Nosso
plano era ir atrás dele rápido. Não adiantava esperar uma semana
ou duas. Se esperássemos, a vontade de tirar a limpo aquela história
com o cara ia passar.
Sem
chance de isso acontecer.
Descobrimos
que o tal Bruce Patterson estava saindo com outra garota havia cerca
de um mês e enganava minha irmã, aparecendo por aqui. Era um tapa
na cara de todos nós, que o deixávamos entrar em casa, enquanto ele
andava por aí com alguma vagabunda.
— Será
que devemos acabar com ele? — perguntei a Rube, mas ele só olhou
para mim, com ar de riso.
— Tá
falando sério? Olhe o seu tamanho. Você é tipo um chihuahua e o
Patterson é uma porra de um armário. Você tem ideia do que aquele
cara faria a você? — Bem, pensei que talvez nós dois.
— Também
não sou grande coisa. — Foi a resposta curta de Rube ao meu
comentário. — Claro, tenho uma porra de uma barba no rosto, mas
Bruce pode matar nós dois.
É.
Você tem razão.
O
que aconteceu em seguida foi inesperado.
Ouvimos
uma batida à porta que era mais como se a estivessem arranhando, e,
quando a abri, meu ex-melhor amigo Greg estava parado lá.
— Posso
entrar? — perguntou.
— O
que é que você acha? Abri a porta de tela, e ele entrou em casa,
pouco depois de lançar um olhar ao Steve, que, como sempre, estava
sentado de cara amarrada na varanda.
— Ei,
lobisomem! — Greg cumprimentou Rube dentro de casa, e Rube
respondeu ameaçando jogá-lo para fora.
— Desculpe
— falou, e eu o levei para o quarto. Ele sentou debaixo da janela,
apoiado na parede.
Em
silêncio.
— Bem
— falei, sentando na cama —, se não se importa, o que diabos
traz você aqui? — Preciso de ajuda. — Foi a resposta rápida e
sincera. Passou a mão pelo cabelo e pude ver a caspa caindo. Greg
sempre teve um pouco de caspa. Ele se divertia quando deixava cair na
carteira da escola.
— Ajuda
com o quê? — continuei perguntando.
— Dinheiro.
— Quanto?
Trezentos.
— Trezentos!
Caramba, mas que diabos você andou fazendo ultimamente? — Ah, nem
pergunte. Só... — Contorceu um pouco o rosto. — Você tem? —
Cara... trezentos... sei lá.
Fui
até o meu pedaço do tapete e tirei o que estava escondido debaixo
dele. Oitenta contos.
— Bem,
tenho oitenta aqui. — Peguei o caderno onde anotava minhas
economias e vi que tinha cento e trinta lá. — Então, tenho
duzentos e dez ao todo. É só o que posso fazer.
— Ah,
droga, cara.
Sentei
ao lado dele no chão, apoiado na cama, e disse: — Só me diga para
o que é, tá bem? Ele hesitou.
— Se
não disser, não dou o dinheiro. — Era mentira, e nós dois
sabíamos disso. Nós dois sabíamos que eu ia dar o dinheiro a Greg
e nem ia pedir de volta. Era assim que funcionava. Mas ele me devia,
pelo menos, isso. Tinha que me dizer onde meu dinheiro ia parar.
— Ah.
— Desistiu. — É pra um dos meus colegas, Dale. Conhece? Dale
Perry.
Sim,
eu o conhecia bem. Era o tipo de cara que eu odiava porque andava por
aí se achando o fodão aonde quer que fosse, e eu odiava esse cara.
Na aula de relações comerciais, no ano passado (uma matéria que eu
nunca deveria ter escolhido), ele levou a régua de metal, aqueceu-a
no aquecedor e então a encostou na minha orelha, me deixando com uma
queimadura horrorosa. Esse era Dale Perry. Também estava naquele
grupo grande que batia papo com as garotas bonitas no futebol, no
outro dia.
— Sim,
conheço o cara — falei com calma.
— Então,
bem, alguns dos colegas mais velhos dele precisavam de alguém pra
pegar heroína pra eles. Valia trezentos contos.
— Heroína?
