quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Do Amor e Outros Demônios | Capítulo Um


[…]

Alguma coisa mudara também nela. Apesar da ferocidade do riso, seu rosto parecia menos amargo e no fundo de sua perfídia havia um sentimento de compaixão que o marquês não notou. Logo que a viu longe, disse à menina: — É uma bácora.
Pareceu-lhe perceber nela uma chispa de interesse.
Sabes o que é uma bácora? — perguntou, ávido de uma resposta.
Sierva María calou. Deixou se deitar na cama, deixou-se ajeitar a cabeça nos travesseiros de penas, deixou-se cobrir até os joelhos com a colcha de linho cheirando ao cedro da arca, sem lhe fazer a caridade de um olhar. Ele sentiu um tremor de consciência: — Rezas antes de dormir? A menina nem sequer o olhou. Acomodou-se na posição fetal pelo hábito da rede e dormiu sem dar boa-noite. O marquês cerrou o mosquiteiro com todo cuidado para que os morcegos não lhe chupassem o sangue enquanto dormia. Faltava pouco para as dez e o coro das loucas era insuportável na casa redimida pela expulsão dos escravos.
O marquês soltou os cães, que saíram em disparada até o quarto da avó, farejando as frestas das portas com latidos ofegantes.
Acariciou a cabeça deles com as gemas dos dedos e acalmou-os com a boa notícia: — É Sierva María, que a partir desta noite mora conosco.
Dormiu pouco e mal por causa das loucas, que cantaram até as duas horas. A primeira coisa que fez ao levantar-se com o canto dos galos foi ir até o quarto da menina, que não estava lá, e sim. no galpão das escravas. A que dormia mais perto acordou assustada.
Ela veio sozinha, senhor — disse, antes que ele perguntasse. — Eu nem percebi.
O marquês sabia que era verdade. Indagou qual delas acompanhava Sierva María quando o cachorro a mordeu. A única mulata, que se chamava Caridad del Cobre, se apresentou tremendo de medo. O marquês sossegou-a.
Toma conta dela como se fosses Dominga de Adviento — disse.
Explicou-lhe os seus deveres. Ordenou que não a perdesse de vista um só momento, que a tratasse com carinho e compreensão, mas sem complacência. O mais importante era que não transpusesse a cerca de espinhos que mandaria fazer entre o pátio dos escravos e o resto da casa. De manhã, ao despertar, e de noite, antes de dormir, devia apresentar a ele um relatório completo, sem que o pedisse.
Presta bem atenção no que fazer e como fazer — concluiu — És a única responsável pelo cumprimento das minhas ordens.
As sete da manhã, depois de prender os cães, o marquês foi à casa de Abrenuncio. O médico abriu a porta em pessoa, pois não tinha escravos nem criados. O marquês fez a si mesmo a censura que julgava merecer.
Isso não são horas de visita — disse.
O médico lhe falou de coração aberto, grato pelo cavalo que acabava de receber. Levou-o pelo pátio até o telheiro de uma antiga ferraria, da qual só restavam os escombros da forja. O bonito alazão de dois anos, longe de seus confortos, parecia azougado. Abrenuncio o sossegou com palmadinhas na cara, murmurando-lhe ao ouvido inúteis promessas em latim.
O marquês contou que o cavalo morto tinha sido enterrado na antiga horta do hospital Amor de Deus, consagrada como cemitério de gente rica durante a peste de cólera. Abrenuncio, agradeceu o favor excessivo. Enquanto falavam, chamou sua atenção que o visitante se mantivesse à distância. O marquês confessou que nunca tinha se atrevido a montar.
Tenho tanto medo de cavalos como de galinhas — disse.
É pena, porque a falta de comunicação com os cavalos atrasou a humanidade — disse Abrenuncio. — Se conseguíssemos rompê-la, poderíamos fabricar o centauro.
