[…]
Reflectir
enquanto a chuva nos vem caindo em cima não é certamente a coisa
mais cómoda do mundo, e foi talvez por isso que de um momento para o
outro deixou de chover, para que Caim pudesse pensar à vontade,
seguir livremente o curso do seu pensamento até ver aonde ele o
levaria. Não o chegaremos a saber nunca, nem nós, nem ele, o súbito
aparecimento, como se saísse do nada, do que restava de um casebre
distraiu-o das suas cogitações e dos seus pesares. Havia sinais de
cultivo da terra na parte de trás da casa, mas era evidente que os
habitantes a tinham abandonado havia muito tempo, em todo o caso
talvez não tanto se tivermos em conta a fragilidade intrínseca, a
precária coesão dos materiais destas humildes moradas, que
necessitam constantes reparações para não se irem abaixo em uma só
estação. Se lhes falta uma mão cuidadosa, a casa dificilmente
suportará a acção corrosiva das intempéries, em particular a
chuva que empapa os adobes e o vento que a vai raspando como se
estivesse forrado de lixa grossa. Algumas das paredes interiores
haviam caído, o tecto desabara na sua maior parte, apenas sobrevivia
um recanto relativamente protegido onde o exausto caminhante se
deixou cair. Mal se podia ter nas pernas, não só pelo muito que
tinha andado mas também porque a fome começava a apertá-lo. O dia
estava quase a chegar ao fim, em pouco tempo seria noite. Vou ficar
aqui, disse Caim em voz alta, conforme era seu costume, como se
precisasse de tranquilizar-se a si mesmo, ele a quem ninguém ameaça
neste momento, provavelmente nem o próprio senhor sabe onde ele se
encontra. Apesar de o tempo não estar demasiado frio, a túnica
molhada, pegada à pele, causava-lhe arripios. Pensou que despindo-a
mataria dois coelhos de uma cajadada, primeiro porque se acabariam os
frios, e também porque a túnica, sendo feita de pano mais fino que
grosso, em pouco tempo secaria. Assim fez e imediatamente se sentiu
melhor. E verdade que não lhe pareceu bem ver-se nu como tinha vindo
ao mundo, mas estava sozinho, sem testemunhas, sem ninguém que lhe
pudesse tocar. Este pensamento provocou nele um novo arripio, não o
mesmo, não aquele que havia resultado directamente do contacto da
túnica molhada, mas uma espécie de estremecimento na região do
sexo, um ligeiro entumecimento que não tardou a desaparecer, como se
se tivesse envergonhado de si mesmo. Caim sabia o que aquilo era,
mas, apesar da sua juventude, não lhe prestava grande atenção ou
simplesmente tinha medo de que dali lhe viesse mais mal que bem.
Enroscou-se no seu canto, juntando os joelhos com o peito, e assim
adormeceu. O frio da madrugada fê-lo acordar. Estendeu a mão para
apalpar a túnica, sentiu que ainda havia nela um resto de humidade,
mas, apesar disso, decidiu-se a vesti-la, acabaria de secar no corpo.
