Grande
coisa é haver recebido do céu uma partícula da sabedoria, o dom de
achar as relações das coisas, a faculdade de as comparar e o
talento de concluir! Eu tive essa distinção psíquica; eu a
agradeço ainda agora do fundo do meu sepulcro.
De
fato, o homem vulgar que ouvisse a última palavra do Damasceno, não
se lembraria dela, quando, tempos depois, houvesse de olhar para uma
gravura representando seis damas turcas. Pois eu lembrei-me. Eram
seis damas de Constantinopla, – modernas, – em trajos de rua,
cara tapada, não tapada a outra maneira, com um espesso pano que as
cobrisse deveras, mas com um véu tenuíssimo, que simulava descobrir
somente os olhos, e na realidade descobria a cara inteira. E eu achei
graça a essa esperteza da faceirice muçulmana, que assim esconde o
rosto, – e cumpre o uso, – mas não o esconde, – e divulga a
beleza. Aparentemente, nada há entre as damas turcas e o Damasceno;
mas se tu és um espírito profundo e penetrante (e duvido muito que
me negues isso), compreenderás que, tanto num como noutro caso,
surge aí a orelha de uma rígida e meiga companheira do homem
social...
Amável
Formalidade, tu és, sim, o bordão da vida, o bálsamo dos corações,
a medianeira entre os homens, o vínculo da terra e do céu; tu
enxugas as lágrimas de um pai, tu captas a indulgência de um
Profeta; se a dor adormece, e a consciência se acomoda, a quem,
senão a ti, deverão esse imenso benefício? A estima que passa de
chapéu na cabeça não diz nada à alma; mas a indiferença que
corteja deixa-lhe uma deleitosa impressão. A razão é que, ao
contrário de uma velha fórmula absurda, não é a letra que mata; a
letra dá vida; o espírito é que é objeto de controvérsia, de
dúvida, de interpretação, e conseguintemente de luta e de morte.
Vive tu, amável Formalidade, para sossego do Damasceno e glória de
Muhammed.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
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