terça-feira, 26 de março de 2024

Parte Um | Trêmulo e casto


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Ele me deixa sair, mas só depois de resmungar e falar atabalhoadamente até conseguir sair da cama – segurando os pijamas e o roupão de banho, encolhendo a barriga onde ela dói, onde algum tipo de hérnia escondida o incomoda – pobre sujeito doente, quase sessenta anos de idade e segurando a onda de suas doenças sem incomodar ninguém – nascido em Cincinatti, crescido nos Barcos a Vapor do Rio Vermelho. (Perna vermelha?3 Suas pernas brancas como neve) –

Vejo que a chuva parou e estou com sede e bebi duas xícaras de água de Old Bull (fervida, e guardada em uma jarra) – atravesso a rua em meus sapatos molhados e compro uma Spur-Cola bem gelada e a bebo a caminho do meu quarto – Os céus estão se abrindo, talvez faça sol à tarde, o dia está quase fantástico e atlântico, como um dia no mar, em frente à costa de Firth na Escócia – E brado bandeiras imperiais em meus pensamentos e subo correndo os dois lances de escada até meu quarto, o último lance, um esqueleto de metal em ruínas que range e range em seus pregos, cheio de areia, chego no chão de adobe do telhado, o Tejado, e caminho por pequenas poças escorregadias perto do parapeito do pátio aberto com só meio metro de altura então você pode facilmente cair três andares e rachar o crânio no chão de lajotas vermelhas onde americanos rangem os dentes e discutem às vezes em festas barulhentas na madrugada, no lusco-fusco do amanhecer – Eu podia cair, Old Bull quase caiu quando morou um mês no telhado, as crianças sentam sobre a pedra confortável do parapeito de meio metro de altura e conversam e brincam, o dia inteiro correndo em volta daquela coisa e escorregando, e nunca gosto de olhar – Chego ao meu quarto depois de duas curvas do Buraco e destranco meu cadeado que está pendurado em pregos enferrujados meio soltos (uma vez saí e deixei o quarto aberto o dia inteiro) – Entro e bato a porta de madeira úmida com a chuva e a chuva amoleceu a madeira e a porta mal se ajusta no alto – Visto minhas calças secas de vagabundo e duas camisas de vagabundo grandes e vou para a cama com meias grossas e termino com a parada e a deixo sobre a mesa e digo: “Ah”, e esfrego minha boca e olho por um instante para os buracos em minha porta que mostram o céu da manhã de domingo lá fora e escuto sinos de igreja lá na alameda Orizaba e as pessoas estão indo para a igreja e vou dormir, compenso isso depois, boa-noite.

‘‘Abençoado Senhor, Tu que amas toda a vida sensível.”
Por que tenho de pecar e fazer o sinal-da-cruz?
Nem um dentre o vasto acúmulo de conceitos, de tempos imemoriais ao presente e até o futuro infinito, nenhum deles é atingível.”
É a velha questão de “Sim, a vida não é real” mas você vê uma mulher bonita ou algo que não consegue parar de desejar porque está ali na sua frente – Essa mulher bonita de 28 anos em pé à minha frente com seu corpo frágil (“Eu vos ponho em meu pescoço [um peitilho] para que ninguém olhe e veja meu belo corpo,” ela não se considera bonita) e aquele rosto tão expressivo, de dor e beleza que sem dúvida ajuda na construção deste mundo fatal – um belo alvorecer, que faz você parar nas areias e olhar para o mar ouvindo em seus pensamentos a Música do Fogo Mágico de Wagner – a fisionomia frágil e santificada da pobre Tristessa, a bravura trêmula de seu corpinho consumido pela droga que um homem podia jogar três metros para o alto – o fardo da morte e da beleza – uma Forma inteiramente pura diante de mim, todos os abalos e torturas da beleza sexual, os seios, que afloram no corpo, toda aquela carne de mulher boa de abraçar, algumas delas de um metro e oitenta de altura, e dormir sobre suas barrigas à noite como um cochilo em uma margem onírica de mulher – Como Goethe aos oitenta, você conhece a futilidade do amor e dá de ombros – Você dá de ombros para o beijo quente, a língua e os lábios, o puxão na cinturinha fina, toda aquela coisa quente e flutuante contra você, abraçando apertado – a mulherzinha – pois os rios correm e os homens caem das escadas – Os dedos magros marrons e frios de Tristessa, lentos e despreocupados e preguiçosos, como o encontro dos lábios A Noite Espanhola de Tristessa de seu profundo buraco do amor, as touradas em seus sonhos com você, a rosa preguiçosa e molhada contra a face lânguida E toda a beleza concomitante de uma mulher linda que um homem jovem em um país distante devia desejar satisfazer – Eu estava viajando em círculos na América do Norte em meio a uma tragédia sombria.
[...]

Jack Kerouac, in Tristessa

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