Claro que eu sabia o que era heroína, mas pensei em tornar a coisa
toda um pouco mais difícil pro Greg. Afinal, estava dando pro cara
cada centavo que eu tinha.
Agora
não ia ter dinheiro para comprar um aparelho de som ou coisa assim.
Não ia ter mais o dinheiro que ganhei trabalhando duro com meu pai,
nas últimas semanas. Tudo aquilo ia pela descarga porque um
ex-melhor amigo me procurou, sabendo que eu era o único cara que não
ia deixá-lo na mão. Nenhum dos novos amigos ia ajudar, mas o antigo
ia.
É
esquisito.
Você
não acha? Não que as antigas amizades sejam melhores. É só que
você conhece melhor a pessoa e sabe que ela não se importa se você
estiver agindo feito um perfeito idiota puxa-saco.
Sabe
que você faria o mesmo por ela. Eu sabia que Greg faria o mesmo por
mim, se fosse o contrário.
Então,
sim.
— Heroína?
— perguntei. — Do que você está falando? — Você sabe —
respondeu ele. Deixei ele escapar com essa.
— É.
Eu sei.
— De
leve — continuou ele —, mas um bocado dela. Eram uns dez caras e
todos deram a grana, mas eram preguiçosos demais pra ir lá e pegar
o negócio. — Ele escorregou um pouco mais na parede. — Peguei o
troço sem problemas, mas as coisas pioraram porque tive que esconder
durante a noite.
— Aah.
-Joguei a cabeça para trás e comecei a rir. Tinha certeza de que
sabia agora exatamente o que havia acontecido.
— É,
isso mesmo. — Assentiu Greg. — A coroa achou tudo debaixo da cama
e o coroa jogou no fogo. Estavam assinando minha sentença de
morte... não consigo acreditar que o coroa jogou tudo no fogo,
caramba.
Agora
eu quase chorava de tanto rir, porque podia ver o coroa do Greg: um
grosseirão magro e baixinho, com cabelos cacheados, xingando feito
louco e jogando tudo no fogo. Para falar a verdade, Greg também riu,
ainda que ficasse repetindo: — Não tem graça, Cam. Não tem
graça.
Tinha.
E foi por isso que ele conseguiu o dinheiro.
O
que o salvou foi que contei a história pro Rube, e ele desencavou os
outros noventa contos de que Greg precisava, embora ameaçasse acabar
com ele, se não devolvesse rápido. No fim, a solução foi eu pagar
pro Rube o dinheiro que ganharia com papai no mês seguinte, e todo
mundo ficaria satisfeito. Depois, Greg ia devolver tudo para mim.
Quanto
a Greg, dava para ver que o rosto dele estava menos tenso. Já não
parecia tão exausto quando o dinheiro foi parar em sua mão.
No
quarto ao lado, Sarah estava deitada na cama, na pior.
Passamos
por ela ao voltar para o quintal, onde Rube, Greg e eu chutamos para
o gol contra a cerca. Nós nos revezávamos no gol. Foi minha ideia
(sobretudo, por causa do sonho da noite anterior), e, na verdade, eu
só torcia para não acabar com o nariz sangrando. Mas Rebecca Conlon
não estava no quintal, estava? Eu achava que estava bastante seguro.
Claro,
o cachorro do vizinho começou a latir e os papagaios enlouqueceram.
Para
completar, Rube ligou para os colegas.
E
a conversa foi: — Alô?
— Alô,
Simon? É o Rube.
— Ruben.
E aí?
— Tudo
bem. Quer vir pra cá?
— Por
que não? Parece boa ideia.
— Chama
o Cheese e o Jeff.
— Tá
certo.
— Tchau.
— Tchau.
Quando
chegaram, jogamos pra valer.
Sem
parar, chutamos a bola contra a cerca, aproveitando todo o tempo
antes de mamãe e papai voltarem para casa. Você devia ter visto.
Bam. Bam. A bola acertava em cheio dos dois lados, e o som ecoava por
toda parte, seguido de gritos e palavrões.
Meu
time era Jeff, Greg e eu, e, na verdade, estávamos ganhando, embora
fôssemos menores e mais fracos que o time do Rube. Era a nossa fome
de bola.
