sábado, 30 de março de 2024

Do trato com a morte

Sempre tratei a morte
como toira pesada.
sempre tratei a morte
na lavrada.

sempre tratei a morte
como um odre.

À vida, a morte me trata
com a cautelosa pata.

II

O morto
como um móvel,
na sala, de perto,
conformado e justo
no bote, coisa
entre coisas.

Seu rosto pendurado
no corpo, engaste,
disciplina férrea
do tronco, ave
empalhada no pouso.

Sempre tratei a morte como toira pesada.

III

O morto
com seus navios
atracados por estrago;
desprovido de companhia
ou casas, anódino,
e que não finge.
no cargo.

O morto
e as ânsias
entupidas na laringe,
moscas.

O morto
e a hortaliça no estômago,
ao reverso de tudo
sem trajeto ou porto.

Sempre tratei a morte
na lavrada.

IV

O morto e seu motor paralisado,
com ferrugem nas correias e peças,
mofo nas hélices.

O morto, troféu sem dono,
dentro do ar se infiltra
e se põe sob a tampa
do acontecido.

Tudo na pele envidra
e o regato dos sentidos
ali, não vinga.

Forço-o
como quem arromba a porta
de um prédio em cinzas.

Sempre tratei a morte
como um odre.
À vida, a morte me trata
com a cautelosa pata.

Carlos Nejar, in A Idade da Noite

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