Voltei
ao hipódromo. Às vezes me perguntava o que fazia ali. E às vezes
sabia. Entre outras coisas, aquilo me permitia ver grande número de
pessoas sob a pior luz, e isso me mantinha em contato com a realidade
do que era feita a humanidade. A ambição, o medo, a raiva, tudo
estava ali.
Há
certos indivíduos característicos em toda pista de corridas, em
toda parte, todo dia. Provavelmente me viam como um desses
personagens, e eu não gostava disso. Teria preferido ser invisível.
Não gosto de fazer rodinhas com os outros jogadores. Não quero
discutir os cavalos com eles. Não os vejo com nenhuma espécie de
camaraderie. Na verdade, jogamos uns contra os outros. A pista
de corridas jamais tem um dia de prejuízo. Ela tira sua fatia, o
estado tira a dele, e a fatia vai ficando cada vez maior, o que
significa que para um jogador ganhar regularmente tem de ter uma
margem decidida de aposta, um método superior, uma visão lógica. O
jogador médio joga diariamente duplas, exatas, triplas, hexas ou
nonas. Acabam com as mãos cheias de cartões inúteis. Apostam na
vitória, apostam no placê, apostam na mostra. Mas há apenas uma
aposta, e essa aposta é para ganhar. Isso alivia a pressão. A
simplicidade é sempre o segredo para uma profunda verdade, para
fazer as coisas, para escrever, para pintar. A vida é profunda em
sua simplicidade. Acho que a pista de corridas me mantém consciente
disso.
Mas,
num outro sentido, a pista de corridas é doença, um recheio, um
substituto para outra coisa que se deve enfrentar. Contudo, todos nós
precisamos de fuga. As horas são longas e têm de ser preenchidas de
algum modo até nossa morte. E simplesmente não há muita glória e
sensação para ajudar. Tudo se torna logo chato e mortal. Acordamos
pela manhã, jogamos os pés para fora da cama, colocamo-los no chão
e pensamos ah, merda, e agora?
Às
vezes, eu ficava doente com a necessidade de ir às corridas. Jogava
nos puro-sangues durante o dia e à noite me via jogando nos quadrões
e nas corridas de matungos, a depender do que houvesse. E ali, à
noite, via algumas das pessoas que tinha visto durante o dia.
Apostavam à noite também. O último grau da doença.
Assim,
voltei às corridas e esqueci inteiramente o filme, os atores, a
equipe e a sala de montagem. A pista mantinha minha vida simples,
embora talvez “idiota” seja uma palavra melhor.
À
noite, geralmente via um pouco de TV com Sarah, depois subia e
brincava com o poema. Era ele que me impedia a mente de estalar. O
poema era o que eu precisava de fato. Precisava de fato.
Voltara
a essa rotina há umas duas ou três semanas, quando o bom e velho
telefone tocou. Era Jon Pinchot.
– O
filme está pronto. Vamos fazer uma exibição privada para a
Firepower. Sem imprensa. Sem críticos. Espero que vocês possam vir.
– Claro.
É só dizer a hora e o lugar.
Anotei.
Era
uma noite de sexta-feira. Eu conhecia bem o caminho para o prédio da
Firepower. Sarah fumava e pensava em alguma coisa. Enquanto dirigia,
pensava. Lembrava uma coisa que Jon Pinchot me dissera. Muito antes
de encontrar quem produzisse o argumento, ele saía toda noite pela
cidade de bar em bar, procurando o bar apropriado, os bebuns certos.
Adotou um nome: “Bobby”. E ia de bar em bar, noite após noite.
Disse que quase que vira alcoólatra. E em todos aqueles bares,
acrescentou, jamais encontrou uma mulher que quisesse levar para
casa. Às vezes tirava uma noite de folga e vinha à nossa casa com
todas as fotos daqueles bares que visitara e punha-as na mesinha do
café à minha frente. Eu escolhia as melhores e dizia: “É, vou me
concentrar nesses...” Ele sempre tivera fé em que o argumento um
dia seria um filme.
A
sala de projeção não ficava na Firepower, mas num terreno atrás.
Entramos
com o carro. Havia um guarda ali.
– A
projeção de A Dança de Jim Beam, da Firepower... – eu
disse.
– Entre...
vire à direita... – ele disse.
Pronto.
Éramos figurões. Entrei com o carro, virei à direita, estacionei.
Era
um terreno cheio de estúdios privados. Eu não fazia ideia do motivo
de a Firepower não ter sua própria sala de projeção. O prédio
deles era imenso. Mas sem dúvida teriam uma razão danada de boa
para fazerem o que faziam.
Saltamos
e começamos a procurar a sala de projeção. Não havia indicações.
