segunda-feira, 4 de março de 2024

A lírica buarqueana


2. A POÉTICA DE “REALEJO”

A poética de “Realejo”, rejeitando explicitamente a concepção mítico-mágica de poesia, instaura o processo de ruptura com a poética de “Tem mais samba”, instigando o poeta a fazer uma avaliação crítica de sua produção e repensar a formulação anterior da mimese poética e da relação do eu lírico com o processo de criação.
O poeta compreende que a Identificação, neutralizando a manifestação do processo de Diferenciação nas relações do cotidiano, produz uma realidade carnavalizada que, criando uma identificação falsa e um compartilhamento ilusório da experiência existencial, mascara sim, mas não redimensiona o processamento da realidade. De modo que a intervenção poética, realizando a mimese no processo de Identificação, integra o processo de carnavalização e reproduz, agora sob o influxo mágico da poesia, a mesma ilusória e falsa transformação do cotidiano. Considerando ineficaz a intervenção poética em relação ao propósito de alterar o processamento da realidade e redimensionar a experiência humana, o poeta julga sua produção lírica igualmente insatisfatória. Para corrigir os desvios observados, tanto no que concerne aos princípios quanto aos objetivos de sua criação, o poeta resolve deslocar a mimese poética para o processo de Diferenciação e reciclar o projeto poético, eliminando, agora sob o influxo da diferenciação lírica, o efeito mágico da etapa anterior.
A poética de “Realejo”, lançada no segundo LP, Chico Buarque de Hollanda vol. 2, RGE 3030004/1967, que agrega composições datadas de 1966/1967, incluindo, todavia, “Fica” e “Lua cheia”, ambas de 1965, está configurada metonímica e metaforicamente nos poemas “Realejo” e “A televisão”, respectivamente.

Realejo

Estou vendendo um realejo
Quem vai levar
[...]
Já vendi tanta alegria
Vendi sonhos a varejo
Ninguém mais quer hoje em dia
Acreditar no realejo
Sua sorte, seu desejo
Ninguém mais veio tirar
Então eu vendo o realejo
Quem vai levar

Estou vendendo um realejo
[...]
Quando eu punha na calçada
Sua valsa encantadora
Vinha moça apaixonada
Vinha moça casadoura
Hoje em dia já não vejo
Serventia em seu cantar
Então eu vendo o realejo
Quem vai levar

[…]