Não teve sonhos nem pesadelos, dormiu como se supõe que deverá
dormir uma pedra, sem consciência, sem responsabilidade, sem culpa,
porém, ao acordar, à primeira luz da manhã, as suas palavras
foram, Matei o meu irmão. Se os tempos fossem outros, talvez tivesse
chorado, talvez se tivesse desesperado, talvez tivesse dado punhadas
no peito e na cabeça, mas sendo as coisas o que são, praticamente o
mundo só agora foi inaugurado, faltam-nos ainda muitas palavras para
que comecemos a tentar dizer quem somos e nem sempre daremos com as
que melhor o expliquem, contentou-se com repetir as que havia dito
até que deixaram de significar e não foram mais que uma série de
sons inconexos, uns balbuceios sem sentido. Foi então que percebeu
que afinal havia sonhado, não um sonho precisamente, mas uma imagem,
a sua, regressando a casa e encontrando o irmão no vão da porta, à
sua espera. Assim o recordará durante toda a vida como se tivesse
feito as pazes com o seu crime e não houvesse mais remorso que
sofrer.Saiu da barraca e aspirou profundamente o ar frio. O sol ainda
não havia nascido, mas o céu já se iluminava de delicados tons
coloridos, o suficiente para que a árida e monótona paisagem que
tinha diante dos olhos, a esta primeira luz da manhã, aparecesse
transfigurada, uma espécie de jardim do éden sem proibições. Caim
não tinha qualquer motivo para orientar os seus passos numa direcção
precisa, mas instintivamente buscou os sinais que deixara antes de se
ter desviado para o casebre em que passara a noite. Era simples,
afinal bastaria caminhar ao encontro do sol, para aquele lado, onde
ele não tardaria a levantar-se. Aparentemente apaziguado pelas horas
de sono, o estômago moderara as contracções, e seria bom que se
mantivesse nessa disposição porque esperança de comida próxima
não havia nenhuma, e se é certo que de vez em quando aparecia uma
ou outra figueira, frutos não tinham, que não era tempo deles. Com
um resto de energia que não imaginava possuir ainda, reiniciou a
caminhada. O sol apareceu, hoje não choverá, é mesmo possível que
venha a fazer calor. Ao cabo de não muito tempo, começou a
sentir-se outra vez cansado. Tinha de encontrar algo de comer, ou
então acabaria prostrado neste deserto, em poucos dias reduzido à
ossamenta, que disso se encarregariam as aves carnívoras ou alguma
matilha de cães asselvajados que até agora ainda não se tinham
manifestado. Estava porém escrito que a vida de Caim não se
acabaria aqui, sobretudo porque não teria valido a pena que o senhor
tivesse perdido tanto tempo a amaldiçoá-lo se era para vir morrer
neste páramo. O aviso veio de baixo, dos fatigados pés que haviam
tardado a perceber que o chão que pisavam era já outro, despido de
vegetação, sem ervas ou cardos que embaraçassem o andar, enfim,
para tudo deixar dito em poucas palavras, Caim, sem saber como nem
quando, tinha achado um caminho. Alegrou-se o pobre errante, pois é
norma conhecida que uma via de trânsito, estrada, vereda ou
carreiro, acabará por conduzir, mais cedo ou mais tarde, perto ou
longe, a um lugar povoado onde talvez seja possível encontrar
trabalho, tecto e um naco de pão que mate esta fome. Animado pelo
súbito descobrimento, fazendo, como é costume dizer-se, das tripas
coração, buscou forças onde já as não havia e acelerou o passo,
sempre à espera de ver aparecer uma casa com sinais de vida, um
homem montado num burro ou uma mulher com um cântaro à cabeça.
Ainda teve de andar muito. O velho que finalmente lhe apareceu pela
frente ia a pé e levava duas ovelhas atadas por um baraço. Caim
saudou-o com as palavras mais cordiais do seu vocabulário, mas o
homem não retribuiu, Que marca é essa que tens na testa, perguntou.
