quinta-feira, 21 de março de 2024

A força dos elos da "Corrente"



A canção “Corrente” (1976), de Chico Buarque de Hollanda, se destaca de dois modos: como exemplo de contradiscurso no contexto do regime militar autoritário e como instância da poesia da Geração MPB. Entre os cantos de “resistência” ou “protesto” do ilustre cancionista, “Corrente” tem algumas características especiais quanto à estrutura da composição e no que se refere à sua veiculação. Para compreender isso é necessário atentar para o encarte do LP do qual ela figura, Meus caros amigos.
Em geral, o aspecto gráfico é relevante na discussão acerca da interseção das séries literária e musical nas décadas de 1960 e 1970. Chico se iniciara como autor já com A banda: manuscritos de Chico Buarque de Hollanda (1966, com o conto “Ulisses”) e Fazenda modelo: novela pecuária (1974), além dos dramas Roda viva (1968), Calabar: o elogio da traição (1973, com Ruy Guerra) e Gota d’água (1975, com Paulo Pontes), com seus muitos casos de poesia dramática cantada. Em termos de invenção, podem ser mais intrigantes as ocasiões em que o compositor se vale do veículo material do disco (encarte, capa, contracapa) para enriquecer o discurso cantado. Para melhor entender a extensão tanto da arte da MPB quanto da sua voz antirregime, vale a pena examinar momentos particularmente expressivos do cruzamento da lírica cantada com a sua representação gráfica, caso de “Corrente”.
Desde a segunda metade da década de 1960, fala-se no Brasil na relevância literária da música popular contemporânea. Além da esfera primária da canção, a performance ao vivo ou a gravação, há um segundo nível, as letras impressas. Estas também são avaliadas e provocam a questão: os textos de música popular podem ser considerados manifestações literárias? Quando impressas, as letras constituem um modo secundário de comunicação artística que possui, em certos casos, pertinência literária. No Brasil, desde fins dos anos 1960, letras de canção têm estado disponíveis para leitura nas capas de discos ou em encartes que os acompanham, em programas de shows, em revistas literárias (amiúde da chamada imprensa nanica) e até mesmo em livros. Nos Estados Unidos, aponta-se a impressão de letras/poemas nas capas dos discos como uma evidência cada vez mais acentuada do significado cultural da música popular nos anos 1960. O mesmo se pode argumentar em relação à situação brasileira. As letras impressas podem superar sua função meramente funcional ou prática. Além de dispositivo informacional, auxílio para a memorização ou ferramenta para acompanhamento, podem servir de guia para compreender atitudes culturais em mutação.
Muitas vezes pode-se afirmar que um compositor ou letrista revela intenções de escritor quando faz registrar suas letras na capa ou no encarte de um disco. Há versos cuidadosamente ordenados, aparecem arrumações espaciais bastante peculiares, letras em itálico ou maiúsculas assumem papéis significativos, epígrafes e comentários cantam. Enfim, há elementos complementares a criar estilos propositais. Ao mesmo tempo, para mostrar semelhanças entre literatura e música popular, o crítico pode se referir a temas, alusões, fontes, figuras de linguagem etc., sem desfigurar a totalidade músico-poética original. Um estudo da interseção das séries literária e musical gira inevitavelmente em torno dos aspectos textuais, incluindo o texto musical como um artefato impresso. Claro, a avaliação literária do texto não significa uma apreciação estética completa da canção. Contudo, os poemas e as letras de música bem elaboradas podem ser considerados subdivisões da categoria geral da poesia em seu sentido amplo: um texto versificado com beleza de expressão e pensamento.
No cancioneiro de Chico Buarque, há dois casos em que o poeta-compositor manipula o artefato gráfico com resultados estupendos. Tal manipulação se apresenta em “As vitrines” (1981), de orientação mais poético-afetiva, e “Corrente”, de preocupação mais poético-política. As duas composições revelam a habilidade do artista de torcer a organização textual a ponto de criar um plano a mais. Estão elas baseadas na duplicidade, num tipo de intertextualidade em que as relações entre diferentes versões de um mesmo texto são altamente significativas. Demonstram também que o registro escrito de uma letra pode ser a chave para a apreciação de uma música como um todo. O caso de “As vitrines” pode ser apreciado em Letras e letras da MPB. O outro caso será tratado a seguir. 