A análise do poema permite inferir, a partir da relação externa e interna do eu lírico com o realejo, os parâmetros de configuração de uma nova poética. Utilizando a estrutura de um anúncio de classificados, “Estou vendendo um realejo”, o eu lírico, simultaneamente, realça a intenção de noticiar a ruptura com a poética anterior, da qual se despede, desfazendo o vínculo subjetivo que o prendia a ela, e a necessidade de justificar, para si mesmo e para o público, o “passo a passo” da decisão de dar um novo encaminhamento à produção lírica. Assim, tal como num anúncio, explica o porquê da venda e as qualidades mágicas do instrumento, a serventia que teve no passado e mesmo as vantagens, “Quem comprar leva consigo”, do hipotético comprador. “Quem vai levar [?]” ratifica, de forma repetitiva, a insatisfação do vendedor com a utilização do instrumento em questão e o desejo de superação da experiência encantadora.
O anúncio se reproduz nas três estrofes que compõem o poema, repetindo, enfaticamente, que a venda foi motivada pela incapacidade instrumental do realejo em adaptar-se às novas motivações criativas do seu proprietário, embora, ressalvado o anacronismo que impede sua atuação no presente, esteja funcionando perfeitamente. Nas duas primeiras estrofes, o eu lírico considera sua relação com o realejo por meio da contraposição de dois segmentos temporais distintos, o do passado (“Já vendi tanta alegria / Vendi sonhos a varejo / [...] / Quando eu punha na calçada / Sua valsa encantadora”), em que o instrumento estava adequado à expressão de identificação da intenção criativa, e o do presente, em que a inadequação do realejo à nova realidade (“Ninguém mais quer hoje em dia / Acreditar no realejo”) já não satisfaz a intenção criativa (“Hoje em dia já não vejo / Serventia em seu cantar”), motivando a venda (“Então eu vendo o realejo / Quem vai levar”).
Na última estrofe, o eu lírico reafirma sua proposta de venda (“Estou vendendo um realejo”) e acrescenta que os atributos mágicos do instrumento estão incluídos na transação (“Quem comprar leva consigo / Todo encanto que ele traz”), ou seja, sua intenção é desfazer-se do instrumento e eliminar a aderência mágica do processo de criação (“E de quebra leva o harpejo / De sua valsa se agradar”), inadequada aos seus propósitos atuais.
O poeta, contrapondo os segmentos temporais “hoje em dia” e “quando eu punha”, traça uma divisória na sua obra, distinguindo dois momentos diferentes de sua criação, o da poética de “Tem mais samba”, já esgotado em si mesmo, e o novo momento da poética de “Realejo”, referenciados, respectivamente, na oposição sêmica rejeição x procura, geratriz de sentido do poema, que sustenta a proposta de ruptura entre as duas poéticas.
O poema “A televisão” dispõe, nas três estrofes de dezesseis versos que o compõem, os referentes televisão/lua numa estrutura opositiva do presente e do passado, e reflete, a partir do confronto entre eles, o impacto do primeiro no processamento da realidade cotidiana e as mudanças de gosto e sensibilidade que alteraram o modo de fruição da experiência humana. A contraposição dos referentes externos, lua x televisão, sustenta, na intertextualidade do poema, o confronto poético entre a imagem da lua, geradora do velho lirismo mágico de Identificação, e a da televisão, geradora do novo lirismo de Diferenciação, reafirmando, metaforicamente, a oposição de sentido rejeição x procura que define a poética de “Realejo”.
A voz enunciativa emerge de uma subjetividade lírica anônima (“O homem da rua”), diferençada em si mesma, que “Fica só por teimosia”, e desintegrada, por isso mesmo, da comunidade social (“Não encontra companhia / Mas pra casa não vai não”). Essa subjetividade lírica, embora resista ao novo, percebe os efeitos da mudança televisiva: (“Em casa a roda / Já mudou, que a moda muda / A roda é triste, a roda é muda / Em volta lá da televisão”). Por outro lado, já não sente atração pelo velho encanto e magia da lua (“O homem da rua / Que da lua está distante / [...] / Fala só com seus botões”) e, por isso mesmo, evita a intervenção poética (“O homem da rua / Com seu tamborim calado”) no processamento da realidade, afinal, “A sua gente / Está aprendendo humildemente / Um batuque diferente / Que vem lá da televisão”. Todavia, acaba optando por deslocar a motivação lírica da antiga imagem poética da lua (“O homem da rua / Por ser nego conformado / Deixa a lua ali de lado”) para a nova imagem televisiva (“E vai ligar os seus botões”). Essa opção, reafirmando a proposta de rejeição/procura da nova poética, deixa claro que a subjetividade anônima (“O homem da rua”) que realiza, por meio da voz enunciativa, a proposta de mudança assumida com a venda do realejo é uma autoconfiguração do eu lírico.
Acrescenta-se a isso, de forma conclusiva, o duelo lírico entre a imagem poética da lua, ícone do lirismo mágico da fase anterior, que aparece inicialmente em seu cenário natural (“No céu a lua / Surge grande e muito prosa / Dá uma volta graciosa / Pra chamar as atenções”) e logo, insistindo na permanência, tenta configurar-se no novo cenário de programação da televisão (“No céu a lua / Que não estava no programa / Cheia e nua, chega e chama / Pra mostrar evoluções”), mas, rejeitada em sua atração mágica (“Os namorados / Já dispensam seu namoro”), impedida de participar do processo de formação da nova realidade (“[...] a vida mais vivida / Que vem lá da televisão”), acaba derrotada e excluída do novo cenário (“No céu a lua / Encabulada e já minguando / Numa nuvem se ocultando / Vai de volta pros sertões”); enquanto a televisão, vencendo a batalha lírica, torna-se a nova imagem poética que, tendo em torno, de início, uma roda calada (“A roda é triste, a roda é muda”), consegue seduzi-la com o (“batuque diferente”) que a torna irresistível: (“[...] a própria vida / Ainda vai sentar sentida / Vendo a vida mais vivida / Que vem lá da televisão”), induzindo o “homem da rua” a uma nova experiência lírica do cotidiano, “vai ligar os seus botões”. A adesão do eu lírico à imagem televisiva, ícone da nova realidade, revela a intenção do poeta de adequar sua poesia à expressão da nova imagem de mundo para compartilhar a nova experiência existencial.