Parecia que éramos os únicos a vagar por ali. E no entanto
estávamos no horário. Aí avistei uns dois tipos esguios, típicos
de estúdio de cinema, recostados contra uma meia porta aberta. Todo
mundo no ramo tinha quase a mesma aparência – quer dizer, equipes,
consultores e por aí afora, todos entre 26 e 38 anos, esguios, e
sempre conversando um com o outro sobre alguma coisa interessante.
– Perdão
– eu disse –, mas é aqui a sala de projeção de A Dança de
Jim Beam?
Os
dois pararam e nos olharam como se houvéssemos interrompido alguma
coisa importante. Um deles falou.
– Não
– disse.
Eu
não sabia o que aconteceria àqueles caras quando chegassem aos 39.
Talvez fosse disso que estavam falando.
Seguimos
em frente, procurando a sala de projeção.
Então,
parado junto a um automóvel com o motor ligado, vimos alguém que
parecia conhecido. Era Jon Pinchot, conversando com o coprodutor
Lance Edwards.
– Jon,
pelo amor de Deus, onde é a sala de projeção?
– Ééé
– disse Sarah –, onde é?
– Oh
– disse Jon –, mudaram o lugar. Tentei ligar pra vocês, mas
vocês já tinham saído...
– Bem,
onde é, baby?
– Ééé,
baby – disse Sarah.
– Eu
estava procurando vocês... Escuta, Lance Edwards está indo pra lá
de carro. Tudo bem se a gente pegar uma carona com você, Lance?
Lance
assentiu como se estivesse puto. Eu pensei que nós é que devíamos
estar putos. Em Hollywood, essas coisas às vezes ficam meio
confusas.
Jon
entrou na frente com Lance e eu e Sarah atrás. Disseram que Lance
era tímido e por isso não falava. Eu tinha a sensação de que ele
estava cagando, simplesmente. Uma das entrevistadoras da TV, a
italiana, me dissera: “Eu trabalhei pra esse filho da puta! Nunca
vi um sacana mais baixo! Ele não paga a ninguém. Não usa nem mesmo
seu material de correspondência. Usa os envelopes das cartas que
recebe. Me mandava riscar os nomes e endereços e escrever novos, e
púnhamos o mesmo envelope no correio de novo. Pegava os selos não
carimbados na correspondência que chegava e usava de novo. Um dia,
eu estava trabalhando e senti uma mão em minha perna. ‘Perdeu
alguma coisa?’ perguntei a ele. ‘Que quer dizer?’ ele
perguntou. ‘Quero saber se perdeu alguma coisa aí na minha perna?
Que está procurando? Se não perdeu nada, então tira essa porra de
mão da minha perna!’ Ele me despediu, sem aviso prévio.”
O
carro continuava rodando. Parecia um percurso muito longo.
– Ei,
Lance – eu disse –, você traz a gente de volta de carro?
Ele
assentiu como se estivesse puto. Claro que estava puto: despesa com
gasolina.
Finalmente
chegamos, saltamos e entramos na sala de projeção. Estava cheia.
Todo mundo lá. Pareciam confortáveis e à vontade. Muitos deles
tinham latas douradas de cerveja na mão.
– Filho
da puta! – eu disse alto.
– Que
foi? – perguntou Jon.
– Toda
essa gente tem cerveja. Nós não temos NADA pra beber!
– Espere!
Espere! – disse Jon.
Saiu
correndo.
Coitado
do Jon.
Sarah
e eu estávamos sendo tratados como cidadãos de segunda classe. Mas
também, que se podia esperar quando o ator principal ganhava 750
vezes mais que o autor do argumento? O público jamais lembrava quem
escrevera o argumento, só quem fodia com ele ou o fazia funcionar, o
diretor, os atores ou fosse lá quem fosse. Sarah e eu éramos apenas
favelados.
Jon
voltava com duas latas de cerveja para nós quando as luzes se
apagaram e o filme começou. A Dança de Jim Beam.
Tomei
uma golada da cerveja em homenagem aos alcoólatras do mundo.
E
enquanto o filme começava, voltei em flash back (como fazem
nos filmes) àquela manhã no bar quando era jovem, quando não me
sentia nem bem nem mal, só meio tonto, e o garçom do balcão me
disse:
– Sabe
de uma coisa, garoto?
– Não,
quê?
– A
gente vai passar um cano de gás por todo o bar até aí, bem aí
onde você se senta sempre, e tampar.
– Um
cano de gás?
– Ééé.
E aí, quando você tiver vontade de acabar com tudo, pode destampar,
dar umas cheiradas e se mandar...
– Acho
que é muitíssima bondade sua, Jim – eu disse.
Charles Bukowski, in Hollywood
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