A
canção “Corrente” (1976), de Chico Buarque de Hollanda, se
destaca de dois modos: como exemplo de contradiscurso no contexto do
regime militar autoritário e como instância da poesia da Geração
MPB. Entre os cantos de “resistência” ou “protesto” do
ilustre cancionista, “Corrente” tem algumas características
especiais quanto à estrutura da composição e no que se refere à
sua veiculação. Para compreender isso é necessário atentar para o
encarte do LP do qual ela figura, Meus caros amigos.
Em
geral, o aspecto gráfico é relevante na discussão acerca da
interseção das séries literária e musical nas décadas de 1960 e
1970. Chico se iniciara como autor já com A banda: manuscritos de
Chico Buarque de Hollanda (1966, com o conto “Ulisses”) e
Fazenda modelo: novela pecuária (1974), além dos dramas Roda
viva (1968), Calabar: o elogio da traição (1973, com Ruy
Guerra) e Gota d’água (1975, com Paulo Pontes), com seus
muitos casos de poesia dramática cantada. Em termos de invenção,
podem ser mais intrigantes as ocasiões em que o compositor se vale
do veículo material do disco (encarte, capa, contracapa) para
enriquecer o discurso cantado. Para melhor entender a extensão tanto
da arte da MPB quanto da sua voz antirregime, vale a pena examinar
momentos particularmente expressivos do cruzamento da lírica cantada
com a sua representação gráfica, caso de “Corrente”.
Desde
a segunda metade da década de 1960, fala-se no Brasil na relevância
literária da música popular contemporânea. Além da esfera
primária da canção, a performance ao vivo ou a gravação, há um
segundo nível, as letras impressas. Estas também são avaliadas e
provocam a questão: os textos de música popular podem ser
considerados manifestações literárias? Quando impressas, as letras
constituem um modo secundário de comunicação artística que
possui, em certos casos, pertinência literária. No Brasil, desde
fins dos anos 1960, letras de canção têm estado disponíveis para
leitura nas capas de discos ou em encartes que os acompanham, em
programas de shows, em revistas literárias (amiúde da chamada
imprensa nanica) e até mesmo em livros. Nos Estados Unidos,
aponta-se a impressão de letras/poemas nas capas dos discos como uma
evidência cada vez mais acentuada do significado cultural da música
popular nos anos 1960. O mesmo se pode argumentar em relação à
situação brasileira. As letras impressas podem superar sua função
meramente funcional ou prática. Além de dispositivo informacional,
auxílio para a memorização ou ferramenta para acompanhamento,
podem servir de guia para compreender atitudes culturais em mutação.
Muitas
vezes pode-se afirmar que um compositor ou letrista revela intenções
de escritor quando faz registrar suas letras na capa ou no encarte de
um disco. Há versos cuidadosamente ordenados, aparecem arrumações
espaciais bastante peculiares, letras em itálico ou maiúsculas
assumem papéis significativos, epígrafes e comentários cantam.
Enfim, há elementos complementares a criar estilos propositais. Ao
mesmo tempo, para mostrar semelhanças entre literatura e música
popular, o crítico pode se referir a temas, alusões, fontes,
figuras de linguagem etc., sem desfigurar a totalidade músico-poética
original. Um estudo da interseção das séries literária e musical
gira inevitavelmente em torno dos aspectos textuais, incluindo o
texto musical como um artefato impresso. Claro, a avaliação
literária do texto não significa uma apreciação estética
completa da canção. Contudo, os poemas e as letras de música bem
elaboradas podem ser considerados subdivisões da categoria geral da
poesia em seu sentido amplo: um texto versificado com beleza de
expressão e pensamento.
No
cancioneiro de Chico Buarque, há dois casos em que o
poeta-compositor manipula o artefato gráfico com resultados
estupendos. Tal manipulação se apresenta em “As vitrines”
(1981), de orientação mais poético-afetiva, e “Corrente”, de
preocupação mais poético-política. As duas composições revelam
a habilidade do artista de torcer a organização textual a ponto de
criar um plano a mais. Estão elas baseadas na duplicidade, num tipo
de intertextualidade em que as relações entre diferentes versões
de um mesmo texto são altamente significativas. Demonstram também
que o registro escrito de uma letra pode ser a chave para a
apreciação de uma música como um todo. O caso de “As vitrines”
pode ser apreciado em Letras e letras da MPB. O outro caso
será tratado a seguir.