O poeta, transformando a proposta de rejeição/procura do “Realejo” em matéria poemática, vai produzir, sob a vigência da nova poética, no período de 1967 a 1968, o conjunto de poemas que integram os LPs Chico Buarque de Hollanda vol. 2 e vol. 3. Esses poemas, atualizando formal e conceitualmente a poética de “Realejo”, apresentam uma estrutura antitética como suporte da contraposição dialógica dos processos de Identificação e de Diferenciação. Em todos eles, o eu lírico, sob o influxo da comoção poética, dialoga com subjetividades anônimas, umas configuradas na exterioridade da realidade cotidiana, outras na intertextualidade sígnica da obra, utilizando a proposta de rejeição/procura da nova poética como geratriz da tensão discursiva nos diálogos.
A nova concepção poética impõe a reciclagem do espaço lírico da janela, antes ocupado pela musa da poética de “Tem mais samba”, a famosa Carolina, e que passa a ser ocupado pela surpreendente Januária, a musa da poética de “Realejo”. A visão lírica metaforizada nos “olhos fundos” da Carolina está inadequada para a apreensão da realidade renovada no espaço fora da janela (“Eu bem que mostrei sorrindo / [...] / Mas Carolina não viu), liricamente consumada (“Nosso barco partiu”) e ultrapassada (“O tempo passou na janela / Só Carolina não viu”). Baldado seu esforço em ajustar a visão de Carolina com a expressão da realidade (“Eu já lhe expliquei que não vai dar / Seu pranto não vai nada mudar / [...] / Eu bem que avisei, vai acabar / De tudo lhe dei para aceitar / Mil versos cantei pra lhe agradar”), o eu lírico rompe definitivamente com a musa (“Agora não sei como explicar / [...] / Nosso barco partiu”).
E eis que, no espaço lírico da janela onde os “olhos tristes” de Carolina perderam o lume, desponta a silhueta radiante da nova musa da poética de “Realejo” (“Mesmo o sol quando desponta / Logo aponta os lados dela”), aquela que, reajustando temporal e espacialmente o foco visual da experiência lírica com a expressão da nova realidade, vê da e é vista na janela (“Toda gente homenageia / Januária na janela / Até o mar faz maré cheia / Pra chegar mais perto dela / [...] / Ela faz que não dá conta / De sua graça tão singela”).
Alguns exemplos: em “Roda viva”, o eu lírico dialoga com sua obra, referenciando na imagística poética a experiência lírica anterior (“Faz tempo que a gente cultiva / A mais linda roseira que há / Mas eis que chaga a roda viva / E carrega a roseira pra lá / [...] / A roda da saia, a mulata / Não quer mais rodar, não senhor / Não posso fazer serenata / A roda de samba acabou / A gente toma a iniciativa / Viola na rua, a cantar / Mas eis que chega a roda viva / E carrega a viola pra lá”), e também no devir metaforizado na “roda viva” que “carrega tudo pra lá”, reciclando-a no fluxo permanente de transformação pelo qual as coisas se fazem e se dissolvem noutras, refazendo-se incessantemente (“O samba, a viola, a roseira / Um dia a fogueira queimou / Foi tudo ilusão passageira / Que a brisa primeira levou / No peito a saudade cativa / Faz força pro tempo parar / Mas eis que chega a roda viva / E carrega a saudade pra lá”). Ou seja, a “roda viva” metaforiza o processamento da reciclagem do projeto poético (“O tempo rodou num instante / Nas voltas do meu coração”), que, removendo a experiência lírica consumada na janela da Carolina, renova o espaço lírico para integrar a nova experiência lírica anunciada na janela da Januária.
Em “O velho”, compartilhando a instância lírica com o velho, o eu lírico se faz seu porta-voz (“Me diga agora / O que é que eu digo ao povo / O que é que tem de novo / Pra deixar”) e, correlacionando a reflexão do velho diante da vida com sua própria reflexão diante de sua obra, faz do legado do velho o seu próprio legado (“O velho vai-se agora / Vai-se embora / Sem bagagem / Não sabe pra que veio / Foi passeio / Foi passagem / Então eu lhe pergunto pelo amor / Ele me é franco / Mostra um verso manco / De um caderno em branco / Que já se fechou / [...] / Não / Foi tudo escrito em vão / E eu lhe peço perdão / Mas não vou lastimar”). A integração da expressão subjetiva do velho na expressão subjetiva do eu lírico deixa claro que a subjetividade do velho é uma autoconfiguração do eu lírico, recurso de que se serve o poeta para fazer uma avaliação conclusiva de sua produção anterior, considerando perdas e danos. E, como o velho de partida, que avalia sua experiência de vida, o poeta reflete sobre o esgotamento e a renovação da experiência lírica de criação da sua obra: “Foi tudo escrito em vão / [...] / Mas não vou lastimar”.
Com a poética de “Realejo”, o poeta, fazendo do ato da criação a matéria do poema, alcança, com a reciclagem da poética anterior, um elevado grau de conscientização do fazer poético e de compreensão de sua obra, estabelecendo novos parâmetros para o encaminhamento futuro de sua produção lírica.

Anazildo Vasconcelos da Silva, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos

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