quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Parte Um | Trêmulo e casto


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Quando você não tem mais números no Nirvana então não vai mais haver algo como “inumerável” mas as multidões na San Juan Letran pareciam inumeráveis – Eu falo “Conte todos esses sofrimentos daqui até o fim do céu infinito que não é céu e veja quantos você pode somar para fazer um número que impressione o Chefe das Almas Mortas na Fábrica de Carne na cidade Cidade CIDADE todos eles sofrendo e nascidos para morrer, meditando nas ruas às duas da manhã sob aqueles céus imponderáveis” – sua infinitude enorme, a vastidão do platô mexicano distante da Lua vivendo mas para morrer, sua canção triste que às vezes escuto no meu telhado no bairro de Tejado, minha cela no telhado, com velas, à espera do meu Nirvana ou de minha Tristessa – nenhum chega, ao meio-dia ouço “La Paloma” tocada em rádios mentais nos vãos entre as janelas dos cortiços – o menino maluco da porta ao lado canta, o sonho está acontecendo agora mesmo, a música é tão triste, as trompas pulsam, os violinos lamentando-se altos e o bracataca-tracacaca do apregoador Hispano Índio. Vivendo mas para morrer, esperamos aqui nesta prateleira, e lá em cima no céu está todo aquele caramelo de ouro aberto, abra minha porta – o céu é o Sutra de Diamante.
Eu sigo avançando bêbado e insensível, com os pés dando chutes acima da camada de óleo vegetal Tehuantepec sobre a calçada, calçadas verdes, cheias de vermes da escória invisíveis quando não estão doidões – mulheres mortas escondidas em meu cabelo, passando por baixo do sanduíche e da cadeira – “Você está maluco!” grito em inglês para as multidões “Vocês não sabem que diabos estão fazendo nesta torre de sino com a corda que balança ao movimento do titereiro de Magadha, Mara, a Tentadora, insana... E você todo águia e caça e compra – Você meio bêbado e se surpreende e mente – Seus pobres camaradas protetores escorrendo por entre o desfile suculento de Sua Noite na Rua Principal e você não sabe que o Senhor organizou tudo à vista. Incluindo sua morte. E nada está acontecendo. Não sou eu, você não é você, os inumeráveis eles não são eles, e Um Eu Incontável não existe tal coisa.”
Rezo aos pés do homem, à espera, como eles.
Como eles? Como homem? Como ele? Não existe Ele. Há apenas a palavra divina indizível. Que não é uma Palavra, mas um Mistério. Na raiz do Mistério a separação de um mundo do outro por uma espada de luz. –
Os vencedores do jogo de beisebol desta noite ao ar livre enevoado perto de Tacabatabavac estão comemorando ruidosamente na rua balançando seus tacos de beisebol para a multidão mostrando como podem rebater bem e a multidão caminha por lá despreocupada porque são crianças não delinquentes juvenis. Eles puxam a aba dos bonés de beisebol para baixo, sobre seus rostos, quando começa a chuviscar, tamborilando com suas luvas eles se perguntam “Será que fiz uma jogada ruim na quinta entrada? Será que não correspondi às expectativas na sétima entrada?”

No fim de San Juan Letran há aquela última série de bares que termina em uma névoa arruinada, terrenos cobertos de adobe quebrado, sem vagabundos escondidos, só mato, sujeira, e a umidade de esgotos e charcos, valas de metro e meio de profundidade nas ruas com o fundo cheio de água – cortiços poeirentos contra a luz da cidade próxima – Olho para as derradeiras portas de bar tristes, onde há lampejos de mulheres, traseiros enfeitados com fitas douradas reluzentes vejo e sinto chegar voando como um passarinho em voo serpenteia. Há crianças na porta em roupas ridículas, a banda emite um cha-cha-cha lamentoso lá dentro, todos balançam os joelhos enquanto dançam e uivam com a música enlouquecida, todo o clube está dançando, se acabando, um negro americano que estivesse andando comigo poderia dizer “Esses caras estão viajando com alguma coisa muito doida, estão se divertindo o tempo todo, eles gemem, gastam todo o tempo batendo e batendo por esse pão, por essa garota, eles estão em pé diante das portas, cara, todos lamentando – sabia? Eles não sabem quando parar. É como Omar Khayan, eu me pergunto se o que os taberneiros compram é pelo menos a metade precioso do que eles que vendem.” (Meu garoto Al Damlette.)

Eu desligo nesses últimos bares e começa a chover forte de verdade e ando o mais rápido possível e entro em uma poça grande e saio dela em um pulo todo molhado e pulo pra dentro outra vez e a atravesso – A morfina evita que eu me sinta molhado, minha pele e meus membros estão dormentes – como uma criança quando sai para patinar no inverno, que cai através do gelo, corre para casa com os patins embaixo do braço para não pegar um resfriado, eu continuo a abrir caminho por entre a chuva Pan Americana e acima ouço o rugido gigantesco de um avião da Pan American chegando para aterrissar no Aeroporto da Cidade do México com passageiros vindos de Nova York em busca de encontrar a outra ponta dos sonhos. Olho para cima no meio da chuva e vejo suas caudas soltarem fogo – você não vai me ver aterrissando sobre grandes cidades e tudo o que faço é agarrar o lado do banco e sacudo conforme o piloto nos conduz com habilidade para dentro de um acidente, uma colisão flamejante contra a lateral de armazéns no bairro dos cortiços da Velha Cidade dos índios – o quê? Com todos eles rá tá tá com revólveres nos bolsos abrindo caminho por entre meus ossos brumosos à procura de algo feito de ouro, e então os ratos roem você.
Eu prefiro caminhar do que andar de avião, posso cair de cara no chão e morrer assim. – Com uma melancia embaixo do braço. Mira.

Jack Kerouac, in Tristessa

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