“Corrente”
é um samba de tom meio alegre e andamento moderado. A letra consiste
em uma cadeia de dezesseis frases simples cantadas de três maneiras,
esta multiplicidade contendo a chave do engenho. Os significados e
ênfases da primeira versão são alterados quando a letra é
repetida, primeiro em virtude de modificações na articulação
verbo-melódica (relação das palavras com as notas musicais) e
depois por uma enunciação invertida do texto. A força da(s)
letra(s) não se encontra, como em muitos poemas, no campo imagético
ou na sutileza da ideia propriamente dita, mas na metáfora sugerida
no título e no jogo formal que descobre um outro dizer. Em um texto
contido no encarte do LP, o compositor provê uma nota do autor (n.
do a.) e dá uma pista para o usuário (leitor ou ouvinte) lidar com
a ambiguidade do texto, referindo-se especificamente a leituras
alternativas:
(n.
do a.: nesta corrente, os versos são
elos
que podem ser dispostos livremente,
conforme
as preferências do usuário;
observe-se,
por exemplo, que uma
mesma
corrente tanto pode ser lida
para
a frente quanto para trás)
[seguem
créditos dos músicos, 12 linhas]
Eu
hoje fiz um samba bem pra frente
Dizendo
realmente o que é que eu acho
Eu
acho que o meu samba é uma corrente
E
coerentemente assino embaixo
Hoje
é preciso refletir um pouco
E
ver que o samba está tomando jeito
Só
mesmo embriagado ou muito louco
Pra
contestar e pra botar defeito
Precisa
ser muito sincero e claro
Pra
confessar que andei sambando errado
Talvez
precise até tomar na cara
Pra
ver que o samba está bem melhorado
Tem
mais é que ser bem cara de tacho
Não
ver a multidão sambar contente
Isso
me deixa triste e cabisbaixo
Por
isso eu fiz um samba bem pra frente
Dizendo
realmente o que é que eu acho
Eu
acho que o meu samba é uma corrente
E
coerentemente assino embaixo
Hoje
é preciso refletir um pouco
E
ver que o samba está tomando jeito
Só
mesmo embriagado ou muito louco
Pra
contestar e pra botar defeito
Precisa
ser muito sincero e claro
Pra
confessar que andei sambando errado
[...]
[cantam-se
versos 15-2]
Existem
várias referências a um subtítulo de “Corrente”, que é “Este
é um samba que vai pra frente”. Esse acréscimo consta do volume
Letra e música 1 (1989), de Chico Buarque, mas não do
encarte nem da etiqueta do LP Meus caros amigos. De toda
forma, se esse sentido não está explícito num subtítulo, está
totalmente implícito na letra, pois integra dois dos versos
centrais. A frase alude à promoção do regime militar via canção
ufanista do quinteto pop rock Os Incríveis, “Este é um
país que vai pra frente” (Heitor Carillo), que consta de um
compacto duplo da RCA autodenominado “Disco especial da Presidência
da República”, com o título “Trabalho e paz” de mãos
dadas é mais fácil. Nessa canção, o país é celebrado como
sendo “De uma gente amiga / E tão contente / […] / De um povo
unido / De grande valor”. Trata-se de “[…] um país que canta /
Trabalha e se agiganta / É o Brasil do nosso amor”. Este canto
pró-regime está repleto de alusões: ao ufanismo de c. 1900, ao
hino nacional, à mitologia do samba dionisíaco, ao samba de
exaltação, à apologia do trabalho do regime varguista etc. E tudo
isso ecoa em “Corrente”.
No
samba de Chico, a expressão “bem pra frente” (versos 1 e 16)
sublinha a direção dianteira, mas tem também um significado
político inexorável que decorre da ligação com a musiquinha
patrocinada pelo chefe do governo. Na primeira vez em que se ouvem as
palavras, elas parecem compor uma palinódia, ou seja, um poema em
que o autor se retrata do que disse num poema anterior, e representa,
de modo figurado, uma mudança de opinião (política). A voz lírica
– e para quem quiser fazer a extensão, o compositor e cantor –
aparentemente manifesta um mea culpa. Em se tratando de Chico
Buarque, seria por sua reconhecida crítica à situação brasileira,
à conjuntura de repressão e censura. Estaria oferecendo “um samba
bem pra frente”, pois adota a frase “Este é um país que vai pra
frente”, que serviu de slogan para os militares e o suposto
“milagre econômico” brasileiro. Continuando, os versos 7-8 (“Só
mesmo embriagado ou muito louco / Pra contestar e pra botar defeito”)
parecem dizer que somente um ensandecido poderia encontrar alguma
falha no sistema. A primeira parte da música termina com o verso
explicativo 16 (“Por isso eu fiz um samba bem pra frente”), e o
que se justifica é uma aparente aceitação de uma melhora das
condições.
