domingo, 24 de março de 2024

Lavadeira e bem-te-vi

Lavadeira-mascarada

Bem-te-vi

Bem-te-vi derrubou
Gameleira no chão!
Derrubou, derrubou,
Gameleira no chão!
Coco de roda do Nordeste (Bambelô)

Já por três vezes o bem-te-vi informou a todos que bem vira o que ninguém atinara ainda por mais que examinasse. Deve ser pilhéria dele para desnortear a tarefa matinal que a todos ocupa. Não havia necessidade do aviso porque, feita a denúncia inicial, nada mais adianta na espécie delatada publicamente. Fica unicamente na ameaça burlona. Bem-te-vi! Bem-te-vi!
Com esta mania de espionagem miúda e proclamação estridente não arranja amizade de ninguém. Sua popularidade consiste na presença habitual e não na lembrança afetuosa quando se ausenta. Olhamos sem ver o bem-te-vi na sua profissão mexeriqueira e reprovável. Não aprendeu a serena circunspeção de Sofia que vê as coisas que vivem de noite. Ou do grilo saltador. Nem mesmo a dos bulhentos xexéus, incapazes de uma deselegância como esta. Bem-te-vi! Pois, viu, e acabou-se.
Afinal é um tiranídeo e está dito tudo. Violento, arrebatado, imprudente no desafio, sua valentia não o faz simpático nem a intrepidez amoeda afetos. Justamente esta coragem, que se torna agressiva pela inoportunidade da ação, o fez temido mas não respeitado, triste marque de la misère de l’homme, qui a toujours joint l’idée de la cruauté à l’emblème du pouvoir, dizia o senhor de Buffon. O bem-te-vi é uma boa amostra desta imagem.
Este é o Megarhynchus pitangua, de Lineu, o bem-te-vi-de-bico-chato, brigão, cantador, boêmio, capadócio, nacionalista. Está em toda a parte e sempre o mesmo – arranha-céu do Rio de Janeiro, fábrica de São Paulo, parque de Belo Horizonte, coqueiros do Nordeste, samaumeira amazônica. Está expulsando um gavião em Pernambuco, como um pardal intruso na Cidade Maravilhosa. Gritou na Avenida São João, paulista, como na Praça do Ferreira, em Fortaleza. Inalterável. Sem medo e respeito a nenhuma ave que atravessar o seu voo nos caminhos do céu. Seja qual for sua proporção ou fama. Com ou sem ela, o bem-te-vi ataca e afugenta, com estardalhaço estrepitoso. Inútil resistir.
Quando o Brasil amanhecia no século XVI, o bem-te-vi tinha outro nome, o seu nome brasileiro, pitauá. Ainda num livro de 1728, Nuno Marques Pereira o cantava:

Despertando o Pitauaã
Com impulsos de vigor,
Disse logo “Bem-te-vi,
Deste lugar em que estou”.

