[…]
Alguma
coisa mudara também nela. Apesar da ferocidade do riso, seu rosto
parecia menos amargo e no fundo de sua perfídia havia um sentimento
de compaixão que o marquês não notou. Logo que a viu longe, disse
à menina: — É uma bácora.
Pareceu-lhe
perceber nela uma chispa de interesse.
— Sabes
o que é uma bácora? — perguntou, ávido de uma resposta.
Sierva
María calou. Deixou se deitar na cama, deixou-se ajeitar a cabeça
nos travesseiros de penas, deixou-se cobrir até os joelhos com a
colcha de linho cheirando ao cedro da arca, sem lhe fazer a caridade
de um olhar. Ele sentiu um tremor de consciência: — Rezas antes de
dormir? A menina nem sequer o olhou. Acomodou-se na posição fetal
pelo hábito da rede e dormiu sem dar boa-noite. O marquês cerrou o
mosquiteiro com todo cuidado para que os morcegos não lhe chupassem
o sangue enquanto dormia. Faltava pouco para as dez e o coro das
loucas era insuportável na casa redimida pela expulsão dos
escravos.
O
marquês soltou os cães, que saíram em disparada até o quarto da
avó, farejando as frestas das portas com latidos ofegantes.
Acariciou
a cabeça deles com as gemas dos dedos e acalmou-os com a boa
notícia: — É Sierva María, que a partir desta noite mora
conosco.
Dormiu
pouco e mal por causa das loucas, que cantaram até as duas horas. A
primeira coisa que fez ao levantar-se com o canto dos galos foi ir
até o quarto da menina, que não estava lá, e sim. no galpão das
escravas. A que dormia mais perto acordou assustada.
— Ela
veio sozinha, senhor — disse, antes que ele perguntasse. — Eu nem
percebi.
O
marquês sabia que era verdade. Indagou qual delas acompanhava Sierva
María quando o cachorro a mordeu. A única mulata, que se chamava
Caridad del Cobre, se apresentou tremendo de medo. O marquês
sossegou-a.
— Toma
conta dela como se fosses Dominga de Adviento — disse.
Explicou-lhe
os seus deveres. Ordenou que não a perdesse de vista um só momento,
que a tratasse com carinho e compreensão, mas sem complacência. O
mais importante era que não transpusesse a cerca de espinhos que
mandaria fazer entre o pátio dos escravos e o resto da casa. De
manhã, ao despertar, e de noite, antes de dormir, devia apresentar a
ele um relatório completo, sem que o pedisse.
— Presta
bem atenção no que fazer e como fazer — concluiu — És a única
responsável pelo cumprimento das minhas ordens.
As
sete da manhã, depois de prender os cães, o marquês foi à casa de
Abrenuncio. O médico abriu a porta em pessoa, pois não tinha
escravos nem criados. O marquês fez a si mesmo a censura que julgava
merecer.
— Isso
não são horas de visita — disse.
O
médico lhe falou de coração aberto, grato pelo cavalo que acabava
de receber. Levou-o pelo pátio até o telheiro de uma antiga
ferraria, da qual só restavam os escombros da forja. O bonito alazão
de dois anos, longe de seus confortos, parecia azougado. Abrenuncio o
sossegou com palmadinhas na cara, murmurando-lhe ao ouvido inúteis
promessas em latim.
O
marquês contou que o cavalo morto tinha sido enterrado na antiga
horta do hospital Amor de Deus, consagrada como cemitério de gente
rica durante a peste de cólera. Abrenuncio, agradeceu o favor
excessivo. Enquanto falavam, chamou sua atenção que o visitante se
mantivesse à distância. O marquês confessou que nunca tinha se
atrevido a montar.
— Tenho
tanto medo de cavalos como de galinhas — disse.
— É
pena, porque a falta de comunicação com os cavalos atrasou a
humanidade — disse Abrenuncio. — Se conseguíssemos rompê-la,
poderíamos fabricar o centauro.
O
interior da casa, iluminado por duas janelas que davam para o mar
alto, estava arrumado com um preciosismo minucioso de solteirão. Em
todo o ambiente recendia uma fragrância de bálsamos que levava a
crer na eficácia da medicina. Havia uma escrivaninha em ordem e uma
cristaleira cheia de frascos de porcelana com rótulos em latim.
