[...]
A
cidade estava afundada em seu marasmo de séculos, mas não faltou
quem vislumbrasse o rosto macilento e os olhos fugazes do cavalheiro
incerto com seus tafetás de luto, cuja carruagem abandonou o recinto
amuralhado para atravessar o campo até o morro de São Lázaro. No
hospital, os leprosos jogados no chão de tijolos o viram entrar com
seus passos de morto e lhe barraram o caminho pedindo esmola. No
pavilhão dos furiosos sem remédio, amarrado a um poste, estava o
raivoso.
Era
um mulato velho, com a cabeça e a barba algodoadas. Já tinha metade
do corpo paralisada, mas a raiva infundira tanta força à outra
metade que precisaram amarrá-lo para não se despedaçar de encontro
à parede. Seu relato não deixava dúvida de que fora mordido pelo
mesmo cachorro cinzento de estrela na testa que mordera Sierva Maria.
E de fato o cão babara em cima dele, mas não na pele sã, e sim
numa ferida crônica que tinha na barriga da perna. Essa informação
não foi bastante para tranquilizar o marquês, que deixou o hospital
horrorizado com a visão do moribundo e em uma luz de esperança para
Sierva María.
Quando
voltava à cidade pela encosta do morro, encontrou um homem de boa
aparência sentado na pedra do caminho junto a seu cavalo morto. O
marquês mandou parar o coche, e só quando o homem ficou de pé,
reconheceu o licenciado Abrenuncio de Sá Pereira Cão, o médico
mais notável e discutido da cidade. Era igualzinho ao rei de paus.
Trazia
um chapéu de abas grandes para protegê-lo do sol, botas de montaria
e a capa negra dos libertos letrados. Cumprimentou o marquês com uma
cerimônia pouco usual.
— Benedictus
qui venit in nomine veritatis — disse.
O
coração do cavalo não resistiu ao descer pelo mesmo caminho que
subira a trote, e arrebentou.
Neptuno,
o cocheiro do marquês, quis desarrear o al, mas o dono o dissuadiu.
— Para
que vou querer arreio se não tenho a quem arrear — disse. —
Deixa apodrecer com ele.
O
cocheiro precisou ajudá-lo a subir na carruagem, dado o seu físico
pueril, e o marquês teve a atenção de fazê-lo sentar à sua
direita. Abrenuncio pensava no cavalo.
— É
como se a metade do meu corpo tivesse morrido — suspirou.
— Nada
é tão fácil de resolver quanto a morte de um cavalo — disse o
marquês.
Abrenuncio
animou-se.
— Esse
era diferente — disse. — Se eu tivesse recursos, mandava
enterrá-lo em terra sagrada. Olhou para o marquês à espera de sua
reação e concluiu: — Em outubro fez cem anos.
Não
há cavalo que viva tanto — disse o marquês.
— Posso
provar — disse o médico.
Trabalhava
às terças-feiras no Amor de Deus, assistindo aos leprosos doentes
de outros males. Tinha sido aluno ilustrado do licenciado João
Mendes Neto, outro português que emigrara para o Caribe por motivo
da perseguição na Espanha, e dele herdara a má fama de nigromante
e maldizente, mas ninguém punha em dúvida sua sabedoria. Eram
constantes e até sangrentas suas disputas com outros médicos, que
não lhe perdoavam os acertos inverossímeis nem os métodos
insólitos. Inventou uma pílula a ser tomada uma vez por ano que
melhorava o estado de saúde e prolongava a vida, mas causava tais
perturbações do juízo nos três primeiros dias que só ele se
arriscava a torná-la. Em outros tempos costumava tocar harpa à
cabeceira dos doentes para sedá-los com certa música adrede
composta. Não praticava a cirurgia, que sempre considerou uma arte
inferior, própria de curandeiros e barbeiros, e sua especialidade
aterradora era predizer para os enfermos o dia e a hora em que iam
morrer. Contudo, tanto a sua boa fama quanto a má se baseavam num
mesmo fato: dizia-se, e ninguém jamais o desmentiu, que tinha
ressuscitado um morto.
Apesar
de sua experiência, Abrenuncio estava comovido com o raivoso.
