A
última carta
Sou
como a palavra: minha grandeza é onde nunca toquei.
Avô
Mariano
Estou
deitado sob a grande maçaniqueira na margem do Madzimi. Aqui o rio
se adoça, em redondo cotovelo, num quase arrependimento. Esta é a
árvore onde o Avô Mariano vinha espraiar preguiças. Chamo-lhe
"Avô" e sei agora que ele é meu pai. Para mim, Dito
Mariano será sempre meu avô. E é assim, antigo e eterno, que o
recordo deitando-se sob as ramadas da maçaniqueira. Recostado sobre
o tempo, o velho Mariano ajudava a ensopar o poente. Consoante ele
dizia: a tarde é o sonolento bicho, necessita de lugar macio e
húmido onde cair. O enterro do sol, como o do vivente mal-morrido,
requer terra molhada, areia fecundada pelo rio que tudo faz nascer.
Sob
a grande sombra não me dói a ausência do mais-velho dos Marianos.
Sinto falta, sim, da nossa secreta correspondência. Aquelas cartas
me fizeram nascer um avô mais próximo, mais a jeito de ser meu.
Pela sua grafia em meus dedos ele se estreava como pai e eu renascia
em outra vida.
As
cartas instalavam em mim o sentimento de estar transgredindo a minha
humana condição. Os manuscritos de Mariano cumpriam o meu mais
intenso sonho. Afinal, a maior aspiração do homem não é voar. É
visitar o mundo dos mortos e regressar, vivo, ao território dos
vivos. Eu me tinha convertido num viajante entre esses mundos,
escapando-me por estradas ocultas e misteriosas neblinas. Não era só
João Celestioso que tinha ultrapassado a última montanha. Eu também
tinha estado lá.
Já
não me importa esclarecer o modo como Mariano redigira aquelas
linhas. Eu queria apenas prolongar esse devaneio. Deitado sob a
maçaniqueira, a brisa se faz audível nos ramos que me dão sombra.
Cai uma larga folha sobre o meu peito. Toco-a como se acariciasse as
mãos do Avô. Aos poucos, o verde se entontece e a folha empalidece,
tombando num desmaio. Apanho-a do chão. Já não é folha mas papel.
E as nervuras são linhas e letras. Nos meus dedos estremece a última
carta de Dito Mariano:
Meu
neto, Agora sabe onde me há-de visitar. Já não necessito de lhe
escrever por caligrafada palavra. Falaremos aqui, nesta sombra onde
ganho dimensão, copo renascendo em outro copo. Você, meu neto,
cumpriu o ciclo das visitas. E visitou casa, terra, homem, rio: o
mesmo ser, só diferindo em nome. Há um rio que nasce dentro de nós,
corre por dentro da casa e desagua não no mar, mas na terra. Esse
rio uns chamam de vida. Esta é a última visitação. Desta vez já
não háverá mais cartas. Não careceremos de nos visitar por esses
caminhos. De assim para sim: nesta sombra que, afinal, só há dentro
de si, você alcança a outra margem, além do rio, por detrás do
tempo.
Todos
necessitam de grandes causas, precisam de ter pátria, ter Deus. Eu
não. Me bastou ter esta árvore. Não é dessas de se domesticar em
jardim. Esta árvore, tal como eu, não tem cultura ensinada.
Aprendeu apenas da embrutecida seiva. O que ela sabe vem do rio
Madzimi. Longe do rio, a maçaniqueira morre. É isso que a faz
divina. Foi por isso que sempre rezei sob esta sombra. Para aprender
de sua eternidade, ganhar um coração de longo alcance. E me
aprontar a nascer de novo, em semente e chuva.
Venha
aqui e se deite. Verá que o dormir, nesta berma, se faz da mais
funda indolência. Agora, eu já durmo além do sono. Dormir é um
rio, um rio feito só de curva e remanso. Deus está na margem,
vigiando de sua janela. E invejando o irmos, infinitos, vidas afora.
Vem daí o cansaço de Deus. Esse Deus do Padre Nunes se consome na
desconfiança. Há séculos que Ele deve controlar a sua obra, com
seu regimento de anjos. O nosso Deus não necessita de presença. Se
ausentou quando fez a sua obra, seguro de sua perfeição.
Lhe
contei tudo sobre sua família, desfiei histórias, desfiz o laço da
mentira. Agora, já não arrisco ser emboscado por segredo. O caçador
lança fogo no capim por onde vai caminhando. Eu faço o mesmo com o
passado. O tempo para trás eu o vou matando. Não quero isso atrás
de mim, sei de criaturas que se alojam lá, nos tempos já revirados.
Por fim, me libertei dessa sonolência que me prendia ao lençol da
mesa grande. Não acredita como me cansava aquela sala, como me
fatigavam os visitantes que não paravam de chegar, fingindo
tristezas. Onde estavam quando eu ainda era todo vivo e careci de
amparo? Por que se juntaram, agora, em mostruário de choros e rezas?
Não lhe parecia muito meio para pouco fim? Eu lhe respondo: o medo.
É por isso que vieram. Tinham medo não da morte, mas do morto que
eu agora sou. Temiam os poderes que ganhei atravessando a última
fronteira. Medo que eu não lhes trouxesse as boas harmonias. Foi
isso que troquei consigo, meu neto. Chamo-o assim de “meu neto”
mas é uma fraqueza de expressão. Você é meu filho. Meu maior
filho pois nasceu de um amor sem medida. Por isso, não o escolhi
para cerimoniar a minha passagem para a outra margem. Você se
escolheu sozinho, a vida escreveu no seu nome o meu próprio nome.
Nestes
manuscritos me fui limpando de mim. Esses que me velavam sofriam de
um engano: aquele, em cima do lençol, se parecia comigo. Mas não
era eu. O morto era outro, em outro fim de vida. Eu apenas estou
usando a morte para viver. Você, meu filho, você disse o certo: a
morte é a cicatriz de uma ferida nunca havida, a lembrança de uma
nossa já apagada existência.
Nestes
dias, deitado naquela sala sem telhado, fui contemplado por luas e
por estrelas. Às vezes, me descia um frio sem remédio. Me chegavam
visões de uma fundura: o abismo que nenhuma ave nunca cruzou. E eu
tombando, tombando sempre. Da rocha para a pedra, da pedra para o
grão, do grão para a funda cova do nada. Mas depois eu sentia-o
chegar, meu filho, e a minha cabeça dedilhava em sua mão: e você
escrevia as minhas cartas. Me sustinha a simples certeza: a mim
ninguém, nunca, me iria enterrar. E assim veio a suceder. Fui eu,
por meu passo, que me encaminhei para a terra. E me deitei como faz a
tarde no amolecido chão do rio. Mais antigo que o tempo. Mais longe
que o último horizonte. Lá onde nenhuma casa alguma vez engravidou
o chão.
Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
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