E
o rim não é meu? Logo eu que ia ganhar dez mil, ia ganhar. Tinha
até marcado uma feijoada pra quando eu voltar, uma feijoada. E roda
de samba pra gente rodar. Até clarear, de manhã, pelas bandas de
cá. E o rim não é meu, saravá? Quem me deu não foi
Aquele-Lá-de-Cima, Meu Deus, Jesus e Oxalá?
O
esquema é bacana. Os caras chegam aqui e levam a gente pra Luanda ou
Pretória. No maior conforto e na maior glória. Puta oportunidade só
uma vez na vida, quando agora? Dar um pulinho na cidade de Nampula?
Quem sabe, tirar fotografia? Abraçar outro negrão igual a mim,
conversar noutra língua mesmo sem saber conversar?
Assim:
lorotar, contar piada. Dançar no fogo, sei não. Em cima de brasa,
dentro de caldeirão. Sumir na mata fechada. Espinho de flecha, pedra
de amolar. Disseram que na África tem muita macacada. Tem muito Leão
e zebra. Hipopôtamo-pigmeu, quem já ouviu falar? Nem eu.
Dizem
que é bonito o hospital de lá. Bom de se internar. De se recuperar.
Livre comércio de rim, sim. Isso mesmo, o que é que há? Meu sonho
não foi sempre o de voar, feito um Orixá? Pôr meus pés em cabine
de avião? Diz aí, meu irmão, minha asa quem mandou cortar? Quando
irei sorrir quando a nuvem me pegar? Ver o chão lá de cima? Recife
comendo as beiradas de Olinda. De Longe, as pedras de Itamaracá.
Que
merda!
Por
que não cuidam eles deles, ora essa? O rim é meu ou não é? Até
um pé eu venderia e de muleta eu viveria. Na minha. Um olho enxerga
pelos dois ou não enxerga? Se é pra livrar minha barriga da miséria
até cego eu ficaria. Depois eu ia ali na ponte, ao meio-dia, ganhar
mais dinheiro. Diria que foi um acidente, que esses buracos
apareceram de repente, em cima do meu nariz. Quem quer ver a agonia
de um doente, assim, infeliz, hein, companheiro?
Fácil
é denunciar, cagar regra e caguetar. O que é que tem? O rim não é
meu, bando de filho da puta? Cuidar da minha saúde ninguém cuida.
Se não fosse eu mesmo me alimentar. Arranjar batata e caruá, pirão
de caranguejo. Não tenho medo de cara feia, não tenho medo.
Por
que vocês não se preocupam com os meninos aí, soltos na rua? Tanta
criança morta e inteirinha, desperdiçada em tudo que é esquina.
Tanta córnea e tanta espinha. Por que não se aproveita nada no
Brasil, ora bosta? Viu? Aqui se mata mais que na Etiópia, à míngua.
Meu rim ia salvar uma vida, não ia salvar? Diz, não ia salvar?
Perdi dez mil, e agora?
A
polícia em minha porta, vindo pra cima de mim. Puta que pariu, que
sufoco! De inveja, sei que vão encher meu pobre rim de soco.
Marcelino Freire, in Contos Negreiros
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