Corrente” é um samba de tom meio alegre e andamento moderado. A letra consiste em uma cadeia de dezesseis frases simples cantadas de três maneiras, esta multiplicidade contendo a chave do engenho. Os significados e ênfases da primeira versão são alterados quando a letra é repetida, primeiro em virtude de modificações na articulação verbo-melódica (relação das palavras com as notas musicais) e depois por uma enunciação invertida do texto. A força da(s) letra(s) não se encontra, como em muitos poemas, no campo imagético ou na sutileza da ideia propriamente dita, mas na metáfora sugerida no título e no jogo formal que descobre um outro dizer. Em um texto contido no encarte do LP, o compositor provê uma nota do autor (n. do a.) e dá uma pista para o usuário (leitor ou ouvinte) lidar com a ambiguidade do texto, referindo-se especificamente a leituras alternativas:

(n. do a.: nesta corrente, os versos são
elos que podem ser dispostos livremente,
conforme as preferências do usuário;
observe-se, por exemplo, que uma
mesma corrente tanto pode ser lida
para a frente quanto para trás)

[seguem créditos dos músicos, 12 linhas]

Eu hoje fiz um samba bem pra frente
Dizendo realmente o que é que eu acho
Eu acho que o meu samba é uma corrente
E coerentemente assino embaixo
Hoje é preciso refletir um pouco
E ver que o samba está tomando jeito
Só mesmo embriagado ou muito louco
Pra contestar e pra botar defeito
Precisa ser muito sincero e claro
Pra confessar que andei sambando errado
Talvez precise até tomar na cara
Pra ver que o samba está bem melhorado
Tem mais é que ser bem cara de tacho
Não ver a multidão sambar contente
Isso me deixa triste e cabisbaixo
Por isso eu fiz um samba bem pra frente
Dizendo realmente o que é que eu acho
Eu acho que o meu samba é uma corrente
E coerentemente assino embaixo
Hoje é preciso refletir um pouco
E ver que o samba está tomando jeito
Só mesmo embriagado ou muito louco
Pra contestar e pra botar defeito
Precisa ser muito sincero e claro
Pra confessar que andei sambando errado
[...]
[cantam-se versos 15-2]

