sexta-feira, 22 de março de 2024

O adivinho




“— e vi descer sobre os homens uma grande tristeza. Os melhores entre eles se cansaram de suas obras.
Uma doutrina surgiu, acompanhada de uma fé: ‘Tudo é vazio, tudo é igual, tudo foi!’.
E de todos os montes ecoou: ‘Tudo é vazio, tudo é igual, tudo foi!’.87
É certo que fizemos a colheita: mas por que nossos frutos ficaram podres e escuros? Que coisa caiu da lua má, na última noite?
Todo o trabalho foi em vão, tornou-se veneno o nosso vinho, o mau-olhado crestou nossos campos e corações.
Todos nos tornamos secos; se o fogo cair sobre nós, seremos reduzidos a cinzas: — sim, o próprio fogo tornamos cansado.
Todas as fontes secaram para nós, também o mar recuou. Todo o chão quer se abrir, mas a profundeza não quer devorar!
Ah, onde há ainda um mar onde possamos nos afogar?’: eis como soa o nosso lamento — por sobre pântanos rasos.
Em verdade, ficamos cansados demais para morrer; ainda estamos acordados e prosseguimos vivendo — em sepulcros!” —

Assim escutou Zaratustra um adivinho falar; e a profecia deste tocou seu coração e o transformou. Ele vagueava triste e cansado, e tornou-se igual àqueles de quem o adivinho falara.
Em verdade”, disse ele a seus discípulos, “falta bem pouco, e breve chegará esse longo crepúsculo. Ah, como salvarei minha luz através dele?
A fim de que não sufoque em meio a essa tristeza! Para mundos distantes ela deverá ser uma luz, e também para as noites mais distantes!”
De tal maneira afligido no coração, Zaratustra vagueava; e por três dias não tomou alimento nem bebida, não teve paz e perdeu a fala. Por fim sucedeu que mergulhou num sono profundo. Mas seus discípulos ficaram ao seu redor em longas vigílias, aguardando, preocupados, que ele acordasse, novamente falasse e convalescesse de sua aflição.
E este é o discurso que Zaratustra pronunciou ao despertar; mas de uma imensa distância sua voz parecia chegar aos discípulos.
Escutai o sonho que tive, ó amigos, e ajudai-me a decifrar seu sentido!
É ainda um enigma para mim, este sonho; seu sentido está escondido nele e aprisionado, ainda não voa acima dele com asas desimpedidas.
Sonhei que havia renunciado a toda a vida. Tornara-me um noturno guardião de túmulos, na solitária cidadela da morte.
Lá em cima eu zelava por seus ataúdes: as abafadas abóbadas estavam plenas desses troféus de vitória. Através de ataúdes de vidro, contemplava-me a vida vencida.
Eu respirava o cheiro de eternidades empoeiradas: entorpecida e empoeirada jazia minha alma. E quem poderia ali arejar sua alma?
A claridade da meia-noite estava sempre ao meu redor, a solidão se acocorava junto a ela; e, em terceiro lugar, a estertorante imobilidade, a pior de minhas amigas.
Tinha chaves comigo, as mais enferrujadas de todas as chaves; e sabia, com elas, abrir o mais rangente de todos os portões.
Como um irritado grasnido andava o som pelos compridos corredores, quando as asas do portão se moviam: de modo hostil gritava aquele pássaro, de mau grado acordava.
Ainda mais terrível e mais acabrunhador, porém, era quando ele novamente se calava e tudo em volta se punha quieto, e eu me achava sozinho naquele pérfido silêncio.
Assim passava e me escorria o tempo, se ainda existia o tempo: que sei eu? Mas finalmente sucedeu aquilo que me despertou.
Três vezes soaram pancadas no portão, iguais a trovões, e três vezes ecoaram e urraram as abóbadas: então andei para o portão.
Alpa!, gritei, quem está trazendo suas cinzas para o monte? Alpa! Alpa! Quem está trazendo suas cinzas para o monte?
E pressionei a chave, empurrei o portão e fiz força. Mas ele não abriu a largura de um dedo sequer:
Então um vento ruidoso o escancarou com violência: e silvando, zunindo, cortando lançou contra mim um ataúde negro:
E em meio ao rugir, silvar e zunir espatifou-se o ataúde, e despejou mil diferentes gargalhadas.
E mil caretas de crianças, anjos, corujas, bufões e borboletas do tamanho de crianças riam, zombavam e bramiam contra mim.
Assustei-me, horrorizado; fui jogado ao chão. E gritei de pavor, como jamais havia gritado.
Mas meu próprio grito me despertou: — e voltei a mim.” — Assim contou Zaratustra seu sonho, e se calou: pois ainda não sabia como interpretar o sonho. Mas o discípulo que ele mais amava levantou-se rapidamente, tomou a mão de Zaratustra e falou:
Tua própria vida nos dá a interpretação desse sonho, ó Zaratustra!
Não és tu mesmo o vento de estridentes zunidos, que escancara os portões das cidadelas da morte?
Não és tu mesmo o ataúde cheio de coloridas maldades e angelicais caretas da vida?
Em verdade, tal como mil gargalhadas de crianças chega Zaratustra a todas as câmaras mortuárias, rindo desses noturnos guardiães de túmulos e de quem mais faz retinir sombrias chaves.
Vais assustá-los e derrubá-los com teu riso; seu desmaio e seu despertar provarão teu poder sobre eles.
E, mesmo quando chegarem o longo crepúsculo e o cansaço da morte, não declinarás em nosso céu, ó advogado da vida!
Novas estrelas nos fizeste ver, e novos esplendores da noite; em verdade, o próprio riso estendeste sobre nós como uma tenda colorida.
Agora sempre sairão risos de criança dos ataúdes; agora, um vento forte sempre vencerá todo cansaço da morte: disso és, para nós, o avalista e adivinho!
Em verdade, com eles mesmos sonhaste, com teus inimigos: este foi teu sonho mais pesado!
Mas, tal como acordaste deles e voltaste a ti, eles acordarão de si mesmos — e voltarão a ti!” —
Assim falou o discípulo; e todos os outros se amontoaram ao redor de Zaratustra, tomaram-lhe as mãos e procuraram persuadi-lo a deixar o leito e a tristeza e retornar para eles. Mas Zaratustra permaneceu sentado na cama, aprumado, com olhar alheio. Como alguém que regressa de uma longa ausência em terra distante, olhou para seus discípulos e examinou seus rostos; e ainda não os reconheceu. Mas, quando eles o levantaram e o puseram sobre seus próprios pés, eis que subitamente seus olhos mudaram; ele compreendeu tudo o que havia sucedido, passou a mão na barba e disse com voz forte:
Pois muito bem! Para isso haverá tempo; cuidai agora, meus discípulos, que tenhamos uma boa refeição, e logo! Assim pretendo fazer penitência por sonhos ruins!
Mas o adivinho deverá comer e beber ao meu lado; e, em verdade, quero ainda lhe mostrar um mar em que possa afogar-se!”

Assim falou Zaratustra. Em seguida, porém, olhou longamente no rosto do discípulo que havia interpretado o sonho, e nisso balançava a cabeça. —

Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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