sábado, 24 de fevereiro de 2024

Os Nascimentos | 1528 – Ilha do Mau Fado

Gente muito solta do que tem...”

Dos navios que saíram de San Lúcar de Barrameda rumo à Florida, um foi arrojado pela tempestade sobre as copas das árvores de Cuba e outros o mar devorou em naufrágios sucessivos. Não correram melhor sorte os barcos que os homens de Narváez e Cabeza de Vaca improvisaram com camisas como velas e cordame de crinas de cavalo.
Os náufragos, espectros despidos, tremem de frio e choram entre os rochedos da ilha do Mau Fado. Chegam uns índios para trazer-lhes água e peixes e raízes e ao vê-los chorar, choram com eles. Choram rios os índios, e quanto mais dura a estrepitosa choradeira, mais lástima os espanhóis têm de si.
Os índios os conduzem à sua aldeia. Para que o frio não os mate, vão acendendo fogos nos descansos do caminho. Entre fogueira e fogueira os levam nos braços, sem deixá-los pôr os pés no chão.
Imaginam os espanhóis que os índios os cortarão em pedaços e os jogarão em um caldeirão, mas na aldeia continuam partilhando com eles a pouca comida que têm. Conta Alvar Núnez Cabeza de Vaca que os índios se escandalizam e ardem de fúria quando ficam sabendo que, na costa, cinco cristãos se comeram uns aos outros, até que só ficou um, que por ser um só não houve quem o comesse.

Eduardo Galeano, in Os Nascimentos

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