[...]
Enquanto
Abel preferia a companhia das ovelhas e dos cordeiros, as alegrias de
Caim iam todas para as enxadas, as forquilhas e as gadanhas, um,
fadado para abrir caminho na pecuária, outro, para singrar na
agricultura. Há que reconhecer que a distribuição da mão-de-obra
doméstica era absolutamente satisfatória, uma vez que cobria por
inteiro os dois mais importantes sectores da economia da época. Era
voz unânime, entre os vizinhos, que aquela família tinha futuro. E
ia tê-lo, como em pouco tempo se haveria de ver, com a sempre
indispensável ajuda do senhor, que para isso está. Desde a mais
tenra infância Caim e Abel haviam sido os melhores amigos, a um
ponto tal que nem irmãos pareciam, aonde ia um, o outro ia também,
e tudo faziam de comum acordo. O senhor os quis, o senhor os juntou,
assim diziam na aldeia as mães ciumentas, e parecia certo. Até que
um dia o futuro entendeu que já era hora de se apresentar. Abel
tinha o seu gado, Caim o seu agro, e, como mandavam a tradição e a
obrigação religiosa, ofereceram ao senhor as primícias do seu
trabalho, queimando Abela delicada carne de um cordeiro e Caim os
produtos da terra, umas quantas espigas e sementes. Sucedeu então
algo até hoje inexplicado. O fumo da carne oferecida por Abel subiu
a direito até desaparecer no espaço infinito, sinal de que o senhor
aceitava o sacrifício e nele se comprazia, mas o fumo dos vegetais
de Caim, cultivados com um amor pelo menos igual, não foi longe,
dispersou-se logo ali, a pouca altura do solo, o que significava que
o senhor o rejeitava sem qualquer contemplação. Inquieto, perplexo,
Caim propôs a Abel que trocassem de lugar, podia ser que houvesse
ali uma corrente de ar que fosse a causa do distúrbio, e assim
fizeram, mas o resultado foi o mesmo. Estava claro, o senhor
desdenhava Caim. Foi então que o verdadeiro carácter de Abel veio
ao de cima. Em lugar de se compadecer do desgosto do irmão e
consolá-lo, escarneceu dele, e, como se isto ainda fosse pouco,
desatou a enaltecer a sua própria pessoa, proclamando-se, perante o
atónito e desconcertado Caim, como um favorito do senhor, como um
eleito de deus. O infeliz Caim não teve outro remédio que engolir a
afronta e voltar ao trabalho. A cena repetiu-se, invariável, durante
uma semana, sempre um fumo que subia, sempre um fumo que podia
tocar-se com a mão e logo se desfazia no ar. E sempre a falta de
piedade de Abel, os dichotes de Abel, o desprezo de Abel. Um dia Caim
pediu ao irmão que o acompanhasse a um vale próximo onde era voz
corrente que se acoitava uma raposa e ali, com as suas próprias
mãos, o matou a golpes de uma queixada de jumento que havia
escondido antes num silvado, portanto com aleivosa pré-meditação.