Relegada
a um canto, estava a harpa medieval coberta de uma poeira dourada. O
mais notável eram os livros, muitos em latim, com lombadas
intrigantes. Havia-os em armários de vidro e em estantes abertas, ou
postos no chão com muito cuidado, e o médico caminhava Pelos
desfiladeiros de papel com a ligeireza de um rinoceronte entre rosas.
O marquês estava assombrado com a quantidade.
— Tudo
o que se sabe deve estar nesta sala disse.
— Os
livros não servem para nada — disse Abrenuncio de bom humor. —
Passei a vida curando doenças causadas por outros médicos com os
remédios que dão.
Tirou
um gato adormecido da poltrona principal, que era a sua, para que o
marquês sentasse. Serviu-lhe um chá de ervas que ele mesmo preparou
no fogareiro do laboratório, enquanto falava de suas experiências
médicas, até se dar conta de que o marquês perdera o interesse.
Assim era: ele se levantou de repente e lhe deu as costas, espiando
pela janela o mar esquivo. Por fim, sempre de costas, encheu-se de
coragem para começar.
— Licenciado
— murmurou.
Abrenuncio
não esperava o chamado.
— Sim?
— Sob a gravidade do sigilo médico, e só para seu governo,
confesso que é verdade o que falam — disse o marquês em tom
solene. — O cachorro raivoso mordeu também minha filha.
Olhou
o médico e se defrontou com uma alma em paz.
— Já
sei — disse. — E suponho que é por isso que veio tão cedo.
— Isso
mesmo — disse o marquês. E repetiu a pergunta feita a respeito do
mordido do hospital: — Que podemos fazer? Em vez da resposta brutal
do dia anterior, Abrenuncio pediu para ver Sierva María.. Era isso
que o marquês queria dele. Estavam pois de acordo, e a carruagem os
esperava na porta.
Quando
chegaram à casa, o marquês encontrou Bernarda sentada diante do
toucador, penteando-se para ninguém com a faceirice dos anos remotos
em que tinham feito amor pela última vez e que ele havia apagado da
memória. O quarto estava cheio do perfume primaveril dos sabonetes.
Ela viu o marido pelo espelho e lhe disse sem azedume: — Quem somos
nós para andar presenteando cavalos? O marquês a surpreendeu.
Apanhando na cama em desalinho um roupão de uso diário jogou-o em
cima de Bernarda e ordenou implacável: — Vista-se, que o médico
está aí.
— Deus
me livre — disse ela.
Não
é para você, embora precise bastante disse ele. — É para a
menina.
— Não
adiantará nada — disse ela. — Ou se morre ou não se morre, não
há outra saída. — Mas a curiosidade venceu: — Quem é? —
Abrenuncio — disse o marquês.
Bernarda
se escandalizou. Preferia morrer como estava, sozinha e nua, a
depositar sua honra nas mãos de um judeu fugido. Tinha sido médico
na casa de seus pais, que o mandaram embora porque espalhava o estado
dos seus pacientes para valorizar os próprios diagnósticos. O
marquês a enfrentou.
— Embora
você não o queira, e eu o queira ainda menos, você é a mãe dela
— disse. — É em razão desse direito sagrado que lhe peço para
assistir ao exame.
— Por
mim, façam o que quiserem — disse Bernarda. — Eu morri.
Ao
contrário do que seria de esperar, a menina se submeteu sem
resistência a uma exploração minuciosa de seu corpo, com a
curiosidade de quem estivesse observando um brinquedo de dar corda.
— Nós
médicos vemos com as mãos — disse Abrenuncio.
A
menina, achando graça, sorriu pela primeira vez. Sua boa saúde
saltava aos olhos. Apesar do jeito desamparado, tinha um corpo
harmonioso, coberto de uma penugem dourada, quase invisível, e com
os primeiros brotos de uma floração feliz. Tinha os dentes
perfeitos, os olhos clarividentes, os pés tranquilos, as mãos
sábias, e cada fio do seu cabelo era o prelúdio de uma vida longa.
