Chico
Buarque cantou muitas vezes o gozo do amor (“Joana francesa”, “Eu
te amo”, “O meu amor”, “Samba e amor”), ou até mesmo a
possibilidade do amor (“Tatuagem”, “A ostra e o vento”,
“Futuros amantes”, “Choro bandido”), e talvez tenha mais
vezes ainda cantado a dor da perda (“Retrato em branco e preto”,
“Pedaço de mim”, “Atrás da porta”, “Abandono”, “Sobre
todas as coisas”), mas em “Cecília” ele faz algo incomum:
cantou a impossibilidade de cantar a amada, a incapacidade de fazer
versos bons mesmo que sejam arroubos de amantes errados. Ao
contrário, o poeta confessa invejar:
Quantos
artistas
Entoam
baladas
Para
suas amadas
Com
grandes orquestras
E
também:
Quantos
poetas
Românticos,
prosas
Exaltam
suas musas
Com
todas as letras
Esse
compositor diz que não pode entoar baladas para exaltar musas.
Faltam-lhe letras, faltam-lhe orquestras. Ele não pode fazer como os
outros e cantar a plenos pulmões o amor que sente:
Como
tantos poetas
Tantos
cantores
Tantas
Cecílias
Com
mil refletores
E
por quê? Por não ser um grande poeta, um cantor romântico? Não.
Mas pelo motivo que explica diretamente à sua musa:
Na
tua presença
Palavras
são brutas
E
não só as palavras, as melodias também:
Mas
nem as sutis melodias
Merecem,
Cecília, teu nome
Espalhar
por aí
Para
merecer o direito de espalhar o nome Cecília por aí, de bradar seu
amor e colocá-lo no centro do palco, o artista precisaria de uma
delicadeza que as palavras não têm e uma sutileza à qual as
melodias não chegam. Há uma recusa do gesto romântico vulgar, o da
exaltação, e uma recusa da canção como balada, em que palavras e
melodias somam forças. Ser altissonante não apenas é insuficiente;
é também trair a presença de Cecília, a visão de Cecília, até
mesmo o nome de Cecília.
Não
é ele, portanto, que é bruto, carente de sutileza; é ela que não
pode ser apreendida em versos.
Nesse
sentido, o compositor não é um antirromântico, não está
menosprezando as outras Cecílias – as outras musas, as outras
amadas – que os outros cantam. O que está dizendo é que
simplesmente não tem como cantar a sua Cecília. Está dizendo que
não pode dizê-la:
Eu,
que não digo
Mas
ardo de desejo
Em
vez de grandes orquestras e de todas as letras, como ele faz?
Eu
te murmuro
Eu
te suspiro
Eu,
que soletro
Teu
nome no escuro
E
não o faz para ser escutado:
Me
escutas, Cecília?
Mas
eu te chamava em silêncio
Esse
cantor não canta: ele murmura, suspira, soletra no escuro, chama em
silêncio. Emite as palavras sem soltar a voz, sem abrir a boca, como
que sussurrando para si mesmo. E esse nome, Cecília, essas letras
que ele sopra no escuro e no silêncio, em si mesmas sugerem essa
sonoridade: duas sílabas sibilantes que já parecem pedir para que
ele fique quieto; a suavidade do “l” seguido de outro “i” que
impede a explosão do “a”.
Ele
ainda reconhece que esses lábios entreabertos não estão tão
tranquilos assim, tão repousados:
Pode
ser que, entreabertos
Meus
lábios de leve
Tremessem
por ti
Tremor,
ardor: toda a situação parece embutir um esforço de ser leve, de
respeitar o silêncio, de conter o espalhamento. Atrás do sussurro,
vibra a vontade de exaltá-la, de chamá-la em voz alta, mas isso
seria pôr fim àquilo que o encanta, seria interromper a cena que o
enleva:
Te
olho
Te
guardo
Te
sigo
Te
vejo dormir
No
último verso da canção, assim, o significado que estava em
suspenso se cristaliza na retina do leitor-ouvinte: vemos um homem,
um artista, contendo seu êxtase diante da amada que dorme, e apenas
murmurando seu nome, com o fôlego preso:
Eu,
que te vejo
E
nem quase respiro
Não
é que seu desejo por aquela mulher seja menor que seu encanto por
aquela visão; é que apenas olhar, mesmo que deixando escapar o nome
sussurrado, faz jus àquele amor; olhar e sussurrar são o único
modo de exaltar aquela musa que dorme. O jogo entre “olhar” e
“guardar” (que em italiano significa “olhar”) aponta para
isso: olhando a amada que dorme, ele a conserva dentro de si, ele não
a perde, não deixa de merecê-la. E o verbo seguinte, “seguir”,
parece dizer tanto que ele está firme em busca da amada, como que
seus olhos seguem suas formas, desenhando seu corpo e seu rosto
desacordados. Qualquer palavra a não ser seu nome, qualquer melodia
a não ser um suspiro, será uma negação desse amor. Por essa
redenção ao silêncio, na verdade, o desejo parece ainda mais
intenso.