Foi nesse exacto momento, isto é, atrasada em relação aos
acontecimentos, que a voz do senhor soou, e não só soou ela como
apareceu ele. Tanto tempo sem dar notícias, e agora aqui estava,
vestido como quando expulsou do jardim do éden os infelizes pais
destes dois. Tem na cabeça a coroa tripla, a mão direita empunha o
ceptro, um balandrau de rico tecido cobre-o da cabeça aos pés. Que
fizeste com o teu irmão, perguntou, e Caim respondeu com outra
pergunta, Era eu o guarda-costas de meu irmão, Mataste-o, Assim é,
mas o primeiro culpado és tu, eu daria a vida pela vida dele se tu
não tivesses destruído a minha, Quis pôr-te à prova, E tu quem és
para pores à prova o que tu mesmo criaste, Sou o dono soberano de
todas as coisas, E de todos os seres, dirás, mas não de mim nem da
minha liberdade, Liberdade para matar, Como tu foste livre para
deixar que eu matasse a Abel quando estava na tua mão evitá-lo,
bastaria que por um momento abandonasses a soberba da infalibilidade
que partilhas com todos os outros deuses, bastaria que por um momento
fosses realmente misericordioso, que aceitasses a minha oferenda com
humildade, só porque não deverias atrever-te a recusá-la, os
deuses, e tu como todos os outros, têm deveres para com aqueles a
quem dizem ter criado, Esse discurso é sedicioso, É possível que o
seja, mas garanto-te que, se eu fosse deus, todos os dias diria
Abençoados sejam os que escolheram a sedição porque deles será o
reino da terra, Sacrilégio, Será, mas em todo o caso nunca maior
que o teu, que permitiste que Abel morresse, Tu é que o mataste,
Sim, é verdade, eu fui o braço executor, mas a sentença foi ditada
por ti, O sangue que aí está não o fiz verter eu, Caim podia ter
escolhido entre o mal e o bem, se escolheu o mal pagará por isso,
Tão ladrão é o que vai à vinha como aquele que fica a vigiar o
guarda, disse Caim, E esse sangue reclama vingança, insistiu deus,
Se é assim, vingar-te-ás ao mesmo tempo de uma morte real e de
outra que não chegou a haver, Explica-te, Não gostarás do que vais
ouvir, Que isso não te importe, fala, E simples, matei Abel porque
não podia matar-te a ti, pela intenção estás morto, Compreendo o
que queres dizer, mas a morte está vedada aos deuses, Sim, embora
devessem carregar com todos os crimes cometidos em seu nome ou por
sua causa, Deus está inocente, tudo seria igual se não existisse,
Mas eu, porque matei, poderei ser morto por qualquer pessoa que me
encontre, Não será assim, farei um acordo contigo, Um acordo com o
réprobo, perguntou Caim, mal acreditando no que acabara de ouvir,
Diremos que é um acordo de responsabilidade partilhada pela morte de
Abel, Reconheces então a tua parte de culpa, Reconheço, mas não o
digas a ninguém, será um segredo entre deus e Caim, Não é certo,
devo estar a sonhar, Com os deuses isso acontece muitas vezes, Por
serem, como se diz, inescrutáveis os vossos desígnios, perguntou
Caim, Essas palavras não as disse nenhum deus que eu conheça, nunca
nos passaria pela cabeça dizer que os nossos desígnios são
inescrutáveis, isso foi coisa inventada por homens que presumem de
ser tu cá, tu lá com a divindade, Então não serei castigado pelo
meu crime, perguntou Caim, A minha porção de culpa não absolve a
tua, terás o teu castigo, Qual, Andarás errante e perdido pelo
mundo, Sendo assim, qualquer pessoa me poderá matar, Não, porque
porei um sinal na tua testa, ninguém te fará mal, mas, em pago da
minha benevolência, procura tu não fazer mal a ninguém, disse o
senhor, tocando com o dedo indicador a testa de Caim, onde apareceu
uma pequena mancha negra, Este é o sinal da tua condenação,
acrescentou o senhor, mas é também o sinal de que estarás toda a
vida sob a minha protecção e sob a minha censura, vigiar-te-ei onde
quer que estejas, Aceito, disse Caim, Não terias outro remédio,
Quando principia o meu castigo, Agora mesmo, Poderei despedir-me dos
meus pais, perguntou Caim, Isso é contigo, em assuntos de família
não me meto, mas com certeza vão querer saber onde está Abel, e
suponho que não lhes irás dizer que o mataste, Não, Não, quê,
Não me despedirei dos meus pais, Então, parte. Não havia mais nada
a dizer. O senhor desapareceu antes que Caim tivesse dado o primeiro
passo. A cara de Abel estava coberta de moscas, havia moscas nos seus
olhos abertos, moscas na comissura dos lábios, moscas nas feridas
que tinha sofrido nas mãos quando as levantara para proteger-se dos
golpes. Pobre Abel, a quem deus tinha enganado. O senhor havia feito
uma péssima escolha para a inauguração do jardim do éden, no jogo
da roleta posto a correr todos tinham perdido, no tiro ao alvo de
cegos ninguém havia acertado. A eva e adão ainda restava a
possibilidade de gerarem um filho para compensar a perda do
assassinado, mas bem triste há-de ser a gente sem outra finalidade
na vida que a de fazer filhos sem saber porquê nem para quê. Para
continuar a espécie, dizem aqueles que creem num objectivo final,
numa razão última, embora não tenham nenhuma ideia sobre quais
sejam e que nunca se perguntaram em nome de quê terá a espécie de
continuar como se fosse ela a única e derradeira esperança do
universo. Ao matar Abel por não poder matar o senhor, Caim deu já a
sua resposta. Não se augure nada bom da vida futura deste homem.
