[...]
Ele
me deixa sair, mas só depois de resmungar e falar atabalhoadamente
até conseguir sair da cama – segurando os pijamas e o roupão de
banho, encolhendo a barriga onde ela dói, onde algum tipo de hérnia
escondida o incomoda – pobre sujeito doente, quase sessenta anos de
idade e segurando a onda de suas doenças sem incomodar ninguém –
nascido em Cincinatti, crescido nos Barcos a Vapor do Rio Vermelho.
(Perna vermelha?3 Suas pernas brancas como neve) –
Vejo
que a chuva parou e estou com sede e bebi duas xícaras de água de
Old Bull (fervida, e guardada em uma jarra) – atravesso a rua em
meus sapatos molhados e compro uma Spur-Cola bem gelada e a bebo a
caminho do meu quarto – Os céus estão se abrindo, talvez faça
sol à tarde, o dia está quase fantástico e atlântico, como um dia
no mar, em frente à costa de Firth na Escócia – E brado bandeiras
imperiais em meus pensamentos e subo correndo os dois lances de
escada até meu quarto, o último lance, um esqueleto de metal em
ruínas que range e range em seus pregos, cheio de areia, chego no
chão de adobe do telhado, o Tejado, e caminho por pequenas poças
escorregadias perto do parapeito do pátio aberto com só meio metro
de altura então você pode facilmente cair três andares e rachar o
crânio no chão de lajotas vermelhas onde americanos rangem os
dentes e discutem às vezes em festas barulhentas na madrugada, no
lusco-fusco do amanhecer – Eu podia cair, Old Bull quase caiu
quando morou um mês no telhado, as crianças sentam sobre a pedra
confortável do parapeito de meio metro de altura e conversam e
brincam, o dia inteiro correndo em volta daquela coisa e
escorregando, e nunca gosto de olhar – Chego ao meu quarto depois
de duas curvas do Buraco e destranco meu cadeado que está pendurado
em pregos enferrujados meio soltos (uma vez saí e deixei o quarto
aberto o dia inteiro) – Entro e bato a porta de madeira úmida com
a chuva e a chuva amoleceu a madeira e a porta mal se ajusta no alto
– Visto minhas calças secas de vagabundo e duas camisas de
vagabundo grandes e vou para a cama com meias grossas e termino com a
parada e a deixo sobre a mesa e digo: “Ah”, e esfrego minha boca
e olho por um instante para os buracos em minha porta que mostram o
céu da manhã de domingo lá fora e escuto sinos de igreja lá na
alameda Orizaba e as pessoas estão indo para a igreja e vou dormir,
compenso isso depois, boa-noite.
‘‘Abençoado
Senhor, Tu que amas toda a vida sensível.”
Por
que tenho de pecar e fazer o sinal-da-cruz?
“Nem
um dentre o vasto acúmulo de conceitos, de tempos imemoriais ao
presente e até o futuro infinito, nenhum deles é atingível.”
É
a velha questão de “Sim, a vida não é real” mas você vê uma
mulher bonita ou algo que não consegue parar de desejar porque está
ali na sua frente – Essa mulher bonita de 28 anos em pé à minha
frente com seu corpo frágil (“Eu vos ponho em meu pescoço [um
peitilho] para que ninguém olhe e veja meu belo corpo,” ela não
se considera bonita) e aquele rosto tão expressivo, de dor e beleza
que sem dúvida ajuda na construção deste mundo fatal – um belo
alvorecer, que faz você parar nas areias e olhar para o mar ouvindo
em seus pensamentos a Música do Fogo Mágico de Wagner – a
fisionomia frágil e santificada da pobre Tristessa, a bravura
trêmula de seu corpinho consumido pela droga que um homem podia
jogar três metros para o alto – o fardo da morte e da beleza –
uma Forma inteiramente pura diante de mim, todos os abalos e torturas
da beleza sexual, os seios, que afloram no corpo, toda aquela carne
de mulher boa de abraçar, algumas delas de um metro e oitenta de
altura, e dormir sobre suas barrigas à noite como um cochilo em uma
margem onírica de mulher – Como Goethe aos oitenta, você conhece
a futilidade do amor e dá de ombros – Você dá de ombros para o
beijo quente, a língua e os lábios, o puxão na cinturinha fina,
toda aquela coisa quente e flutuante contra você, abraçando
apertado – a mulherzinha – pois os rios correm e os homens caem
das escadas – Os dedos magros marrons e frios de Tristessa, lentos
e despreocupados e preguiçosos, como o encontro dos lábios A Noite
Espanhola de Tristessa de seu profundo buraco do amor, as touradas em
seus sonhos com você, a rosa preguiçosa e molhada contra a face
lânguida E toda a beleza concomitante de uma mulher linda que um
homem jovem em um país distante devia desejar satisfazer – Eu
estava viajando em círculos na América do Norte em meio a uma
tragédia sombria.
[...]
Jack Kerouac, in Tristessa
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