Lavadeira-mascarada
Bem-te-vi
Bem-te-vi
derrubou
Gameleira
no chão!
Derrubou,
derrubou,
Gameleira
no chão!
Coco
de roda do Nordeste (Bambelô)
Já
por três vezes o bem-te-vi informou a todos que bem vira o que
ninguém atinara ainda por mais que examinasse. Deve ser pilhéria
dele para desnortear a tarefa matinal que a todos ocupa. Não havia
necessidade do aviso porque, feita a denúncia inicial, nada mais
adianta na espécie delatada publicamente. Fica unicamente na ameaça
burlona. Bem-te-vi! Bem-te-vi!
Com
esta mania de espionagem miúda e proclamação estridente não
arranja amizade de ninguém. Sua popularidade consiste na presença
habitual e não na lembrança afetuosa quando se ausenta. Olhamos sem
ver o bem-te-vi na sua profissão mexeriqueira e reprovável. Não
aprendeu a serena circunspeção de Sofia que vê as coisas que vivem
de noite. Ou do grilo saltador. Nem mesmo a dos bulhentos xexéus,
incapazes de uma deselegância como esta. Bem-te-vi! Pois, viu, e
acabou-se.
Afinal
é um tiranídeo e está dito tudo. Violento, arrebatado, imprudente
no desafio, sua valentia não o faz simpático nem a intrepidez
amoeda afetos. Justamente esta coragem, que se torna agressiva pela
inoportunidade da ação, o fez temido mas não respeitado, triste
marque de la misère de l’homme, qui a toujours joint l’idée
de la cruauté à l’emblème du pouvoir, dizia o senhor de
Buffon. O bem-te-vi é uma boa amostra desta imagem.
Este
é o Megarhynchus pitangua, de Lineu, o
bem-te-vi-de-bico-chato, brigão, cantador, boêmio, capadócio,
nacionalista. Está em toda a parte e sempre o mesmo – arranha-céu
do Rio de Janeiro, fábrica de São Paulo, parque de Belo Horizonte,
coqueiros do Nordeste, samaumeira amazônica. Está expulsando um
gavião em Pernambuco, como um pardal intruso na Cidade Maravilhosa.
Gritou na Avenida São João, paulista, como na Praça do Ferreira,
em Fortaleza. Inalterável. Sem medo e respeito a nenhuma ave que
atravessar o seu voo nos caminhos do céu. Seja qual for sua
proporção ou fama. Com ou sem ela, o bem-te-vi ataca e afugenta,
com estardalhaço estrepitoso. Inútil resistir.
Quando
o Brasil amanhecia no século XVI, o bem-te-vi tinha outro nome, o
seu nome brasileiro, pitauá. Ainda num livro de 1728, Nuno Marques
Pereira o cantava:
Despertando
o Pitauaã
Com
impulsos de vigor,
Disse
logo “Bem-te-vi,
Deste
lugar em que estou”.
O
português é que o crismou pela denominação que o cantor parecia
dizer, constantemente espiando quanto de sua conta não seria.
Forte,
sólido, o bico resistente como um alicate, as cores amarelas,
brancas e negras harmoniosamente espalhadas, asas anegradas com
reflexos de ferrugem, as linhas feiticeiras em volta dos olhos,
ampliando-os, a velocidade, a leveza, a elegância, originalidade,
audácia das evoluções aéreas, o golpe fulminante com que assalta
no ar inseto digno de sua fome, a variedade do canto estrídulo,
zombeteiro, desenrolado como uma fita sonora, audível em todos os
recantos de larga extensão, mantêm-no na primeira fila, na plaina
das aves populares citadas sem esforço de memória. Buffon cita o
Bemtaveo de Buenos Aires semelhante ao cuiriri do Brasil,
Lanius pitangua, L. Marcgrave descreveu o xexéu chamando-o
japu, iapu.
Os
bem-te-vis do canto de muro comem frutas: mamão, goiaba, manga,
bananas maduras. A movimentação é na caça de insetos, ocupação
normal de todas as horas. Não apenas os apanham no voo, como ficam à
sua espreita, imóveis num galho, mirando a paisagem. Bruscamente
descem como bólides até o chão numa pontaria infalível. Também
caçam no solo, não às carreiras mas aos pulinhos, patas juntas
como se fossem peadas.
Cuidam
muito do traje. Várias vezes no dia banham-se no tanque. Mergulham a
cabeça, num empurrão lateral, um para cada vez, tentando fazer com
que a água escorregue pelo dorso. Abrindo as asas, batem na
superfície d’água, apressadamente para evitar que as penas
umedeçam demasiado. Voam em espiral larga para enxugar-se. Nunca os
vi enxugando-e ao sol.