Enfrentou com bom ânimo e pleno domínio o interrogatório
insidioso, e seria preciso conhecê-la muito para descobrir que
nenhuma resposta sua era verdade. Só esteve tensa quando o médico
encontrou a cicatriz ínfima no tornozelo. A astúcia de Abrenuncio
se antecipou: — Caíste? A menina afirmou sem pestanejar: — Do
balanço.
O
médico começou a conversar consigo mesmo em latim. O marquês o
interrompeu: — Diga-me isso em língua de gente.
— Não
é com o senhor — disse Abrenuncio. Estou pensando em baixo-latim.
Sierva
María estava encantada com as artimanhas, de Abrenuncio, até que
ele lhe colou a orelha ao peito para auscultá-la. O coração da
menina batia aos saltos enlouquecidos, e a pele soltou um orvalho
lívido e glacial, com um recôndito cheiro de cebola. Ao terminar, o
médico lhe deu uma palmadinha carinhosa na face.
— És
muito valente — disse.
A
sós com o marquês, comentou que a menina sabia que o cachorro tinha
raiva. O marquês não entendeu.
— Ela
lhe disse muitas petas, mas essa, não.
— Não
foi ela, senhor. Foi aquele coração, parecia uma rãzinha no
cativeiro.
O
marquês se demorou no relato de outras mentiras surpreendentes da
filha, não sem certo orgulho paterno.
— Talvez
vá ser poeta — disse.
Abrenuncio
não admitiu que a mentira fosse uma condição das artes: — Quanto
mais transparente é uma escrita, mais se vê a poesia.
A
única coisa que não pôde interpretar foi o cheiro de cebola no
suor da menina. Como desconhecia qualquer relação entre um cheiro
determinado e a raiva, descartou-o como sintoma. Caridad del Cobre
revelou mais tarde ao marquês que Sierva Maria se entregara em
segredo às ciências dos escravos, que a faziam mastigar emplastro
de manajá, e a trancavam nua na despensa de cebolas para afastar o
malefício do cachorro.
Abrenuncio
não suavizou o mais insignificante pormenor da raiva.
— Os
primeiros ataques são tanto mais graves e mais rápidos quanto mais
profunda for a mordida e quanto mais perto estiver do cérebro —
disse. Lembrou o caso de um paciente que morreu ao cabo de cinco
anos, mas ficou a dúvida de que tivesse sofrido um contágio
posterior, não advertido. A cicatrização rápida não queria dizer
nada: depois de um tempo imprevisível, a cicatriz podia inchar,
abrir-se de novo e supurar. A agonia chegava a ser tão espantosa que
era melhor a morte. Só restava então apelar para o hospital do Amor
de Deus, onde havia senegaleses hábeis no tratar de hereges e de
energúmenos enfurecidos. A não ser assim, o marquês em pessoa
teria de assumir a condenação de manter a menina amarrada à cama
até morrer.
— Na
longa história da humanidade — concluiu — nenhum hidrófobo
viveu para contar.
O
marquês decidiu que não havia cruz, por pesada que fosse, que não
estivesse disposto a carregar. De modo que a menina iria morrer em
casa.
O
médico o premiou com um olhar que mais parecia de compaixão que de
respeito.
— Não
se podia esperar menos grandeza de sua parte, senhor — disse. — E
não duvido que sua alma terá a têmpera necessária para suportar
tudo.
Mais
uma vez insistiu em que o prognóstico não era alarmante. A ferida
estava longe da área de maior risco, e ninguém lembrava que tivesse
sangrado. O mais provável era que Sierva María não contraísse
raiva.
— E
enquanto isso? — perguntou o marquês.
— Enquanto
isso — disse Abrenuncio —, toquem música, encham a casa de
flores, façam cantar os passarinhos, levem-na para ver o pôr-do-sol
no mar, deem-lhe tudo o que possa fazê-la feliz. — Despediu-se
rodando o chapéu no ar e com a frase latina de rigor. Mas dessa vez
traduziu-a em homenagem ao marquês: — “Não há remédio que
cure o que a felicidade não cura.”
Gabriel García Márquez, in Do Amor e Outros Demônios
Nenhum comentário:
Postar um comentário