2.
A POÉTICA DE “REALEJO”
A
poética de “Realejo”, rejeitando explicitamente a concepção
mítico-mágica de poesia, instaura o processo de ruptura com a
poética de “Tem mais samba”, instigando o poeta a fazer uma
avaliação crítica de sua produção e repensar a formulação
anterior da mimese poética e da relação do eu lírico com o
processo de criação.
O
poeta compreende que a Identificação, neutralizando a manifestação
do processo de Diferenciação nas relações do cotidiano, produz
uma realidade carnavalizada que, criando uma identificação falsa e
um compartilhamento ilusório da experiência existencial, mascara
sim, mas não redimensiona o processamento da realidade. De modo que
a intervenção poética, realizando a mimese no processo de
Identificação, integra o processo de carnavalização e reproduz,
agora sob o influxo mágico da poesia, a mesma ilusória e falsa
transformação do cotidiano. Considerando ineficaz a intervenção
poética em relação ao propósito de alterar o processamento da
realidade e redimensionar a experiência humana, o poeta julga sua
produção lírica igualmente insatisfatória. Para corrigir os
desvios observados, tanto no que concerne aos princípios quanto aos
objetivos de sua criação, o poeta resolve deslocar a mimese poética
para o processo de Diferenciação e reciclar o projeto poético,
eliminando, agora sob o influxo da diferenciação lírica, o efeito
mágico da etapa anterior.
A
poética de “Realejo”, lançada no segundo LP, Chico
Buarque de Hollanda vol. 2, RGE 3030004/1967, que agrega
composições datadas de 1966/1967, incluindo, todavia, “Fica” e
“Lua cheia”, ambas de 1965, está configurada metonímica e
metaforicamente nos poemas “Realejo” e “A televisão”,
respectivamente.
Realejo
Estou
vendendo um realejo
Quem
vai levar
[...]
Já
vendi tanta alegria
Vendi
sonhos a varejo
Ninguém
mais quer hoje em dia
Acreditar
no realejo
Sua
sorte, seu desejo
Ninguém
mais veio tirar
Então
eu vendo o realejo
Quem
vai levar
Estou
vendendo um realejo
[...]
Quando
eu punha na calçada
Sua
valsa encantadora
Vinha
moça apaixonada
Vinha
moça casadoura
Hoje
em dia já não vejo
Serventia
em seu cantar
Então
eu vendo o realejo
Quem
vai levar
[…]
A
análise do poema permite inferir, a partir da relação externa e
interna do eu lírico com o realejo, os parâmetros de configuração
de uma nova poética. Utilizando a estrutura de um anúncio de
classificados, “Estou vendendo um realejo”, o eu lírico,
simultaneamente, realça a intenção de noticiar a ruptura com a
poética anterior, da qual se despede, desfazendo o vínculo
subjetivo que o prendia a ela, e a necessidade de justificar, para si
mesmo e para o público, o “passo a passo” da decisão de dar um
novo encaminhamento à produção lírica. Assim, tal como num
anúncio, explica o porquê da venda e as qualidades mágicas do
instrumento, a serventia que teve no passado e mesmo as vantagens,
“Quem comprar leva consigo”, do hipotético comprador. “Quem
vai levar [?]” ratifica, de forma repetitiva, a insatisfação do
vendedor com a utilização do instrumento em questão e o desejo de
superação da experiência encantadora.
O
anúncio se reproduz nas três estrofes que compõem o poema,
repetindo, enfaticamente, que a venda foi motivada pela incapacidade
instrumental do realejo em adaptar-se às novas motivações
criativas do seu proprietário, embora, ressalvado o anacronismo que
impede sua atuação no presente, esteja funcionando perfeitamente.
Nas duas primeiras estrofes, o eu lírico considera sua relação com
o realejo por meio da contraposição de dois segmentos temporais
distintos, o do passado (“Já vendi tanta alegria / Vendi sonhos a
varejo / [...] / Quando eu punha na calçada / Sua valsa
encantadora”), em que o instrumento estava adequado à expressão
de identificação da intenção criativa, e o do presente, em que a
inadequação do realejo à nova realidade (“Ninguém mais quer
hoje em dia / Acreditar no realejo”) já não satisfaz a intenção
criativa (“Hoje em dia já não vejo / Serventia em seu cantar”),
motivando a venda (“Então eu vendo o realejo / Quem vai levar”).
Na
última estrofe, o eu lírico reafirma sua proposta de venda (“Estou
vendendo um realejo”) e acrescenta que os atributos mágicos do
instrumento estão incluídos na transação (“Quem comprar leva
consigo / Todo encanto que ele traz”), ou seja, sua intenção é
desfazer-se do instrumento e eliminar a aderência mágica do
processo de criação (“E de quebra leva o harpejo / De sua valsa
se agradar”), inadequada aos seus propósitos atuais.
