadro, assistindo a tudo na maior calma. Você toma anotações,
e eu refresco a garganta, oferecendo-lhe de quando em quando um
trago. Uma vez que outra, um diabo, todo molhado de suor, passa rente
por nós puxando um padre que luta pra cravar os dedos na areia e não
ser jogado dentro da escotilha, clamando por Jeová, e o diabo então
diz: ‘Com licença, seu Tom. Com licença, seu Bobby. Tô muito
ocupado hoje.’
“Eu
ofereço um trago ao diabo quando ele volta suado e encardido, pra
buscar outro padre, e ele responde: ‘Não, obrigado, seu Bobby.
Nunca toco em bebida quando estou trabalhando.’
“Pode
dar um quadro infernal, se a gente conseguir pôr todo esse movimento
e grandeza nele, Tom.”
— Creio
que por hoje fizemos praticamente tudo o que é possível fazer em
matéria de plano geral.
— Por
Deus, acho que você tem razão — disse Bobby. — Esse plano geral
até me deixou com sede.
— Houve
um cara chamado Bosch que pintava num estilo muito parecido com esse.
— Aquele
dos motores de explosão.
— Não.
Hieronymus Bosch. Da antiga. Bom à beça. Pieter Bruegel também
trabalhava nesse gênero.
— Também
da antiga?
— Da
antiga à beça. Muito bom. Você ia gostar.
— Ah,
que joça — disse Bobby. — Ninguém da antiga se compara conosco.
Além do mais, o mundo ainda não se acabou, portanto como é que ele
podia entender do assunto mais do que nós?
— Vai
ser difícil pra burro fazer melhor que ele.
— Não
acredito de jeito nenhum — disse Bobby. — Nós temos aí um
quadro que liquidava com o negócio dele.
— Que
tal mais um destes?
— Ah
é, porra. Já ia esquecendo que isto aqui é um bar. Deus salve a
rainha, Tom. Também esquecemos a data de hoje. Tome aqui, beba um
por minha conta e brindemos a ela.
Serviu-se
de um copinho de rum e entregou a Thomas Hudson a garrafa amarela de
Gim Booth’s, limas num prato, uma faca e uma garrafa de Água
Tônica Hindu da Schweppes.
— Prepare
você mesmo essa droga de drinque. Pro inferno com esses drinques
cheios de frescuras.
Depois
que Thomas Hudson aprontou a bebida, sacudindo dentro umas gotas de
bíter da garrafa cuja rolha tinha uma pena de gaivota, ergueu o copo
e olhou para o outro canto do bar.
— O
que é que vocês dois estão tomando? Digam o nome, se não for
complicado.
— “Cabeça
de Cachorro” — respondeu um dos marinheiros.
— Então,
“Cabeça de Cachorro” — disse Bobby, estendendo o braço para o
barril de gelo e entregando-lhes as duas garrafas geladas de cerveja.
— Não tem mais copo. Os beberrões passaram o dia inteiro jogando
copos pela janela. Tá todo mundo de bebida pronta? Senhores, à
rainha. Tenho a impressão de que ela não liga muito pra esta ilha e
até acho que nem se daria bem aqui. Mas à rainha, senhores. Que
Deus a abençoe.
Todos
beberam à saúde dela.
— Deve
ser uma grande mulher — disse Bobby. — Meio empertigada demais
pro meu gosto. Sempre tive um fraco pela rainha Alexandra. Bonitona.
Mas vamos procurar honrar o aniversário da rainha. Esta ilha pode
ser pequena, mas é patriótica. Teve um sujeito daqui que foi na
última guerra e perdeu um braço. Não dá pra ser mais patriótico
do que isso.
— Aniversário
de quem que ele disse que era? — perguntou um dos marinheiros.
— Da
rainha Mary da Inglaterra — explicou Bobby. — A mãe do atual rei
imperador.
— Não
foi a tal que deu nome ao Queen Mary? — perguntou o outro.
— Tom
— disse Bobby. — O próximo brinde nós dois vamos fazer
sozinhos.
Ernest Hemingway, in As ilhas da corrente
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