— O
corpo humano não foi feito para os anos que a pessoa é capaz de
viver — disse.
O
marquês não perdeu uma palavra de sua dissertação minuciosa e
colorida, e só falou quando o médico não teve mais nada a dizer.
— Que
se pode fazer com esse pobre homem? — perguntou.
— Matá-lo
— disse Abrenuncio.
O
marquês olhou-o surpreendido.
— Pelo
menos é o que faríamos se fôssemos bons cristãos — prosseguiu o
médico, impassível. E não se assuste, senhor: há mais cristãos
bons do que se crê.
Referia-se
na realidade aos cristãos pobres de qualquer cor, nos arrabaldes e
no campo, que tinham a coragem de misturar veneno na comida dos seus
parentes raivosos para evitar-lhes o horror dos últimos momentos. No
fim do século anterior uma família inteira tomou uma sopa
envenenada porque ninguém teve a coragem de envenenar sozinho um
menino de cinco anos.
— Acredita-se
que nós, médicos, não sabemos que essas coisas acontecem —
concluiu Abrenuncio.
— Não
há tal. O que nos falta é autoridade moral para assumi-las.
Em
vez disso, fazemos com os moribundos o que o senhor acaba de ver: os
encomendamos a Santo Huberto e amarramos a um poste para que possam
agonizar pior e por mais tempo.
— Não
há outro recurso? — perguntou o marquês.
— Depois
dos primeiros ataques de raiva não há recurso algum — disse o
médico. Falou de tratados alegres que consideravam curável a
doença, com base em diversas fórmulas: a hepática terrestre, o
cinábrio, o almíscar, o mercúrio argentino, o Anagallis flore
purpureo. Prosseguiu: — Tudo bobagens. O que se dá é que uns são
acometidos de raiva e outros não, e fica fácil dizer que estes
escaparam por causa do remédio. — Procurou com os olhos o marquês
e arrematou. — Por que tem tanto interesse? — Por piedade —
mentiu o marquês.
Contemplou
na janela o mar posto em letargo pelo tédio das quatro, e notou com
o coração oprimido que as andorinhas estavam de volta. A brisa
ainda não começara. Um grupo de meninos caçava a pedradas um
alcatraz; extraviado numa praia pantanosa, e o marquês o seguiu em
seu voo fugitivo até o ver perder-se entre as cúpulas cintilantes
da cidade fortificada.
A
carruagem entrou no recinto das muralhas pela porta de terra da Meia
Lua, e Abrenuncio guiou o cocheiro até a sua casa, através do
ruidoso bairro dos artesãos. Não foi fácil. Neptuno tinha mais de
setenta anos, era indeciso e míope, e estava habituado a que o
cavalo seguisse sozinho pelas ruas que conhecia melhor que ele.
Quando afinal deram com a casa, Abrenuncio se despediu na porta com
uma frase de Horácio.
Não
sei latim — desculpou-se o marquês Não é preciso — disse
Abrenuncio. E citou mesmo em latim.
O
marquês ficou tão impressionado que o seu primeiro ato ao voltar
para casa foi o mais extraordinário de sua vida. Ordenou que Neptuno
fosse ao morro de São Lázaro recolher o cavalo morto e o enterrasse
em terra sagrada, e que no dia seguinte bem cedo mandasse a
Abrenuncio o melhor cavalo de sua cocheira.
Depois
do alívio efêmero dos purgantes de antimônio, Bernarda se aplicava
lavagens até três vezes ao dia para sufocar o incêndio de suas
vísceras, ou afundava em banhos quentes com sabonetes perfumados até
seis vezes, para temperar os nervos, já nada lhe restava então do
que fora ao se casar, quando concebia aventuras comerciais que levava
à prática com uma certeza de adivinha, tais eram os seus sucessos,
até a malfadada tarde em que conheceu Judas Iscariote e foi
arrebatada pela desgraça.