O
poeta, contrapondo os segmentos temporais “hoje em dia” e “quando
eu punha”, traça uma divisória na sua obra, distinguindo dois
momentos diferentes de sua criação, o da poética de “Tem mais
samba”, já esgotado em si mesmo, e o novo momento da poética
de “Realejo”, referenciados, respectivamente, na oposição
sêmica rejeição x procura, geratriz de sentido do poema, que
sustenta a proposta de ruptura entre as duas poéticas.
O
poema “A televisão” dispõe, nas três estrofes de dezesseis
versos que o compõem, os referentes televisão/lua numa
estrutura opositiva do presente e do passado, e reflete, a partir do
confronto entre eles, o impacto do primeiro no processamento da
realidade cotidiana e as mudanças de gosto e sensibilidade que
alteraram o modo de fruição da experiência humana. A contraposição
dos referentes externos, lua x televisão, sustenta, na
intertextualidade do poema, o confronto poético entre a imagem da
lua, geradora do velho lirismo mágico de Identificação, e a da
televisão, geradora do novo lirismo de Diferenciação, reafirmando,
metaforicamente, a oposição de sentido rejeição x procura
que define a poética de “Realejo”.
A
voz enunciativa emerge de uma subjetividade lírica anônima (“O
homem da rua”), diferençada em si mesma, que “Fica só por
teimosia”, e desintegrada, por isso mesmo, da comunidade social
(“Não encontra companhia / Mas pra casa não vai não”). Essa
subjetividade lírica, embora resista ao novo, percebe os efeitos da
mudança televisiva: (“Em casa a roda / Já mudou, que a moda muda
/ A roda é triste, a roda é muda / Em volta lá da televisão”).
Por outro lado, já não sente atração pelo velho encanto e magia
da lua (“O homem da rua / Que da lua está distante / [...] / Fala
só com seus botões”) e, por isso mesmo, evita a intervenção
poética (“O homem da rua / Com seu tamborim calado”) no
processamento da realidade, afinal, “A sua gente / Está aprendendo
humildemente / Um batuque diferente / Que vem lá da televisão”.
Todavia, acaba optando por deslocar a motivação lírica da antiga
imagem poética da lua (“O homem da rua / Por ser nego conformado /
Deixa a lua ali de lado”) para a nova imagem televisiva (“E vai
ligar os seus botões”). Essa opção, reafirmando a proposta de
rejeição/procura da nova poética, deixa claro que a
subjetividade anônima (“O homem da rua”) que realiza, por meio
da voz enunciativa, a proposta de mudança assumida com a venda do
realejo é uma autoconfiguração do eu lírico.
Acrescenta-se
a isso, de forma conclusiva, o duelo lírico entre a imagem poética
da lua, ícone do lirismo mágico da fase anterior, que aparece
inicialmente em seu cenário natural (“No céu a lua / Surge grande
e muito prosa / Dá uma volta graciosa / Pra chamar as atenções”)
e logo, insistindo na permanência, tenta configurar-se no novo
cenário de programação da televisão (“No céu a lua / Que não
estava no programa / Cheia e nua, chega e chama / Pra mostrar
evoluções”), mas, rejeitada em sua atração mágica (“Os
namorados / Já dispensam seu namoro”), impedida de participar do
processo de formação da nova realidade (“[...] a vida mais vivida
/ Que vem lá da televisão”), acaba derrotada e excluída do novo
cenário (“No céu a lua / Encabulada e já minguando / Numa nuvem
se ocultando / Vai de volta pros sertões”); enquanto a televisão,
vencendo a batalha lírica, torna-se a nova imagem poética que,
tendo em torno, de início, uma roda calada (“A roda é triste, a
roda é muda”), consegue seduzi-la com o (“batuque diferente”)
que a torna irresistível: (“[...] a própria vida / Ainda vai
sentar sentida / Vendo a vida mais vivida / Que vem lá da
televisão”), induzindo o “homem da rua” a uma nova experiência
lírica do cotidiano, “vai ligar os seus botões”. A adesão do
eu lírico à imagem televisiva, ícone da nova realidade, revela a
intenção do poeta de adequar sua poesia à expressão da nova
imagem de mundo para compartilhar a nova experiência existencial.
O
poeta, transformando a proposta de rejeição/procura do “Realejo”
em matéria poemática, vai produzir, sob a vigência da nova
poética, no período de 1967 a 1968, o conjunto de poemas que
integram os LPs Chico Buarque de Hollanda vol. 2 e
vol. 3. Esses poemas, atualizando formal e conceitualmente a
poética de “Realejo”, apresentam uma estrutura antitética
como suporte da contraposição dialógica dos processos de
Identificação e de Diferenciação. Em todos eles, o eu lírico,
sob o influxo da comoção poética, dialoga com subjetividades
anônimas, umas configuradas na exterioridade da realidade cotidiana,
outras na intertextualidade sígnica da obra, utilizando a proposta
de rejeição/procura da nova poética como geratriz da tensão
discursiva nos diálogos.