O interior da casa, iluminado por duas janelas que davam para o mar alto, estava arrumado com um preciosismo minucioso de solteirão. Em todo o ambiente recendia uma fragrância de bálsamos que levava a crer na eficácia da medicina. Havia uma escrivaninha em ordem e uma cristaleira cheia de frascos de porcelana com rótulos em latim.
Relegada a um canto, estava a harpa medieval coberta de uma poeira dourada. O mais notável eram os livros, muitos em latim, com lombadas intrigantes. Havia-os em armários de vidro e em estantes abertas, ou postos no chão com muito cuidado, e o médico caminhava Pelos desfiladeiros de papel com a ligeireza de um rinoceronte entre rosas. O marquês estava assombrado com a quantidade.
Tudo o que se sabe deve estar nesta sala disse.
Os livros não servem para nada — disse Abrenuncio de bom humor. — Passei a vida curando doenças causadas por outros médicos com os remédios que dão.
Tirou um gato adormecido da poltrona principal, que era a sua, para que o marquês sentasse. Serviu-lhe um chá de ervas que ele mesmo preparou no fogareiro do laboratório, enquanto falava de suas experiências médicas, até se dar conta de que o marquês perdera o interesse. Assim era: ele se levantou de repente e lhe deu as costas, espiando pela janela o mar esquivo. Por fim, sempre de costas, encheu-se de coragem para começar.
Licenciado — murmurou.
Abrenuncio não esperava o chamado.
Sim? — Sob a gravidade do sigilo médico, e só para seu governo, confesso que é verdade o que falam — disse o marquês em tom solene. — O cachorro raivoso mordeu também minha filha.
Olhou o médico e se defrontou com uma alma em paz.
Já sei — disse. — E suponho que é por isso que veio tão cedo.
Isso mesmo — disse o marquês. E repetiu a pergunta feita a respeito do mordido do hospital: — Que podemos fazer? Em vez da resposta brutal do dia anterior, Abrenuncio pediu para ver Sierva María.. Era isso que o marquês queria dele. Estavam pois de acordo, e a carruagem os esperava na porta.
Quando chegaram à casa, o marquês encontrou Bernarda sentada diante do toucador, penteando-se para ninguém com a faceirice dos anos remotos em que tinham feito amor pela última vez e que ele havia apagado da memória. O quarto estava cheio do perfume primaveril dos sabonetes. Ela viu o marido pelo espelho e lhe disse sem azedume: — Quem somos nós para andar presenteando cavalos? O marquês a surpreendeu. Apanhando na cama em desalinho um roupão de uso diário jogou-o em cima de Bernarda e ordenou implacável: — Vista-se, que o médico está aí.
Deus me livre — disse ela.
Não é para você, embora precise bastante disse ele. — É para a menina.
Não adiantará nada — disse ela. — Ou se morre ou não se morre, não há outra saída. — Mas a curiosidade venceu: — Quem é? — Abrenuncio — disse o marquês.
Bernarda se escandalizou. Preferia morrer como estava, sozinha e nua, a depositar sua honra nas mãos de um judeu fugido. Tinha sido médico na casa de seus pais, que o mandaram embora porque espalhava o estado dos seus pacientes para valorizar os próprios diagnósticos. O marquês a enfrentou.
Embora você não o queira, e eu o queira ainda menos, você é a mãe dela — disse. — É em razão desse direito sagrado que lhe peço para assistir ao exame.
Por mim, façam o que quiserem — disse Bernarda. — Eu morri.
Ao contrário do que seria de esperar, a menina se submeteu sem resistência a uma exploração minuciosa de seu corpo, com a curiosidade de quem estivesse observando um brinquedo de dar corda.
Nós médicos vemos com as mãos — disse Abrenuncio.