O português é que o crismou pela denominação que o cantor parecia dizer, constantemente espiando quanto de sua conta não seria.
Forte, sólido, o bico resistente como um alicate, as cores amarelas, brancas e negras harmoniosamente espalhadas, asas anegradas com reflexos de ferrugem, as linhas feiticeiras em volta dos olhos, ampliando-os, a velocidade, a leveza, a elegância, originalidade, audácia das evoluções aéreas, o golpe fulminante com que assalta no ar inseto digno de sua fome, a variedade do canto estrídulo, zombeteiro, desenrolado como uma fita sonora, audível em todos os recantos de larga extensão, mantêm-no na primeira fila, na plaina das aves populares citadas sem esforço de memória. Buffon cita o Bemtaveo de Buenos Aires semelhante ao cuiriri do Brasil, Lanius pitangua, L. Marcgrave descreveu o xexéu chamando-o japu, iapu.
Os bem-te-vis do canto de muro comem frutas: mamão, goiaba, manga, bananas maduras. A movimentação é na caça de insetos, ocupação normal de todas as horas. Não apenas os apanham no voo, como ficam à sua espreita, imóveis num galho, mirando a paisagem. Bruscamente descem como bólides até o chão numa pontaria infalível. Também caçam no solo, não às carreiras mas aos pulinhos, patas juntas como se fossem peadas.
Cuidam muito do traje. Várias vezes no dia banham-se no tanque. Mergulham a cabeça, num empurrão lateral, um para cada vez, tentando fazer com que a água escorregue pelo dorso. Abrindo as asas, batem na superfície d’água, apressadamente para evitar que as penas umedeçam demasiado. Voam em espiral larga para enxugar-se. Nunca os vi enxugando-e ao sol.
Tomam banho de luz, expondo-se um ou dois minutos, asas estendidas à flor da terra, o peito roçando o chão, arrepiando-se, agitando, livrando-se naturalmente dos parasitos importunos. Arrastam-se quase um metro nesta posição, revolvendo a areia com as patinhas, como as galinhas quando tomam banho de poeira com intuito profilático.
O animus nocendi não lhes aparece na muda ou no ciclo de excitação sexual, quando fecunda a fêmea e ajuda-a a construir o ninho, acompanhado-a na incubação. Trata desveladamente aos filhos, alimentado-os, defendendo-os com denodo, arriscando a vida para vê-los livre de todos os perigos. Não temendo nenhuma outra ave, enfrenta gaviões e carcarás que já nem ousam assaltar-lhe o ninho. O bem-te-vi é que persegue, intrepidamente, as aves de rapina e tenta furar os olhos aos gatos, que o temem. Nidifica bem alto, no cimo das árvores copadas.
Todos os ornitologistas que o estudam proclamam a belicosidade atrevida com que afugenta, em seguimento teimoso, aves bem mais fortes e sabidamente valentes. Não há explicação para o estado de inibição que acomete os pássaros atacados pelo bem-te-vi, deixando-se bicorar e tomando a fuga como solução única para a libertação. Meu pai assistiu, durante uma viagem, a verdadeira caçada de um bem-te-vi contra um gavião possante, com mais do dobro do seu tamanho, inteiramente acovardado e voando tenazmente e seguido pelo tiranídeo implacável. O gavião inutilizaria o adversário com uma bicada feroz. Longe de lembrar-se de reação, procurava por todos os meios afastar-se daquela mania de perseguição que atirara o bem-te-vi como uma sombra belicosa em sua busca. E ainda sofria os reiterados golpes com que o perseguidor o mimoseava sempre que encontrava oportunidade. No Rio de Janeiro um bando inteiro dos inúteis e valentões pardais é disperso por um único bem-te-vi. Quando ele está na fase de irritação guerreira, o velho Catá não aparece no canto de muro nem que exista o corpo inteiro de um boi esperando por ele. Não esquece Catá, que o bem-te-vi entendeu de medir as forças com o urubu capenga e se este ainda possui penas deve-as às asas admiráveis e ao voo veloz. O bem-te-vi ficou uma porção de minutos com o bico chato cheio das penas negras do urubu, teatralizando a vitória. Nenhuma ave ousa desafiá-lo. Normalmente, pousam nos arredores onde ele está caçando os membros da ilustre família, especialmente a lavadeira, a comum e popular “lavandeira”, que deve ser a parenta mais estimada do bem-te-vi. As demais passam de arribada.
O problema do canto intencional é bem visível no bem-te-vi. Não é gorjeio ou trinados, mas tipos perfeitamente diferenciados de canto, em ocasiões distintas e apenas nestas.
Há o grito do “Bem... ti... vííííííí” inconfundível. Há outro idêntico, mas com uma leve e sensível entonação interrogativa, mais lento. O primeiro será alegria de viver, anúncio de sua presença, como as altas patentes possuem toques especiais de clarins. O segundo obriga, quase sempre, resposta mas não presença. O terceiro é uma nota prolongada, vibrante, repetida até que a fêmea compareça. É o chamamento, mas chamamento tranquilo de esposo para assunto caseiro e não apelo sexual. O bem-te-vi está habitualmente acompanhado e este grito traz a esposa para perto. Não é para oferecer-lhe alimentos ou amar. É apenas para vê-la, deduzo, em face de nenhum movimento da ave para aproveitar materialmente o convite em algum ato conjunto. O quarto é um canto de quatro notas, de acentuação grave, cuja finalidade desconheço. Este é, às vezes, repetido pela fêmea. Todos estes quatro cantos são comuns e no espaço de algumas horas ouço-os a todos. Serão, evidentemente, os habituais, o vocabulário sonoro e básico para a comunicação essencial. Deve possuir outros, chamando a fêmea, combatendo, grito de excitação, talvez de reunir, de aviso etc. Buffon registrou numa coruja este grito de socorro, atraindo as companheiras para perto de sua prisão e outro que lança unicamente quando voa livre. Terá um significado que, não o podendo traduzir, rotulamos como despido de valor comunicante e meras emissões sonoras como escapamento de gases com alguma melodia.