Encontrou-o
por acaso num rodeio de feira lutando no braço, quase nu e sem
nenhuma proteção, contra um touro de lida. Era tão belo e corajoso
que não pôde esquecê-lo. Dias depois tornou a vê-lo num cumbé de
carnaval a que ela assistia fantasiada de mendiga e com máscara,
rodeada por suas escravas em trajes de marquesa, com gargantilhas,
pulseiras e brincos de ouro e pedras preciosas. Judas estava no
centro de uma roda de curiosos, dançando com quem lhe pagasse, e
fora preciso impor ordem para acalmar as ânsias das pretendentes.
Bernarda lhe perguntou quanto custava e ele respondeu dançando: —
Meio real.
Bernarda
tirou a máscara.
— O
que quero saber é quanto custas para toda a vida — disse.
Judas
viu que a cara descoberta não era de mendiga. Soltou seu par e
aproximou-se dela andando com meneios de grumete para se valorizar.
— Quinhentos
pesos ouro — disse.
Ela
o mediu com olho de avaliadora juramentada. Era enorme, com pele de
foca, torso bombeado, ancas estreitas e pernas espigadas e com mãos
plácidas que negavam o seu oficio. Bernarda calculou: — Medes oito
palmos.
— Mais
três polegadas — disse ele.
Ela
o fez baixar a cabeça para lhe examinar a dentadura, e ficou
perturbada com o hálito de amoníaco das suas axilas. Os dentes eram
perfeitos, sãos e bem-alinhados.
— Teu
senhor deve estar louco se acha que alguém vai te comprar a preço
de cavalo — disse Bernarda.
Sou
livre e me vendo eu mesmo — respondeu ele. E rematou com um tom
especial: — Senhora.
— Marquesa
— disse ela.
Ele
fez uma reverência de cortesão que a deixou sem fôlego.
Comprou-o
pela metade do que pedia. "Só pelo prazer da vista",
segundo disse. Em troca, respeitou-lhe a condição de livre e o
tempo para continuar com seu touro de circo. Instalou-o num quarto
próximo ao seu, que tinha sido do moço da cavalariça, e esperou-o
desde a primeira noite, nua e com a porta destrancada, certa de que
ele viria sem ser convidado. Mas teve de esperar duas semanas sem
dormir em paz, tantos eram os ardores do corpo.
Na
realidade, logo que soube quem era ela e viu a casa por dentro, ele
recuperou sua distância de escravo. Entretanto, quando Bernarda
deixou de esperá-lo e voltou a dormir de camisola, com a porta
trancada, ele entrou pela janela. Despertou-a o ar do quarto
rarefeito por seu fartum amoniacal. Sentiu o resfolegar de minotauro
procurando-a às apalpadelas no escuro, o fogaréu do corpo em cima
dela, as mãos de presa que agarraram a camisola à altura do pescoço
e a rasgaram de cima a baixo, enquanto lhe roncava ao ouvido: "Puta,
puta".
Desde
essa noite ela soube que não queria outra coisa na vida.
Ficou
louca por ele. Iam de noite aos bailes de lampião nos arrabaldes,
ele vestido de cavalheiro, com sobrecasaca e chapéu-coco que
Bernarda comprava obedecendo ao seu gosto, ela a princípio
fantasiada de qualquer coisa, e depois com a própria cara. Deu-lhe
um banho de ouro, com correntes, anéis e pulseiras, e o fez
incrustar diamantes nos dentes. Achou que ia morrer quando percebeu
que ele se deitava com todas as que encontrava em seu caminho, mas
afinal se acostumou às sobras. Foi por esse tempo em que Dominga de
Adviento entrou em seu dormitório à hora da sesta, pensando que
Bernarda estava no trapiche, e os surpreendeu pelados fazendo amor no
chão. A escrava, de mão na aldraba, ficou mais deslumbrada que
atônita.
— Não
fiques aí como uma morta — gritou Bernarda. — Ou vai embora ou
vem rolar aqui conosco.
Dominga
de Adviento fugiu com uma batida de porta que soou para Bernarda como
uma bofetada. Chamou-a aquela noite e a ameaçou com castigos atrozes
se fizesse o menor comentário sobre o que tinha visto.
— Não
se preocupe, minha branca — disse a escrava. — A senhora pode me
proibir o que quiser, e eu obedeço. — E concluiu: — Só não
pode proibir o que eu penso.