A menina, achando graça, sorriu pela primeira vez. Sua boa saúde saltava aos olhos. Apesar do jeito desamparado, tinha um corpo harmonioso, coberto de uma penugem dourada, quase invisível, e com os primeiros brotos de uma floração feliz. Tinha os dentes perfeitos, os olhos clarividentes, os pés tranquilos, as mãos sábias, e cada fio do seu cabelo era o prelúdio de uma vida longa. Enfrentou com bom ânimo e pleno domínio o interrogatório insidioso, e seria preciso conhecê-la muito para descobrir que nenhuma resposta sua era verdade. Só esteve tensa quando o médico encontrou a cicatriz ínfima no tornozelo. A astúcia de Abrenuncio se antecipou: — Caíste? A menina afirmou sem pestanejar: — Do balanço.
O médico começou a conversar consigo mesmo em latim. O marquês o interrompeu: — Diga-me isso em língua de gente.
Não é com o senhor — disse Abrenuncio. Estou pensando em baixo-latim.
Sierva María estava encantada com as artimanhas, de Abrenuncio, até que ele lhe colou a orelha ao peito para auscultá-la. O coração da menina batia aos saltos enlouquecidos, e a pele soltou um orvalho lívido e glacial, com um recôndito cheiro de cebola. Ao terminar, o médico lhe deu uma palmadinha carinhosa na face.
És muito valente — disse.
A sós com o marquês, comentou que a menina sabia que o cachorro tinha raiva. O marquês não entendeu.
Ela lhe disse muitas petas, mas essa, não.
Não foi ela, senhor. Foi aquele coração, parecia uma rãzinha no cativeiro.
O marquês se demorou no relato de outras mentiras surpreendentes da filha, não sem certo orgulho paterno.
Talvez vá ser poeta — disse.
Abrenuncio não admitiu que a mentira fosse uma condição das artes: — Quanto mais transparente é uma escrita, mais se vê a poesia.
A única coisa que não pôde interpretar foi o cheiro de cebola no suor da menina. Como desconhecia qualquer relação entre um cheiro determinado e a raiva, descartou-o como sintoma. Caridad del Cobre revelou mais tarde ao marquês que Sierva Maria se entregara em segredo às ciências dos escravos, que a faziam mastigar emplastro de manajá, e a trancavam nua na despensa de cebolas para afastar o malefício do cachorro.
Abrenuncio não suavizou o mais insignificante pormenor da raiva.
Os primeiros ataques são tanto mais graves e mais rápidos quanto mais profunda for a mordida e quanto mais perto estiver do cérebro — disse. Lembrou o caso de um paciente que morreu ao cabo de cinco anos, mas ficou a dúvida de que tivesse sofrido um contágio posterior, não advertido. A cicatrização rápida não queria dizer nada: depois de um tempo imprevisível, a cicatriz podia inchar, abrir-se de novo e supurar. A agonia chegava a ser tão espantosa que era melhor a morte. Só restava então apelar para o hospital do Amor de Deus, onde havia senegaleses hábeis no tratar de hereges e de energúmenos enfurecidos. A não ser assim, o marquês em pessoa teria de assumir a condenação de manter a menina amarrada à cama até morrer.
Na longa história da humanidade — concluiu — nenhum hidrófobo viveu para contar.
O marquês decidiu que não havia cruz, por pesada que fosse, que não estivesse disposto a carregar. De modo que a menina iria morrer em casa.
O médico o premiou com um olhar que mais parecia de compaixão que de respeito.
Não se podia esperar menos grandeza de sua parte, senhor — disse. — E não duvido que sua alma terá a têmpera necessária para suportar tudo.
Mais uma vez insistiu em que o prognóstico não era alarmante. A ferida estava longe da área de maior risco, e ninguém lembrava que tivesse sangrado. O mais provável era que Sierva María não contraísse raiva.
E enquanto isso? — perguntou o marquês.
Enquanto isso — disse Abrenuncio —, toquem música, encham a casa de flores, façam cantar os passarinhos, levem-na para ver o pôr-do-sol no mar, deem-lhe tudo o que possa fazê-la feliz. — Despediu-se rodando o chapéu no ar e com a frase latina de rigor. Mas dessa vez traduziu-a em homenagem ao marquês: — “Não há remédio que cure o que a felicidade não cura.”

Gabriel García Márquez, in Do Amor e Outros Demônios

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