Apanhado de surpresa, Caim perguntou por sua vez, Qual marca, Essa,
disse o homem, levando a mão à sua própria testa, É um sinal de
nascença, respondeu Caim, Não deves ser boa gente, Quem to disse,
como o sabes, respondeu Caim imprudentemente, Como diz o refrão
antigo, o diabo que te assinalou, algum defeito te encontrou, Não
sou melhor nem pior que os demais, procuro trabalho, disse Caim
tratando de levar a conversa ao terreno que lhe convinha, Trabalho é
o que por aqui não falta, que sabes tu fazer, perguntou o velho, Sou
agricultor, Já temos agricultores em quantidade suficiente, por esse
lado não irás conseguir nada, além disso vens sozinho, sem
família, Perdi a minha, Perdeste-a como, Perdi-a simplesmente, e não
há mais que contar, Sendo assim, deixo-te, não gosto da tua cara
nem desse sinal que tens na testa. Já se afastava, mas Caim ainda o
reteve, Não vás, diz-me ao menos como chamam a estes sítios,
Chamam-lhes terra de nod, E nod que quer dizer, Significa terra da
fuga ou terra dos errantes, diz-me tu, já que aqui chegaste, de quê
andas fugido e porquê és um errante, Não conto a minha vida ao
primeiro que encontre no caminho com duas ovelhas atadas por um
baraço, além disso não te conheço, não te devo respeito e não
tenho por que responder às tuas perguntas, Voltaremos a ver-nos,
Quem sabe, talvez não encontre trabalho aqui e tenha de buscar outro
destino, Se és capaz de moldear um adobe e levantar uma parede, este
é o teu destino, Aonde devo ir, perguntou Caim, Segue por esta rua a
direito, ao fundo há uma praça, aí terás a resposta, Adeus,
velho, Adeus, oxalá não chegues tu a sê-lo, Por baixo das palavras
que dizes percebo que há outras que calas, Sim, por exemplo, essa
tua marca não é de nascença, não a fizeste a ti próprio, nada do
que disseste aqui é verdadeiro, Pode ser que a minha verdade seja
para ti mentira, Pode ser, sim, a dúvida é o privilégio de quem
viveu muito, será por isso que não conseguiste convencer-me a
aceitar como certezas o que para mim mais se parece a falsidades,
Quem és tu, perguntou Caim, Cuidado, rapaz, se me perguntas quem sou
estarás a reconhecer o meu direito a querer saber quem és, Nada me
obrigará a dizê-lo, Vais entrar nesta cidade, vais ficar aqui, mais
cedo ou mais tarde tudo se saberá, Só quando tenha de ser e não
por mim, Diz-me, ao menos, como te chamas, Abel é o meu nome, disse
Caim.
Enquanto
o falso Abelvai andando em direcção à praça onde, no dizer do
velho, se encontrará com o seu destino, atendamos à pertinentíssima
observação de alguns leitores vigilantes, dos sempre atentos, que
consideram que o diálogo que acabámos de registar como acontecido
não seria historicamente nem culturalmente possível, que um
lavrador de poucas e já nenhumas terras, e um velho de quem não se
conhecem ofício nem benefício, nunca poderiam pensar e falar assim.
Têm razão esses leitores, porém, a questão não estará tanto em
dispor ou não dispor de ideias e vocabulário suficiente para as
expressar, mas sim na nossa própria capacidade de admitir, que mais
não seja por simples empatia humana e generosidade intelectual, que
um camponês das primeiras eras do mundo e um velho com duas ovelhas
atadas a um baraço, apenas com o seu limitado saber e uma linguagem
que ainda estaria a dar os primeiros passos, fossem impelidos pela
necessidade a provar maneiras de expressar premonições e intuições
aparentemente fora do seu alcance. Que eles não disseram aquelas
palavras, é mais do que óbvio, mas as dúvidas, as suspeitas, as
perplexidades, os avanços e recuos da argumentação, estiveram lá.
O que fizemos foi simplesmente passar ao português corrente o duplo
e para nós irresolúvel mistério da linguagem e do pensamento
daquele tempo. Se o resultado é coerente agora, também o seria na
altura porque, ao final, almocreves somos e pela estrada andamos.
Todos, tanto os sábios como os ignorantes.