A
seguir acontecem transformações. A segunda parte da música repete
a melodia, mas pula o primeiro verso e começa já no segundo
(“Dizendo realmente o que é que eu acho”). O que faz com que
“dizendo” modifique “acho” (do verso 3 – “Eu acho que o
meu samba é uma corrente”) em vez de “fiz” (do verso 1 – “Eu
hoje fiz um samba bem pra frente”), como acontece primeiramente.
Isso salienta tanto a forma-mensagem da canção quanto a
continuidade do trabalho do compositor na mesma (“o” [samba] em
vez de “um” [samba]). A segunda parte da canção não mais
termina com a expressão “pra frente”, mas, ao contrário, com as
palavras “triste e cabisbaixo”, uma mudança significativa de
atitude. “A ênfase revela de repente os constrangimentos da força
e do arbítrio”, conforme aguda análise de José Miguel Wisnik. Na
terceira parte da música (vocalização dos versos 2-15), surgem
duas vozes sobrepostas, uma reproduzindo a segunda parte e a outra
cantando os mesmos versos em ordem invertida, conforme sugere a nota
do autor na versão impressa da letra da composição. Os resultados
dessa inversão são profundos. Inicialmente, a voz lírica propõe
que não perceber condições favoráveis se deve às suas próprias
deficiências, mas, quando os versos são invertidos, uma postura
negativa se ergue, a crítica passa a justificar-se. Mais adiante,
nos versos 9-10 (“Precisa ser muito sincero e claro / Pra confessar
que andei sambando errado”), aparece o desejo do personagem de ser
“sincero e claro” para confessar seus erros; no sentido inverso
(versos 11-10 – “Talvez precise até tomar na cara / Pra
confessar que andei sambando errado”), tal confissão emergiria
somente de um esforço incomum. Da mesma forma, os versos 9-8
(“Precisa ser muito sincero e claro / Pra contestar e pra botar
defeito”) propõem a necessidade de sinceridade e clareza para
encontrar falhas e contestar (por implicação, os princípios do
sistema), e não para confessar os erros, como antes. No fim das
contas, a circularidade da corrente de elos-versos é melancólica
(“triste e cabisbaixo”) e irônica. A canção salienta “pra
frente” não para exprimir um otimismo oficial, mas para instituir
um questionamento – verbo-sintático, político – do sistema, do
regime, dos militares que governam. A apreciação de “Corrente”
como uma canção de estrutura variável, acompanhada de um texto que
convida o leitor a participar, revela a habilidade de Chico em
manipular a significação com a utilização de meios formais.
“Corrente” comprova a constante preocupação com os problemas
sociais na canção desse artista, mesmo quando parece estar cantando
outras coisas.
Dada
a tramoia executada nesse samba, e o alerta gráfico no
encarte, Chico ficou na dúvida se deveria ele mesmo assinar a
composição ou usar pseudônimo, como fizera antes para driblar a
censura. De acordo com Wagner Homem, em Histórias de canções:
Chico Buarque, Chico até pensou em mandar “Corrente” para a
censura com um pseudônimo já preparado, Pedrinho Manteiga. Assim,
poderia fazer com que os censores ignorassem que o verdadeiro autor
era Francisco Buarque de Hollanda, uma espécie de nêmesis do
regime. Em 1974/1975, cansado da perseguição da censura, arbitrária
e vingativa, Chico criou um tal de Julinho da Adelaide, suposto autor
de canções como “Acorda amor”, “Jorge maravilha” e “Milagre
brasileiro”. E o contradiscurso na letra dessas composições vibra
e ressoa no samba amoroso, maravilhoso, miraculoso que é “Corrente”,
que o compositor mandou para a aprovação e gravou sem utilizar
pseudônimo.
Charles A. Perrone, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos
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