E,
contudo, esse homem acossado que aí vai, perseguido pelos seus
próprios passos, esse maldito, esse fratricida, teve bons princípios
como poucos. Que o diga sua mãe que tantas vezes o foi encontrar,
sentado no chão húmido do horto, a olhar para uma pequena árvore
recém-plantada, à espera de vê-la crescer. Tinha quatro ou cinco
anos e queria ver crescer as árvores. Então, ela, pelos vistos
ainda mais imaginosa que o filho, explicou-lhe que as árvores são
muito tímidas, só crescem quando não estamos a olhar para elas, E
que lhes dá vergonha, disse-lhe um dia. Por alguns instantes Caim
permaneceu calado, a pensar, mas logo respondeu, Então não olhes,
mãe, de mim não têm vergonha, estão habituadas. Prevendo já o
que viria depois, a mãe apartou o olhar e imediatamente a voz do
filho soou triunfal, Agora mesmo cresceu, agora mesmo cresceu, eu bem
te tinha dito que não olhasses. Nessa noite, quando adão voltou do
trabalho, eva, rindo, contou-lhe o que se tinha passado e o marido
respondeu, Esse rapaz vai longe. Talvez fosse, sim, se o senhor não
se tivesse atravessado no seu caminho. Ainda assim, longe bastante já
ele ia, embora não no sentido que o pai lhe havia vaticinado.
Arrastando os pés de cansaço, avançava por um descampado sem um
arruinado casebre à vista ou outro sinal de vida, uma solidão
desgarradora que o céu raso aumentava ainda mais pela ameaça de uma
chuvada iminente. Não teria onde recolher-se, a não ser debaixo de
alguma árvore entre as poucas que, lentamente, à medida que
caminhava, iam assomando a copa acima do horizonte próximo. As
ramagens, em geral escassamente povoadas de folhas, não garantiam
protecção digna desse nome. Foi então, ao caírem as primeiras
gotas, que Caim deu por que tinha a túnica suja de sangue. Pensou
que talvez a mancha desaparecesse com a chuva, mas logo percebeu que
não, melhor seria disfarçá-la com terra, ninguém seria capaz de
suspeitar o que estaria debaixo, tanto mais que gente com túnicas
sujas, enodoadas, era o que menos faltava por estes sítios. Começou
a chover com força, em pouco tempo a túnica ficou empapada, da
mancha de sangue não se percebia o menor vestígio, além disso
sempre poderia dizer, se fosse perguntado, que se tratava de sangue
de cordeiro. Sim, disse Caim em voz alta, mas Abel não era nenhum
cordeiro, era o meu irmão, e eu matei-o. Nesse momento não se
lembrou de que havia dito ao senhor que ambos eram culpados do crime,
mas a memória não tardou a ajudá-lo, por isso acrescentou, Se o
senhor, que, segundo se diz, tudo sabe e tudo pode, tivesse feito
sumir dali a queixada de burro, eu não teria matado Abel, e agora
podíamos estar os dois à porta da casa a ver a chuva cair, e Abel
reconheceria que realmente o senhor havia feito mal em não aceitar o
único que eu tinha para lhe oferecer, as sementes e as espigas
nascidas do meu afã e do meu suor, e ele ainda estaria vivo e nós
seríamos tão amigos como sempre o tínhamos sido. Chorar o leite
derramado não é tão inútil quanto se diz, é de alguma maneira
instrutivo porque nos mostra a verdadeira dimensão da frivolidade de
certos procedimentos humanos, porquanto se o leite se derramou,
derramado está e só há que limpá-lo, e se Abel foi morto de morte
malvada é porque alguém lhe tirou a vida.
[...]
José Saramago, in Caim
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