Estava
quatro a dois, quando o cachorro do vizinho parou de latir.
— Para!
Para! — gritei, quando percebi. — Vocês ouviram isso?
— Isso
o quê?
— O
cachorro.
— É.
Ele parou de latir.
Subi
na cerca e olhei para o outro lado. Você não vai acreditar no que
vi.
O
cachorro estava morto.
— Caramba!
Acho que ele morreu — falei, virando o rosto para olhar os outros.
— O
quê?!
— Estou
falando sério. Venham dar uma olhada.
Rube
subiu na cerca, perto de mim, e teve que concordar.
— Caramba,
acho que ele está certo. — Riu para os outros. — Acho que
fizemos o pobrezinho ter um ataque cardíaco.
— Tem
certeza?
— Ou
um derrame.
— Ah,
não — lamentei. — O que foi que fizemos?
— Que
tipo de cachorro é esse?
Rube
já tinha aguentado o suficiente.
— E
eu que vou saber?! — gritou para Cheese. — Acho que é um...
um...
— Lulu
da Pomerânia— respondi por ele.
— O
que diabos é um Lulu da Pomerânia?
— Você
sabe — explicou Cheese para os outros —, é uma dessas coisinhas
fofas com cara de rato... acho que ele latiu até não aguentar mais.
Até
os papagaios na gaiola lançaram um olhar de tristeza ao cachorro.
— A
gente tem que fazer alguma coisa — falei pro Rube.
— O
quê? Boca a boca nele?
— Olhe,
ele está tremendo.
— Ah,
que lindo, hein? Pulei a cerca, tirei a camisa de flanela e enrolei o
cachorro. Rube também pulou e os outros caras olhavam por cima da
cerca enquanto dávamos tapinhas no cachorro fofinho com cara de
rato, imaginando se ele realmente ia morrer.
Depois
de uns quinze minutos, o vizinho voltou para casa. Era um cara de uns
50 anos com um bafo pior do que o de todos nós juntos. Para falar a
verdade, ele até que se controlou, pois correu, nos xingou um pouco,
pegou o Lulu da Pomerânia (que, por sinal, se chamava Miffy) e o
levou para o veterinário.
— Você
acha que ele vai sobreviver? — Foi o que nos perguntamos ao voltar
para casa.
— Cara,
não sei.
Aos
poucos, todos foram embora. Greg foi o último.
— Caramba.
— Balançou a cabeça na saída. — Tinha me esquecido de como
eram as coisas por aqui.
— Os
velhos tempos, hein?
— É.
— Fez que sim com a cabeça. — O caos.
— Com
certeza.
Tinha
sido realmente como nos velhos tempos, mas eu sabia que não
adiantava achar que ia continuar assim. Nós dois sabíamos que, da
próxima vez que ele viesse, seria para devolver uma parte ou todo o
dinheiro. Era assim que as coisas funcionavam.
A
noite, algo que eu sabia que viria veio.
Veio
para dizer à mamãe e ao papai que eles não podiam controlar a mim
e ao Rube, e como o Rube era o único que tinha dinheiro sobrando,
foi ele quem pagou a conta do veterinário do cara.
Por
sinal, Miffy, o Lulu da Pomerânia, estava passando bem. Só teve um
ataque cardíaco fraquinho. Pobre cachorrinho com cara de rato.
Mas
isso foi a gota d'água para a nossa mãe.
Ela
nos fez sentar à mesa da cozinha — e deu voltas ao nosso redor,
gritando e dizendo coisas nas quais você não ia acreditar. Até
esfregou a colher de pau debaixo do nosso nariz, apesar de não bater
na gente desde que eu tinha dez anos. Para ser sincero, parecia que
ia esfregar aquela coisa na nossa cabeça.
— Por
que vocês insistem em fazer isso?! — gritou para nós. —
Deixando um ao outro de olho roxo, fazendo a droga do cachorro do
vizinho enfartar. E uma desgraça... Tenho vergonha de vocês. De
novo!
E
papai só ficou sentado num canto, em silêncio total. Ele não
ousava falar nada com medo de apanhar também.