Aí
está a praça. Em verdade, ter chamado a isto uma cidade foi um
exagero. Umas quantas casas térreas mal alinhadas, umas quantas
crianças brincando não se sabe a quê, uns adultos que se movem
como sonâmbulos, uns burros que parecem ir aonde querem e não aonde
os conduzem, qualquer cidade que se preze desse nome nunca se
reconhecerá na cena primitiva que temos diante dos olhos, faltam
aqui os automóveis e os autocarros, os sinais de tráfego, os
semáforos, as passagens subterrâneas, os anúncios nas frontarias
ou nos telhados das casas, numa palavra, a modernidade, a vida
moderna. Enfim, tudo se andará, o progresso, tal como virá a
reconhecer-se mais tarde, é inevitável, fatal como a morte. É a
vida. Ao fundo vê-se um edifício em construção, uma espécie de
palácio rústico de dois pisos, nada que se pareça a mafra, a
Versalhes ou a buckingham, em que se afadigam dezenas de pedreiros e
ajudas, estes carregando adobes às costas, aqueles assentando-os em
fieiras regulares. Caim nada entende de trabalhos de alta ou baixa
alvenaria, mas, se o seu destino o está esperando aqui, por muito
amargo que possa vir a ser, e isso sempre se sabe quando já é
demasiado tarde para mudar, não lhe resta outro remédio senão
enfrentá-lo. Como um homem. Disfarçando o melhor que podia a
ansiedade e a fome que lhe faziam tremer as pernas, avançou para o
estaleiro. Se por natural desconhecimento os operários o confundiram
com um daqueles ociosos que em todas as épocas da humanidade se
detiveram para ver trabalhar os outros, logo perceberam que quem ali
estava era mais uma vítima da crise, um triste desempregado à busca
de uma tábua de salvação. Quase sem que Caim tivesse necessidade
de dizer ao que ia, apontaram-lhe o olheiro que vigiava o grupo, Fala
com ele, disseram. Caim foi, subiu ao poiso do observador e, depois
das saudações usuais, disse que andava à procura de trabalho. O
olheiro perguntou, Que sabes tu fazer, e Caim respondeu, Desta arte,
nada, sou lavrador, mas imagino que mais dois braços alguma
serventia poderão ter, Dois braços, não, uma vez que não sabes
nada do ofício de alvenel, mas dois pés, talvez, Dois pés,
estranhou Caim, sem compreender, Sim, dois pés, para pisar o barro,
Ah, Espera aqui, vou falar com o capataz. Retirava-se já, mas ainda
voltou a cabeça para perguntar, Como te chamas, Abel, respondeu
Caim. O olheiro não se demorou muito, Podes começar a trabalhar já,
eu levo-te à pisa do barro, Quanto vou ganhar, perguntou Caim, Os
pisadores ganham todos por igual, Sim, mas quanto irei eu ganhar,
Isso não é da minha conta, em todo o caso, se queres um bom
conselho, não perguntes já, não está bem visto, primeiro terás
de mostrar o que vales, e ainda te digo mais, não deverias perguntar
nada, espera que te paguem, Se pensas que é o melhor, assim farei,
mas não me parece justo, Aqui não convém ser impaciente, De quem é
a cidade, como se chama, perguntou Caim, Como se chama quem, a cidade
ou o senhor dela, Ambos, A cidade, por assim dizer, ainda não tem
nome, uns chamam-lhe de uma forma, outros de outra, de toda a maneira
estes sítios são conhecidos por terra de nod, Já o sabia, disse-mo
um velho que encontrei ao chegar, Um velho com duas ovelhas atadas
por um baraço, perguntou o olheiro, Sim, Aparece por aí às vezes,
mas não vive cá, E o senhor daqui, é quem, O senhor é senhora e o
seu nome é lilith, Não tem marido, perguntou Caim, Creio ter ouvido
dizer que se chama noah, mas ela é quem governa o rebanho, disse o
olheiro, e imediatamente anunciou, Aqui está a pisa do barro. Um
grupo de homens com a túnica arregaçada com um nó acima do joelho
dava voltas na grossa camada de uma mistura de barro, palha e areia,
calcando-a com determinação de modo a tornar a massa tão homogénea
quanto fosse possível na falta de meios mecânicos. Não era um
trabalho que exigisse muita ciência, apenas boas e sólidas pernas
e, podendo ser, um estômago confortado, o que, como sabemos, não
era o caso de Caim. Disse o olheiro, Podes entrar, só tens de fazer
o que fazem os outros, Há três dias que não como, tenho medo de
que se me quebrem as forças e caia aí no meio do barro, disse Caim,
Vem comigo, Não tenho com que pagar, Pagas depois, vem. Foram os
dois a uma espécie de quiosque que havia a um lado da praça e onde
se vendia comida.
[...]
José Saramago, in Caim
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