Tomam
banho de luz, expondo-se um ou dois minutos, asas estendidas à flor
da terra, o peito roçando o chão, arrepiando-se, agitando,
livrando-se naturalmente dos parasitos importunos. Arrastam-se quase
um metro nesta posição, revolvendo a areia com as patinhas, como as
galinhas quando tomam banho de poeira com intuito profilático.
O
animus nocendi não lhes aparece na muda ou no ciclo de
excitação sexual, quando fecunda a fêmea e ajuda-a a construir o
ninho, acompanhado-a na incubação. Trata desveladamente aos filhos,
alimentado-os, defendendo-os com denodo, arriscando a vida para
vê-los livre de todos os perigos. Não temendo nenhuma outra ave,
enfrenta gaviões e carcarás que já nem ousam assaltar-lhe o ninho.
O bem-te-vi é que persegue, intrepidamente, as aves de rapina e
tenta furar os olhos aos gatos, que o temem. Nidifica bem alto, no
cimo das árvores copadas.
Todos
os ornitologistas que o estudam proclamam a belicosidade atrevida com
que afugenta, em seguimento teimoso, aves bem mais fortes e
sabidamente valentes. Não há explicação para o estado de inibição
que acomete os pássaros atacados pelo bem-te-vi, deixando-se bicorar
e tomando a fuga como solução única para a libertação. Meu pai
assistiu, durante uma viagem, a verdadeira caçada de um bem-te-vi
contra um gavião possante, com mais do dobro do seu tamanho,
inteiramente acovardado e voando tenazmente e seguido pelo tiranídeo
implacável. O gavião inutilizaria o adversário com uma bicada
feroz. Longe de lembrar-se de reação, procurava por todos os meios
afastar-se daquela mania de perseguição que atirara o bem-te-vi
como uma sombra belicosa em sua busca. E ainda sofria os reiterados
golpes com que o perseguidor o mimoseava sempre que encontrava
oportunidade. No Rio de Janeiro um bando inteiro dos inúteis e
valentões pardais é disperso por um único bem-te-vi. Quando ele
está na fase de irritação guerreira, o velho Catá não aparece no
canto de muro nem que exista o corpo inteiro de um boi esperando por
ele. Não esquece Catá, que o bem-te-vi entendeu de medir as forças
com o urubu capenga e se este ainda possui penas deve-as às asas
admiráveis e ao voo veloz. O bem-te-vi ficou uma porção de minutos
com o bico chato cheio das penas negras do urubu, teatralizando a
vitória. Nenhuma ave ousa desafiá-lo. Normalmente, pousam nos
arredores onde ele está caçando os membros da ilustre família,
especialmente a lavadeira, a comum e popular “lavandeira”, que
deve ser a parenta mais estimada do bem-te-vi. As demais passam de
arribada.
O
problema do canto intencional é bem visível no bem-te-vi. Não é
gorjeio ou trinados, mas tipos perfeitamente diferenciados de canto,
em ocasiões distintas e apenas nestas.
Há
o grito do “Bem... ti... vííííííí” inconfundível. Há
outro idêntico, mas com uma leve e sensível entonação
interrogativa, mais lento. O primeiro será alegria de viver, anúncio
de sua presença, como as altas patentes possuem toques especiais de
clarins. O segundo obriga, quase sempre, resposta mas não presença.
O terceiro é uma nota prolongada, vibrante, repetida até que a
fêmea compareça. É o chamamento, mas chamamento tranquilo de
esposo para assunto caseiro e não apelo sexual. O bem-te-vi está
habitualmente acompanhado e este grito traz a esposa para perto. Não
é para oferecer-lhe alimentos ou amar. É apenas para vê-la,
deduzo, em face de nenhum movimento da ave para aproveitar
materialmente o convite em algum ato conjunto. O quarto é um canto
de quatro notas, de acentuação grave, cuja finalidade desconheço.
Este é, às vezes, repetido pela fêmea. Todos estes quatro cantos
são comuns e no espaço de algumas horas ouço-os a todos. Serão,
evidentemente, os habituais, o vocabulário sonoro e básico para a
comunicação essencial. Deve possuir outros, chamando a fêmea,
combatendo, grito de excitação, talvez de reunir, de aviso etc.
Buffon registrou numa coruja este grito de socorro, atraindo as
companheiras para perto de sua prisão e outro que lança unicamente
quando voa livre. Terá um significado que, não o podendo traduzir,
rotulamos como despido de valor comunicante e meras emissões sonoras
como escapamento de gases com alguma melodia.