A
nova concepção poética impõe a reciclagem do espaço lírico da
janela, antes ocupado pela musa da poética de “Tem mais samba”,
a famosa Carolina, e que passa a ser ocupado pela surpreendente
Januária, a musa da poética de “Realejo”. A visão
lírica metaforizada nos “olhos fundos” da Carolina está
inadequada para a apreensão da realidade renovada no espaço fora da
janela (“Eu bem que mostrei sorrindo / [...] / Mas Carolina não
viu), liricamente consumada (“Nosso barco partiu”) e ultrapassada
(“O tempo passou na janela / Só Carolina não viu”). Baldado seu
esforço em ajustar a visão de Carolina com a expressão da
realidade (“Eu já lhe expliquei que não vai dar / Seu pranto não
vai nada mudar / [...] / Eu bem que avisei, vai acabar / De tudo lhe
dei para aceitar / Mil versos cantei pra lhe agradar”), o eu lírico
rompe definitivamente com a musa (“Agora não sei como explicar /
[...] / Nosso barco partiu”).
E
eis que, no espaço lírico da janela onde os “olhos tristes” de
Carolina perderam o lume, desponta a silhueta radiante da nova musa
da poética de “Realejo” (“Mesmo o sol quando desponta /
Logo aponta os lados dela”), aquela que, reajustando temporal e
espacialmente o foco visual da experiência lírica com a expressão
da nova realidade, vê da e é vista na janela (“Toda gente
homenageia / Januária na janela / Até o mar faz maré cheia / Pra
chegar mais perto dela / [...] / Ela faz que não dá conta / De sua
graça tão singela”).
Alguns
exemplos: em “Roda viva”, o eu lírico dialoga com sua obra,
referenciando na imagística poética a experiência lírica anterior
(“Faz tempo que a gente cultiva / A mais linda roseira que há /
Mas eis que chaga a roda viva / E carrega a roseira pra lá / [...] /
A roda da saia, a mulata / Não quer mais rodar, não senhor / Não
posso fazer serenata / A roda de samba acabou / A gente toma a
iniciativa / Viola na rua, a cantar / Mas eis que chega a roda viva /
E carrega a viola pra lá”), e também no devir metaforizado na
“roda viva” que “carrega tudo pra lá”, reciclando-a
no fluxo permanente de transformação pelo qual as coisas se fazem e
se dissolvem noutras, refazendo-se incessantemente (“O samba, a
viola, a roseira / Um dia a fogueira queimou / Foi tudo ilusão
passageira / Que a brisa primeira levou / No peito a saudade cativa /
Faz força pro tempo parar / Mas eis que chega a roda viva / E
carrega a saudade pra lá”). Ou seja, a “roda viva” metaforiza
o processamento da reciclagem do projeto poético (“O tempo rodou
num instante / Nas voltas do meu coração”), que, removendo a
experiência lírica consumada na janela da Carolina, renova o espaço
lírico para integrar a nova experiência lírica anunciada na janela
da Januária.
Em
“O velho”, compartilhando a instância lírica com o velho, o eu
lírico se faz seu porta-voz (“Me diga agora / O que é que eu digo
ao povo / O que é que tem de novo / Pra deixar”) e,
correlacionando a reflexão do velho diante da vida com sua própria
reflexão diante de sua obra, faz do legado do velho o seu próprio
legado (“O velho vai-se agora / Vai-se embora / Sem bagagem / Não
sabe pra que veio / Foi passeio / Foi passagem / Então eu lhe
pergunto pelo amor / Ele me é franco / Mostra um verso manco / De um
caderno em branco / Que já se fechou / [...] / Não / Foi tudo
escrito em vão / E eu lhe peço perdão / Mas não vou lastimar”).
A integração da expressão subjetiva do velho na expressão
subjetiva do eu lírico deixa claro que a subjetividade do velho é
uma autoconfiguração do eu lírico, recurso de que se serve o poeta
para fazer uma avaliação conclusiva de sua produção anterior,
considerando perdas e danos. E, como o velho de partida, que avalia
sua experiência de vida, o poeta reflete sobre o esgotamento e a
renovação da experiência lírica de criação da sua obra: “Foi
tudo escrito em vão / [...] / Mas não vou lastimar”.
Com
a poética de “Realejo”, o poeta, fazendo do ato da
criação a matéria do poema, alcança, com a reciclagem da poética
anterior, um elevado grau de conscientização do fazer poético e de
compreensão de sua obra, estabelecendo novos parâmetros para o
encaminhamento futuro de sua produção lírica.
Anazildo Vasconcelos da Silva, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos
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