No
fim, ela ficou maluca de verdade, pegou o lixo orgânico da pia da
cozinha e, em vez de levar lá para fora e jogar na lixeira correta,
jogou tudo no chão, catou e jogou de novo, dessa vez, nos meus pés.
— Vocês
são uns animais! — gritou ainda mais alto que antes. Então, falou
o que sempre parecia magoar mais: — Cresçam!
Não
preciso nem dizer que o Rube e eu limpamos a bagunça, levamos para
fora e ficamos por lá. Não ousávamos entrar.
Da
janela do quarto, Sarah olhou para nós e sorriu, balançando a
cabeça em meio ao sofrimento. Deu uma risada, o que nos fez rir um
pouco também. E fez Rube voltar à sua decisão, dizendo: — Ainda
vamos pegar o Patterson. Não tenha dúvida disso.
— Temos
que pegar — concordei.
Depois
de um tempo, pensei sobre o que acontecera durante o dia, porque
agora eu devia ao Rube metade da conta do veterinário também. As
coisas estavam indo de mal a pior, falando sério.
— Maldito
Lulu da Pomerânia— falei.
— Hum.
— Rube bufou. — Um Lulu da Pomerânia com coração fraco. Isso
só podia acontecer com a gente, hein?
Tem
um cara na minha frente, numa estrada poeirenta, ao nascer do sol.
Ele
olha para mim.
Eu
olho para ele.
Estamos
de pé, separados por uns dez metros, talvez, até que, enfim,
resolvo quebrar o silêncio.
Digo:
— E aí?
— E
aí, o quê? — É a resposta dele. Ele veste uma túnica, coça a
barba e tenta tirar uma pedra de uma das sandálias.
— Bem,
não sei. — Penso para responder. — E quem diabos é você, pra
começo de conversa?
Ele
sorri.
Dá
uma gargalhada.
De
pé.
Depois
de se ajeitar, repete a pergunta e responde: — Quem diabos sou eu?
— Um risinho curto. — Sou Cristo.
— Cristo?
Você existe mesmo?
— Claro
que existo, porra.
Decido
testá-lo. — Então, quem sou eu?
— Não
me interessa quem você é. — Ele caminha pela estrada até mim,
ainda tentando tirar a pedrinha da sandália. — Droga de sandália.
— Arrasta o pé; então, contínua. — Na verdade, me interessa o
que você é.
— E
o que eu sou?
— Infeliz.
— É.
— Encolho os ombros, concordando com ele.
— Eu
posso ajudar.
Continua
falando, e fico esperando Ele citar o versículo tradicional que
todos os professores de religião citam na peregrinação anual à
nossa escola. Não é o que Ele faz.
Em
vez disso, estende uma garrafa com líquido vermelho e move a mão
dizendo “Beba tudo” para que eu beba.
— O
que é isso? — pergunto.
Vinho.
— Sério?
— Não.
Na verdade, é groselha. Você é muito novo para beber.
— Aah,
seu estraga-prazeres.
— Ei,
não ponha a culpa em mim. Não tenho nada a ver com isso, falando
sério. Foi o coroa quem não me deixou lhe dar bebida de verdade.
Ponha a culpa Nele.
— Está
bem, está bem... E, por falar nisso, qual é o problema Dele?
— Ah,
anda sob muita pressão ultimamente.
— Por
causa do Oriente Médio?
— É,
voltaram a brigar. — Ele chega mais perto e cochicha. — E, cá
entre nós, faltou pouco pra Ele acabar com tudo na semana passada.
— Com
o quê? O mundo?
— É.
— Cristo
Todo-Poderoso!
A
expressão no rosto de Cristo é de decepção, ao ouvir as minhas
palavras.
— Ah,
claro. Foi mal — digo. — Não é legal falar assim, não é?
— Sem
problema.
— Preste
atenção. — Jesus decide que é hora de falar sério. — Vim, na
verdade, para lhe dar isto.
Tira
alguma coisa do bolso da túnica e eu pergunto: — O que é?
— Ora,
é só uma pomada. — Ele a entrega para mim. — Para o sangramento
no nariz.
— Ah,
legal. Obrigado.
Markus Zusac, in O Azarão
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