O
canto, por si só, jamais deixa de constituir uma mensagem
profundamente intencional. Desde a palavra, gutural e rouca, do
pequeno homem de Neanderthal, até o esplendor do canto, à evolução
das cordas vocais, fixando-se no mesmo maquinismo dos instrumentos de
palheta, símbolos dos timbres graves, corre a própria história
humana, sua conquista definitiva para o milagre da expressão. Fico
respeitando o simples assobio que calculo quantos milhares de séculos
ele representa em tentativa e obstinação e sua finalidade, mesmo
utilitária, ascendeu depois ao ludus, estado assombroso de
civilização, no exemplo do bicho-homem brincando, jogando,
divertindo-se e divertindo-se com uma modalidade vocal que lhe dava
soberania porque havia intenção e destino.
Vai
daí uma ave que possui quatro, cinco e seis modalidades de canto e
jamais as emprega mecanicamente uma após outra, mas em situações
condicionadas às necessidades daquelas sonoras emissões moduladas,
não posso incluí-la como brinquedo de corda e caixinha de música
numa boneca. Ao grilo já identificamos a diversidade do seu
reco-reco sentimental ou boêmio e não podemos negar ao bem-te-vi e
entes como ele os direitos a ter no seu canto uma fórmula
indiscutível de relação, um índice de ligação sinaladora com as
suas convivências.
Quem
nos dirá que o bem-te-vi, que pousou na janela interior do Palácio
Tiradentes, haja ou não compreendido a espécie de canto ali entoado
pelos reis da Criação em estado parlamentar?
Creio
firmemente na comunicação das aves pelo canto. Não posso provar,
mas basta a fé e esta, já é frase velha, perde muito posta em
retórica. Uma parenta amiga íntima do bem-te-vi é a lavadeira,
lavandeira como gostosamente o povo diz. Trata-se, gravemente, de um
tiranídeo, Fluvicola climasura, Vieill. Pequenina, asas
negras, as listas heráldicas da família prolongando-lhe os olhos, é
a mobilidade, a volubilidade, a graça leve, fina, alada, graciosa
sempre, familiar e doméstica, enchendo de agitação, de elegância
natural, o silêncio do canto de muro nas horas do dia.
Faz
um ninho baixo, empregando materiais disparatados mas num arranjo
pobre e simples que resulta emocional. Caça com uma técnica de
minueto, correndo como se fosse atender a uma volta de pavana ao som
dos violinos de Lully. Está por perto do tanque, banhando-se muitas
vezes, um banho tão sumário, rápido e fidalgo que dá vontade
perguntar a exata finalidade do ato, vaidade de exibição ou
exigência de higiene em ritmo de segundos musicais.
Sempre
perto do bem-te-vi corre, volteia, sobe e desce a lavadeira habitual.
Como deglute insetos microscópios e os faz num súbito arranco em
linha reta, tem-se a impressão que está caçando raios de sol
porque neles encontra, como em suspensão, a vida dos mínimos de que
se alimenta. Exceto nas horas ardentes de verão quando faz a sesta
como uma doce sinhá moça tropical na varanda da casa-grande,
trabalha dia inteiro. Mas sua tarefa é um bailado com todos os jogos
de elevação, piruetas e batidas que arrastam aplausos das
samambaias e dos tinhorões hierárquicos. Não é possível que a
agilidade possua outra imagem e a sedução melhor modelo.
Burla
as exigências do equilíbrio e as leis da gravidade nos voos
espiralados, freados com as asas abertas nas descidas imprevistas, as
perpendiculares e os círculos descritos no ar como se não tivesse
peso e apenas o atravessasse como uma luz e um perfume.
Nos
jorros luminosos que descem através da folhagem, a lavadeira baila
como se o Rei Herodes Ântipas a assistisse. Exigirá apenas alguns
insetos que a luminosidade revelou aos seus dois olhos negros.
Em
1728, Nuno Marques Pereira já elogiava sua glória de bailarina:
Saiu
de ponto a dançar
A
lavadeira, e mostrou
Era
tão destra na dança
Que
pés na terra não pôs.
Tem
seu repertório melódico. Três ou quatro números de efeito. Gosto
muito de um deles em que ela canta com as asas abertas, erguendo-se
na cadência do garganteado incessante e oscilando o corpinho como se
orasse numa mesquita oriental. É um duelo. Outra lavadeira está por
diante, acompanhando a virtuosidade da execução, contracantando e
repetindo o compasso da idêntica movimentação envolvedora.
É
neste canto que a sua cauda negra e graciosa plagia a técnica das
lavadeiras nos rios. Daí o nome que lhe deram os franceses e nós
recebemos. A tradição afirma que ela lavou a roupa do Menino-Deus.
Em
certa distância o primo bem-te-vi aprecia o quadro. Agora que o
crepúsculo pinta de ouro e sangue a tarde vagarosa, as duas
lavadeiras cantam, alternadas e uníssonas, numa claridade votiva, a
despedida do dia e de suas tarefas que amanhã voltarão.
Do
canto de muro, no alto, a cabeça triangular emergindo dos cachos
ornamentais, Vênia muito naturalmente concordava com os aplausos...
Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro
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