Na
engrenagem metropolitana, as operações mais singelas, desde que
fujam à rotina, exigem longa e meditada preparação. Pelo que,
desde novembro, o jornal anunciava: “Encomendem seus perus com
antecedência à granja Castorina, são maiores e melhores”.
A
Dona da Casa julgou de seu dever acudir à advertência, e pegou do
telefone, que do outro lado estava sempre em comunicação: a cidade
inteira, possuída do espírito da previdência, ou de simples
esganação natalina, encomendava peru. Depois de várias tentativas,
conseguiu inscrever-se.
O
peru chegou a seu tempo, nem maior nem menor, nem gordo nem magro,
principalmente silencioso, sem o ar ofendido que têm os perus vivos.
Chegou, com a fatura que lhe atestava os quilos e os tarifava em meio
milhar de cruzeiros. A Dona da Casa respirou: há perus que falham,
causando aflições e vergonhas imensas. Gratificou o portador e
levou célere para o refrigerador o objeto de seus cuidados.
Aí
apareceu a exímia Cesária, de Campo Grande, convocada por sua
perícia em lidar com viventes de pluma e crista. Lançou o olhar
douto sobre a peça e iniciou os preparativos.
A
Dona da Casa, sem menosprezo ao saber de experiências feito de
Cesária, sugeriu-lhe que nos pormenores seguisse a receita de Mário
de Andrade, colhida de uma francesa e publicada nos Contos novos:
deve o peru ter duas farofas, a gorda, com os miúdos, e a seca,
douradinha, com bastante manteiga; o papo será recheado com a farofa
gorda, ameixas-pretas, nozes e um cálice de xerez. Assim foi feito.
Tinha
a Dona da Casa empenho em apresentar um peru distinto, pois comeria à
sua mesa o Argentino, muito versado na espécie, e que uma vez a
presenteara com um imenso pavó incrustado em gelo seco, que
atravessara triunfante o céu de três países e durante um mês
alimentara a família e convidados. O de agora era uma ave qualquer,
mas o toque literário da receita lhe imprimia o quid
desejado.
À
ceia, os dois casais se preparavam para a mastigação ritual, e o
trinchante ia funcionar, quando um nariz, por hábito, se aproximou
da superfície de ouro; deteve-se, intrigado: o cheiro não
correspondia à aparência; era peculiar e inoportuno. Convidado a
opinar, o Argentino sentenciou:
— Podrido.
Estava.
O fenômeno manifestava-se na região posterior. As partes nobres,
ainda imunes, exalavam bom odor, mas, dentro, uma luta surda lavrava,
semelhante a essas comoções nacionais intestinas que ninguém
percebe mas o governo denuncia.
A
travessa foi repelida com temor, como se um verme fosse desprender-se
dali, para desejar feliz Natal. Houve que reanimar Cesária,
isentando-a de culpa: como dissera na televisão o dr. Arruda, médico
da prefeitura, cinco mil perus podres, pelo menos, são vendidos para
a ceia de Natal. Ninguém percebe a avaria senão depois de assada a
ave. Acontece.
Comeu-se
o que havia a mais, com bom humor, situações heroicas, remédios
heroicos. Contou-se a história do nosso Jacinto de Tormes: na hora
de servir, o garçom escorrega, pimba: peru no chão. A hostess,
imperturbável, ordena: “Joaquim, leve este peru e traga outro”.
Com aquele não se podia fazer o mesmo; era preciso jogá-lo fora.
Aí
começa outra história. A copeira informa que não havia onde
guardar o peru. O caminhão de lixo não passava há três dias; os
depósitos, cheios; o calor noturno aumentava…
O
Dono da Casa confabulou com o Argentino e deliberaram remover com
urgência la basura. Enrolaram-na em folhas de jornal e, muito
dignos, saíram para a noite, com dois pacotes: o nacional com a
carne, o outro com a farofa.
Caminharam
em busca de um terreno baldio, mas este não havia ou estava ocupado
por namorados sem lar. Entreolharam-se:
— El
mar!
O
mar desatava-se à frente deles, purificador, cúmplice. Diante de
Cosme e Damião, antes que estes os interpelassem, foram resmungando:
“Comida para os pobres”. Na praia, balanços e escorregadores
estavam cheios de moças vindas da missa do galo. Sentaram-se num
banco e consideraram a situação com realismo.
— Se
jogarmos o peru no mar, pensam que é feto ou macumba, junta gente e
nos prendem.
— Y
entonces?
Disfarçaram,
fazendo deslizar os pacotes para debaixo do banco; e foram saindo de
mansinho. Os rádios berravam “noite feliz”.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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