Existem várias referências a um subtítulo de “Corrente”, que é “Este é um samba que vai pra frente”. Esse acréscimo consta do volume Letra e música 1 (1989), de Chico Buarque, mas não do encarte nem da etiqueta do LP Meus caros amigos. De toda forma, se esse sentido não está explícito num subtítulo, está totalmente implícito na letra, pois integra dois dos versos centrais. A frase alude à promoção do regime militar via canção ufanista do quinteto pop rock Os Incríveis, “Este é um país que vai pra frente” (Heitor Carillo), que consta de um compacto duplo da RCA autodenominado “Disco especial da Presidência da República”, com o título “Trabalho e paz” de mãos dadas é mais fácil. Nessa canção, o país é celebrado como sendo “De uma gente amiga / E tão contente / […] / De um povo unido / De grande valor”. Trata-se de “[…] um país que canta / Trabalha e se agiganta / É o Brasil do nosso amor”. Este canto pró-regime está repleto de alusões: ao ufanismo de c. 1900, ao hino nacional, à mitologia do samba dionisíaco, ao samba de exaltação, à apologia do trabalho do regime varguista etc. E tudo isso ecoa em “Corrente”.
No samba de Chico, a expressão “bem pra frente” (versos 1 e 16) sublinha a direção dianteira, mas tem também um significado político inexorável que decorre da ligação com a musiquinha patrocinada pelo chefe do governo. Na primeira vez em que se ouvem as palavras, elas parecem compor uma palinódia, ou seja, um poema em que o autor se retrata do que disse num poema anterior, e representa, de modo figurado, uma mudança de opinião (política). A voz lírica – e para quem quiser fazer a extensão, o compositor e cantor – aparentemente manifesta um mea culpa. Em se tratando de Chico Buarque, seria por sua reconhecida crítica à situação brasileira, à conjuntura de repressão e censura. Estaria oferecendo “um samba bem pra frente”, pois adota a frase “Este é um país que vai pra frente”, que serviu de slogan para os militares e o suposto “milagre econômico” brasileiro. Continuando, os versos 7-8 (“Só mesmo embriagado ou muito louco / Pra contestar e pra botar defeito”) parecem dizer que somente um ensandecido poderia encontrar alguma falha no sistema. A primeira parte da música termina com o verso explicativo 16 (“Por isso eu fiz um samba bem pra frente”), e o que se justifica é uma aparente aceitação de uma melhora das condições.
A seguir acontecem transformações. A segunda parte da música repete a melodia, mas pula o primeiro verso e começa já no segundo (“Dizendo realmente o que é que eu acho”). O que faz com que “dizendo” modifique “acho” (do verso 3 – “Eu acho que o meu samba é uma corrente”) em vez de “fiz” (do verso 1 – “Eu hoje fiz um samba bem pra frente”), como acontece primeiramente. Isso salienta tanto a forma-mensagem da canção quanto a continuidade do trabalho do compositor na mesma (“o” [samba] em vez de “um” [samba]). A segunda parte da canção não mais termina com a expressão “pra frente”, mas, ao contrário, com as palavras “triste e cabisbaixo”, uma mudança significativa de atitude. “A ênfase revela de repente os constrangimentos da força e do arbítrio”, conforme aguda análise de José Miguel Wisnik. Na terceira parte da música (vocalização dos versos 2-15), surgem duas vozes sobrepostas, uma reproduzindo a segunda parte e a outra cantando os mesmos versos em ordem invertida, conforme sugere a nota do autor na versão impressa da letra da composição. Os resultados dessa inversão são profundos. Inicialmente, a voz lírica propõe que não perceber condições favoráveis se deve às suas próprias deficiências, mas, quando os versos são invertidos, uma postura negativa se ergue, a crítica passa a justificar-se. Mais adiante, nos versos 9-10 (“Precisa ser muito sincero e claro / Pra confessar que andei sambando errado”), aparece o desejo do personagem de ser “sincero e claro” para confessar seus erros; no sentido inverso (versos 11-10 – “Talvez precise até tomar na cara / Pra confessar que andei sambando errado”), tal confissão emergiria somente de um esforço incomum. Da mesma forma, os versos 9-8 (“Precisa ser muito sincero e claro / Pra contestar e pra botar defeito”) propõem a necessidade de sinceridade e clareza para encontrar falhas e contestar (por implicação, os princípios do sistema), e não para confessar os erros, como antes. No fim das contas, a circularidade da corrente de elos-versos é melancólica (“triste e cabisbaixo”) e irônica. A canção salienta “pra frente” não para exprimir um otimismo oficial, mas para instituir um questionamento – verbo-sintático, político – do sistema, do regime, dos militares que governam. A apreciação de “Corrente” como uma canção de estrutura variável, acompanhada de um texto que convida o leitor a participar, revela a habilidade de Chico em manipular a significação com a utilização de meios formais. “Corrente” comprova a constante preocupação com os problemas sociais na canção desse artista, mesmo quando parece estar cantando outras coisas.
Dada a tramoia executada nesse samba, e o alerta gráfico no encarte, Chico ficou na dúvida se deveria ele mesmo assinar a composição ou usar pseudônimo, como fizera antes para driblar a censura. De acordo com Wagner Homem, em Histórias de canções: Chico Buarque, Chico até pensou em mandar “Corrente” para a censura com um pseudônimo já preparado, Pedrinho Manteiga. Assim, poderia fazer com que os censores ignorassem que o verdadeiro autor era Francisco Buarque de Hollanda, uma espécie de nêmesis do regime. Em 1974/1975, cansado da perseguição da censura, arbitrária e vingativa, Chico criou um tal de Julinho da Adelaide, suposto autor de canções como “Acorda amor”, “Jorge maravilha” e “Milagre brasileiro”. E o contradiscurso na letra dessas composições vibra e ressoa no samba amoroso, maravilhoso, miraculoso que é “Corrente”, que o compositor mandou para a aprovação e gravou sem utilizar pseudônimo.

Charles A. Perrone, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos

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