Beijar
os nomes
Quando
na Argentina se inaugurou o memorial às vítimas da ditadura, as
mães que eram nossas guias mostravam-nos, poderia dizer-se que com o
orgulho com que as mães costumam falar dos seus filhos: “Olha,
este é o meu filho, ali está o de Juan Gelman, este é um
sobrinho…”. Eram simplesmente nomes gravados na pedra, nomes
beijados mil vezes, eu próprio os beijei, como se beijavam em Madrid
os nomes das vítimas do pior atentado ocorrido na Europa hoje, 11 de
Março, cinco anos depois de um dia que dificilmente poderemos
esquecer porque o terror cavou bem fundo, até ao coração da
sociedade espanhola. Para conseguir, seguramente, que desprezássemos
mais as suas causas e, de uma vez para sempre, o método que
empregam, o terror como único argumento, malditos sejam.
Hoje
via as mães abraçadas, as vítimas contemplando-se, querendo,
talvez, ver no olhar dos outros o olhar dos seus desaparecidos.
Recordei que há tempos tinha dito que essa imagem era lacerantemente
bela. Pilar pede que a recupere. Com o meu abraço às vítimas e o
meu beijo aos nomes escritos na nossa memória.
Em
Espanha, solidarizar-se é um verbo que todos os dias se conjuga
simultaneamente nos seus três tempos: presente, passado e futuro. A
lembrança da solidariedade passada reforça a solidariedade de que o
presente necessita, e ambas, juntas, preparam o caminho para que a
solidariedade, no futuro, volte a manifestar-se em toda a sua
grandeza. O 11 de Março não foi só um dia de dor e de lágrimas,
foi também o dia em que o espírito solidário do povo espanhol
ascendeu ao sublime com uma dignidade que profundamente me tocou e
que ainda hoje me emociona quando o recordo. O belo não é apenas
uma categoria do estético, podemos encontrá-lo também na acção
moral. Por isso direi que poucas vezes, em qualquer lugar do mundo, o
rosto de um povo ferido pela tragédia terá tido tanta beleza.
José Saramago, in O caderno
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