A
canção, em suma, é como um instantâneo, o registro de alguns
minutos que o artista passa a contemplar a figura de uma mulher,
tremendo de desejo, segurando a respiração, suspendendo o canto.
Como quase sempre em Chico Buarque e nos grandes compositores, a
própria canção representa aquilo que descreve. A melodia é
discreta, interrompida sempre que parece que vai subir na escala:
“Eu, que te vejo / E nem quase respiro”, assim como “Eu, que
soletro / Teu nome no escuro” e “Eu, que não digo / Mas ardo de
desejo”, vai na descendente, quase como um trecho de canto falado.
O que parece soar como um refrão, “Me escutas, Cecília?”, logo
é desfeito por “Mas eu te chamava em silêncio”. Chico e seu
parceiro, Luiz Claudio Ramos, emprestam aqui a arquitetura tonal de
Tom Jobim, cujo centro sempre parece escapar, cuja melodia recomeça
sem terminar.
Essa
instabilidade, esse ritmo em ondas para cima e para baixo, é a
tradução do estado de espírito do cantor suspenso entre arder e
olhar. A melodia, como a letra, só parece se acomodar no último
verso, no lá menor de “dormir”. O leitor-ouvinte imediatamente
se projeta no lugar do cantor e busca suas próprias memórias de
cenas semelhantes, de quando ficou admirando a beleza de uma mulher
que dormia e achou que seria uma injustiça poética despertá-la
naquele momento memorável (o que não significa que não tenha
esperado até ela acordar)... Há em uma mulher dormindo um poder de
sugestão que nenhum verso captaria.
Por
esse aspecto, “Cecília”, que é do CD As cidades, de 1998,
lembra algumas poucas canções de Chico Buarque nas quais o prazer e
o sofrer dão espaço à admiração sutil. Pense em “Morro Dois
Irmãos”, do CD Uma palavra, de 1995, na qual ele diz que aprendeu
a desconfiar do silêncio daquela montanha porque sente nele a
“pulsação atravessada” e a “concentração de tempos”.
Aquilo que parece ser uma ausência de ritmos é, na realidade,
“todos os ritmos por dentro”, uma música parada que pulsa e põe
a rocha em movimento. Do mesmo modo, a dormente Cecília não se fixa
em palavras e melodias; é uma música parada e pulsante. Mas a
ênfase é contrária: se antes se tratava de chamar a atenção para
a música sob o silêncio, agora se trata de chamar a atenção para
o silêncio sob a música.
Das
canções anteriores, “Cecília” parece dialogar com a
excepcional “Todo o sentimento”, de Chico e Cristóvão Bastos,
de 1987, cuja última estrofe diz:
Depois
de te perder
Te
encontro, com certeza
Talvez
num tempo da delicadeza
Onde
não diremos nada
Nada
aconteceu
Apenas
seguirei, como encantado
Ao
lado teu
O
reencontro dos amantes será num tempo delicado e nada será dito,
como se nada tivesse acontecido, e o cantor seguirá a amada apenas
encantado, quieto, como quem recolhe o que tinha perdido e já não
precisa perder de novo. É a mesma decisão que toma o amante de
Cecília, que tanto queria exaltá-la, mas que sabe que o dizer
feriria a sutileza.
As
três canções, separadas em onze anos, são de um compositor
maduro, o mesmo Chico dos romances que escreve a partir de Estorvo
(1991) e que tanto abordam o silêncio que as palavras não
preenchem, ou melhor, que elas podem sugerir por sua carga afetiva
(como o protagonista de Budapeste sussurrando a língua
portuguesa para a secretária eletrônica de sua amada carioca). Como
dizia T. S. Eliot, a poesia não é soltar a emoção, é escapar
dela; não é expressar a personalidade, é escapar dela; mas só
quem tem personalidade e emoção sabe o que é escapar de ambas. Em
“Cecília”, a grandeza da canção está justamente em sua fuga
da retórica emotiva. E é isso que a faz ainda mais eloquente e
emocionante.
Daniel Piza, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos
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