— Bem
já falavam os antigos, o que passa devagar é o dia, o ano passa
depressa. Num instante, hein, cara, lá se foi essa desgraça, já
foi tarde.
— Pra
mim, não. Quer dizer, o ano não teve nada para comemorar, mas é
sempre mais um ano que vai embora, não é? Na nossa idade, isso já
começa a pesar, o cara fica matutando, fazendo conta... Tu faz
conta?
— Faz
conta, como? Conta dos anos? Claro, eu vou contando os anos, é
normal, todo mundo sabe quantos anos tem. Pode até negar, como você,
mas sabe.
— Não
é isso, cara, eu não estou me referindo aos anos que a gente tem e,
aliás, eu não nego a idade, quem nega é você, mas deixa isso pra
lá. O que eu estou falando é nos anos que ainda restam, os que vêm
pela frente, sacou? Tu faz conta dos anos que ainda deve ter pela
frente, mais ou menos?
— Ah,
eu não. Quer dizer, às vezes. Às vezes eu penso assim... Mas é
tudo muito aleatório. Vê o caso do Caldeira, tu manja bem o
Caldeira, todo mundo manja, sempre de calção, peito cabeludo de
fora, nada de cigarro, nada de birita, nada de perder noite, comida
quase que somente capim, mais saúde do que a zaga da seleção da
Nigéria e aí o que é que aconteceu? Sentiu uma pontadazinha na
barriga, foi no médico, o médico mandou ele fazer uma cacetada de
exames tipo Nasa e aí falou que nem precisava abrir, já estava tudo
lá dentro tomado, negócio pra no máximo mais dois meses. Petê,
saudações, como se dizia no tempo do telegrama. Não deu outra. Tu
tem visto ele?
— Não,
ele...
— Claro
que não, pra ver tu tem de ir no São João Batista, corredor dos
não-fumantes, ala natureba, quadra da lei seca, superquadra da
aeróbica. É lá que ele está. Quer dizer, não dá pra prever,
ficar minhocando esses troços, tu pode levar bala perdida, pode ser
atropelado, pode ter uma porrada de coisas, quem está vivo está
morto, não adianta pensar, só dá estresse.
— É,
eu sei, mas a gente não comanda os pensamentos, eles pintam sem
autorização. Eu fico pensando assim que, descontando essas
possibilidades que tu disse, mais ou menos dentro da chamada
normalidade, eu faço as contas e aí penso que, com alguma sorte,
emplaco mais uns quinze, né não? É, mais uns quinze está de bom
tamanho. Com muita sorte, mas muita sorte mesmo, mais vinte, daí não
pode passar. Tu lê obituário?
— Taí,
obituário eu leio. Leio e observo sempre a idade dos caras. Tem dias
que é todo mundo na faixa dos oitentinha, são os melhores dias. Mas
tem uns infartos com 50, 55, umas tais “prolongadas doenças” que
todo mundo sabe quais são, tem umas coisas assim, o melhor seria não
ler merda de obituário nenhum. Mas é vício, peguei o vício e
agora é uma desgraça, vou em cima direto, leio eles antes de saber
qual é a manchete.
— Eu
também leio, cara, também sou viciado. É isso e as contas, não
tem jeito. Eu não quero, mas faço essas contas todo dia, quase toda
hora.
— Pô,
não fala mais nesse troço, que eu também já estou aqui querendo
entrar nessa de fazer conta, isso não tá com nada, cara, vamos
parar com isso, é ano novo! Lembra o ditado: ano novo, vida nova! É
isso aí, vida nova!
— Isso
tu repete sem notar que é besteira. Não tem nada de novo, está
tudo ficando mais velho, nós e o mundo, tudo mais velho.
— Eu
tou falando no sentido filosófico, tua grossura nata não te permite
penetrar no sentido filosófico. E no sentido prático também, de um
pólo a outro. A renovação é um fato. Tu já soube da última moda
em matéria de cirurgia plástica? Nos Estados Unidos, está uma
verdadeira febre.
— Pode
estar, mas não na frente do Brasil. Nesse ponto, o Brasil sempre
esteve muito bem.
— Não
na parte a que eu vou me referir. Agora a moda é operação plástica
vaginal, meu amigo, é isso aí. Quer mais renovação do que isso?
— Plástica
vaginal? Mas para corrigir defeitos de anatomia, essas coisas, né
não? É cirurgia corretiva.
— Nada
disso, cirurgia estética! É a evolução natural. Primeiro foram os
pêlos, tu sabe que o pentelheiro é hoje um especialista importante,
ou não sabe? Já estão até propondo um nome mais respeitável, vai
ver regulamentam a profissão. O nome é “pectineocista”, chique,
não é? É outro ponto em que o Brasil está na vanguarda, tem até
um corte chamado Brazilian, isto aqui não é só Santos Dumont, não,
cara. Nós hoje dispomos de grandes profissionais.
— É,
isso eu acompanho mais ou menos nas revistas.
— Pois
é, tem o Brazilian, tem aquele que parece cabelo de índio seminole,
tem o bigodinho do Hitler, tem o coração, tem muita criatividade. E
agora eles vão mais fundo, já é especialidade médica, pode
esperar que vai pegar aqui e vai ser já este ano. E tu ainda acha
que não há renovação? Já imaginou?
João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite
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