O canto, por si só, jamais deixa de constituir uma mensagem profundamente intencional. Desde a palavra, gutural e rouca, do pequeno homem de Neanderthal, até o esplendor do canto, à evolução das cordas vocais, fixando-se no mesmo maquinismo dos instrumentos de palheta, símbolos dos timbres graves, corre a própria história humana, sua conquista definitiva para o milagre da expressão. Fico respeitando o simples assobio que calculo quantos milhares de séculos ele representa em tentativa e obstinação e sua finalidade, mesmo utilitária, ascendeu depois ao ludus, estado assombroso de civilização, no exemplo do bicho-homem brincando, jogando, divertindo-se e divertindo-se com uma modalidade vocal que lhe dava soberania porque havia intenção e destino.
Vai daí uma ave que possui quatro, cinco e seis modalidades de canto e jamais as emprega mecanicamente uma após outra, mas em situações condicionadas às necessidades daquelas sonoras emissões moduladas, não posso incluí-la como brinquedo de corda e caixinha de música numa boneca. Ao grilo já identificamos a diversidade do seu reco-reco sentimental ou boêmio e não podemos negar ao bem-te-vi e entes como ele os direitos a ter no seu canto uma fórmula indiscutível de relação, um índice de ligação sinaladora com as suas convivências.
Quem nos dirá que o bem-te-vi, que pousou na janela interior do Palácio Tiradentes, haja ou não compreendido a espécie de canto ali entoado pelos reis da Criação em estado parlamentar?
Creio firmemente na comunicação das aves pelo canto. Não posso provar, mas basta a fé e esta, já é frase velha, perde muito posta em retórica. Uma parenta amiga íntima do bem-te-vi é a lavadeira, lavandeira como gostosamente o povo diz. Trata-se, gravemente, de um tiranídeo, Fluvicola climasura, Vieill. Pequenina, asas negras, as listas heráldicas da família prolongando-lhe os olhos, é a mobilidade, a volubilidade, a graça leve, fina, alada, graciosa sempre, familiar e doméstica, enchendo de agitação, de elegância natural, o silêncio do canto de muro nas horas do dia.
Faz um ninho baixo, empregando materiais disparatados mas num arranjo pobre e simples que resulta emocional. Caça com uma técnica de minueto, correndo como se fosse atender a uma volta de pavana ao som dos violinos de Lully. Está por perto do tanque, banhando-se muitas vezes, um banho tão sumário, rápido e fidalgo que dá vontade perguntar a exata finalidade do ato, vaidade de exibição ou exigência de higiene em ritmo de segundos musicais.
Sempre perto do bem-te-vi corre, volteia, sobe e desce a lavadeira habitual. Como deglute insetos microscópios e os faz num súbito arranco em linha reta, tem-se a impressão que está caçando raios de sol porque neles encontra, como em suspensão, a vida dos mínimos de que se alimenta. Exceto nas horas ardentes de verão quando faz a sesta como uma doce sinhá moça tropical na varanda da casa-grande, trabalha dia inteiro. Mas sua tarefa é um bailado com todos os jogos de elevação, piruetas e batidas que arrastam aplausos das samambaias e dos tinhorões hierárquicos. Não é possível que a agilidade possua outra imagem e a sedução melhor modelo.
Burla as exigências do equilíbrio e as leis da gravidade nos voos espiralados, freados com as asas abertas nas descidas imprevistas, as perpendiculares e os círculos descritos no ar como se não tivesse peso e apenas o atravessasse como uma luz e um perfume.
Nos jorros luminosos que descem através da folhagem, a lavadeira baila como se o Rei Herodes Ântipas a assistisse. Exigirá apenas alguns insetos que a luminosidade revelou aos seus dois olhos negros.
Em 1728, Nuno Marques Pereira já elogiava sua glória de bailarina:

Saiu de ponto a dançar
A lavadeira, e mostrou
Era tão destra na dança
Que pés na terra não pôs.

Tem seu repertório melódico. Três ou quatro números de efeito. Gosto muito de um deles em que ela canta com as asas abertas, erguendo-se na cadência do garganteado incessante e oscilando o corpinho como se orasse numa mesquita oriental. É um duelo. Outra lavadeira está por diante, acompanhando a virtuosidade da execução, contracantando e repetindo o compasso da idêntica movimentação envolvedora.
É neste canto que a sua cauda negra e graciosa plagia a técnica das lavadeiras nos rios. Daí o nome que lhe deram os franceses e nós recebemos. A tradição afirma que ela lavou a roupa do Menino-Deus.
Em certa distância o primo bem-te-vi aprecia o quadro. Agora que o crepúsculo pinta de ouro e sangue a tarde vagarosa, as duas lavadeiras cantam, alternadas e uníssonas, numa claridade votiva, a despedida do dia e de suas tarefas que amanhã voltarão.
Do canto de muro, no alto, a cabeça triangular emergindo dos cachos ornamentais, Vênia muito naturalmente concordava com os aplausos...

Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro

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