Eram
duas mulheres brigando — e depois não houve nada. Embolaram-se por
qualquer motivo, e não queriam desprender-se uma da outra. Não
havendo superioridade física acentuada de uma das partes, as duas se
fundiram num corpo confuso e sacudido de vibrações, que ia e vinha
pela calçada, lento e brusco, nervoso e rítmico. O instinto de
dança subsistia no íntimo das contendoras, prevalecendo sobre as
tentativas dos corpos para se abaterem mutuamente. E tudo se fazia em
silêncio, como se baila, mesmo porque nenhuma palavra adiantaria à
cólera das mulheres, que só o jogo de músculos e nervos saberia
exprimir numa linguagem dinâmica e cheia de consequências.
Brigaram
bem cinco minutos, é uma eternidade para entreveros. Não tinham
pressa de acabar. Brigavam com fúria e ao mesmo tempo com método. O
fato de uma não ser bastante vigorosa para decidir imediatamente a
peleja não impediu que ela dominasse a outra. Dominava mas a outra
não se rendia. Tão rentes as duas, tão grudadas, que o mesmo gesto
agressor era gesto de apoio. A mais fraca empenhava-se em salvar o
rosto do agravo de unhas e dentes, e, de cabeça baixa, olhos
cerrados, fazia pressão sobre o pescoço da competidora, enquanto
lhe apertava a cintura com a mão esquerda, e com a direita atacava
na medida do possível. Mas a segunda lhe ministrava pequenos tapas
enérgicos nas faces, sempre que podia reerguer-lhe a cabeça; e
quando deixava de fazê-lo, era para ir dilacerando a blusa, que não
resistiu ao assalto e logo se esfarinhou em trapos. Sem descuidar-se
da defesa, atacou em seguida o soutien, e um seio negro
saltou, assustado. A mais fraca estava demasiado absorvida em
equilibrar-se e fisgar uma orelha da mais forte, e não se afligiu
com esse pormenor. Percebia-se que, se a luta durasse, a mais forte
poria nua a mais fraca, mas botar nu o adversário não é vencê-lo,
e estava longe o momento da exaustão absoluta de uma, ou de ambas.
Continuaram
rodando e oscilando numa área limitada, até que a de maior poder
ofensivo entreviu o partido a tirar da rampa da garagem subterrânea,
e foi conduzindo o balé nessa direção. No empenho de não cair, a
outra se deixava empurrar, e ia recuando de costas, sem esperança,
mas sem pânico. Ambas tinham posto demasiada alma naquela briga,
para dar-lhe final prematuro, e a obstinação de uma em bater não
era menor que a da outra em apanhar, evidenciando igual têmpera nas
duas, sem embargo da vitória física já pendida para um lado.
Sumiram lá dentro, lentamente.
O
escuro da garagem reteve-as por alguns momentos, até que a vencedora
emergiu, vagarosa, arquejante. Os lábios tremiam, o rosto expunha
sinais de combate, os olhos esgazeados não se voltavam para nenhum
ponto. Inclinou-se para apanhar na calçada da rua elegante a marmita
que ali deixara. Depois, andou um pouco, às tontas, até firmar
rumo, e seguiu para o trabalho.
O
grupo que se formara ao iniciar-se a peleja foi se dispersando,
alegremente. Eram pessoas de vários tipos e condições, e nenhuma
pensara em intervir, como se faz em briga de homem. Ou se alguém
pensou, foi travado pela perspectiva do ridículo. Costumes. Briga de
mulher é motivo de curiosidade divertida, apenas. No máximo, as
pessoas distintas olham com reprovação desdenhosa. Ônibus,
lotações e automóveis, parados para apreciar o espetáculo,
puseram-se em movimento. A outra mulher, a derrotada, subiu afinal a
rampa, também digna, com o busto envolto num jornal.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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