Se
o marquês soube, fez-se de desentendido. Afinal, Sierva María era a
única coisa que lhe restava em comum com a esposa, e não a
considerava como filha sua, mas só dela. Bernarda, por sua parte,
nem sequer pensava na menina. Tanto a esquecia que de regresso de uma
de suas longas temporadas no trapiche a confundiu com outra, tão
crescida e diferente estava. Chamou-a, examinou-a, interrogou-a sobre
sua vida, mas não lhe arrancou uma só palavra, És igual a teu pai
— disse-lhe. — Um monstro.
Esse
continuava sendo o estado de espírito de ambos no dia em que o
marquês voltou do hospital do Amor de Deus e anunciou a Bernarda sua
decisão de assumir com mão de guerra as rédeas da casa. Havia em
sua urgência algo frenético que deixou a mulher sem resposta.
A
primeira coisa que fez foi devolver à menina o quarto de dormir de
sua avó marquesa, de onde fora tirada para dormir com os escravos. O
esplendor de outrora permanecia intacto debaixo do pó: a cama
imperial que a criadagem pensava ser de ouro, tal o brilho de seus
cobres; o mosquiteiro de gazes de noiva, as ricas vestes de
passamanaria, o lavatório de alabastro com numerosos frascos de
perfumes e pomadas alinhados em ordem marcial sobre o toucador, o
urinol portátil, a escarradeira e o vomitório de porcelana, o mundo
de fantasia que a anciã imobilizada pelo reumatismo sonhava para a
filha que não teve e a neta que nunca viu.
Enquanto
as escravas ressuscitavam o dormitório, o marquês se ocupou em
ditar a sua lei na casa. Espantou os escravos que dormitavam à
sombra das arcadas e ameaçou com açoites e masmorra os que
tornassem a fazer suas necessidades pelos cantos ou jogassem
perde-ganha nos quartos fechados. Não eram disposições novas.
Tinham sido muito mais rigorosas quando Bernarda estava no comando e
Dominga de Adviento na vigilância, e o marquês alardeava em público
a sua sentença histórica.— "Na minha casa se faz o que eu
obedeço." Mas desde que Bernarda sucumbiu nos atoleiros do
cacau e Dominga de Adviento morreu, os escravos voltaram a se
infiltrar com grande sigilo, primeiro as mulheres com suas crias para
ajudar nos ofícios miúdos, depois os homens ociosos em busca da
fresca dos corredores. Apavorada com o fantasma da ruína, Bernarda
mandava-os arranjar comida mendigando na rua. Numa de suas crises,
resolveu alforriá-los, exceto três ou quatro do serviço doméstico,
mas o marquês se opôs com uma desrazão: — Se é para morrerem de
fome, melhor que morram aqui e não por esses cafundós.
Não
se ateve a fórmulas tão fáceis quando o cachorro mordeu Sierva
María. Investiu de poderes o escravo que lhe pareceu de mais
autoridade e maior confiança, dando instruções cuja severidade
espantou a própria Bernarda. Ao anoitecer, quando a casa estava pela
primeira vez em ordem desde a morte de Dominga de Adviento, encontrou
Sierva Maria no alojamento das escravas, com meia dúzia de jovens
negras que dormiam nas redes entrecruzadas em diferentes níveis.
Acordou
todas para dar as ordens do novo governo.
— A
partir de hoje, a menina vai morar na casa — disse. — E saibam
aqui e em todo o reino que ela só tem uma família, e de gente
branca.
A
menina resistiu quando ele quis levá-la nos braços para o quarto de
dormir, e foi preciso fazê-la entender que uma ordem de homens
reinava no mundo já no quarto da avó, enquanto o saiote de algodão
das escravas era trocado por uma camisola de dormir, dela não se
arrancou uma palavra sequer. Bernarda os viu da porta: o marquês
sentado na cama, pelejando com os botões da camisola que não
passavam pelas casas novas, e a menina de pé diante dele, olhando-o
impassível. Bernarda não se conteve.
— Por
que não se casam? — zombou: — Não seria mau negócio parir
marquesinhas crioulas com patas de galinha para vender nos circos.
[…]
Gabriel García Márquez, in Do Amor e Outros Demônios
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