sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Do Amor e Outros Demônios | Capítulo Um

 


[...]
A cidade estava afundada em seu marasmo de séculos, mas não faltou quem vislumbrasse o rosto macilento e os olhos fugazes do cavalheiro incerto com seus tafetás de luto, cuja carruagem abandonou o recinto amuralhado para atravessar o campo até o morro de São Lázaro. No hospital, os leprosos jogados no chão de tijolos o viram entrar com seus passos de morto e lhe barraram o caminho pedindo esmola. No pavilhão dos furiosos sem remédio, amarrado a um poste, estava o raivoso.
Era um mulato velho, com a cabeça e a barba algodoadas. Já tinha metade do corpo paralisada, mas a raiva infundira tanta força à outra metade que precisaram amarrá-lo para não se despedaçar de encontro à parede. Seu relato não deixava dúvida de que fora mordido pelo mesmo cachorro cinzento de estrela na testa que mordera Sierva Maria. E de fato o cão babara em cima dele, mas não na pele sã, e sim numa ferida crônica que tinha na barriga da perna. Essa informação não foi bastante para tranquilizar o marquês, que deixou o hospital horrorizado com a visão do moribundo e em uma luz de esperança para Sierva María.
Quando voltava à cidade pela encosta do morro, encontrou um homem de boa aparência sentado na pedra do caminho junto a seu cavalo morto. O marquês mandou parar o coche, e só quando o homem ficou de pé, reconheceu o licenciado Abrenuncio de Sá Pereira Cão, o médico mais notável e discutido da cidade. Era igualzinho ao rei de paus.
Trazia um chapéu de abas grandes para protegê-lo do sol, botas de montaria e a capa negra dos libertos letrados. Cumprimentou o marquês com uma cerimônia pouco usual.
Benedictus qui venit in nomine veritatis — disse.
O coração do cavalo não resistiu ao descer pelo mesmo caminho que subira a trote, e arrebentou.
Neptuno, o cocheiro do marquês, quis desarrear o al, mas o dono o dissuadiu.
Para que vou querer arreio se não tenho a quem arrear — disse. — Deixa apodrecer com ele.
O cocheiro precisou ajudá-lo a subir na carruagem, dado o seu físico pueril, e o marquês teve a atenção de fazê-lo sentar à sua direita. Abrenuncio pensava no cavalo.
É como se a metade do meu corpo tivesse morrido — suspirou.
Nada é tão fácil de resolver quanto a morte de um cavalo — disse o marquês.
Abrenuncio animou-se.
Esse era diferente — disse. — Se eu tivesse recursos, mandava enterrá-lo em terra sagrada. Olhou para o marquês à espera de sua reação e concluiu: — Em outubro fez cem anos.
Não há cavalo que viva tanto — disse o marquês.
Posso provar — disse o médico.
Trabalhava às terças-feiras no Amor de Deus, assistindo aos leprosos doentes de outros males. Tinha sido aluno ilustrado do licenciado João Mendes Neto, outro português que emigrara para o Caribe por motivo da perseguição na Espanha, e dele herdara a má fama de nigromante e maldizente, mas ninguém punha em dúvida sua sabedoria. Eram constantes e até sangrentas suas disputas com outros médicos, que não lhe perdoavam os acertos inverossímeis nem os métodos insólitos. Inventou uma pílula a ser tomada uma vez por ano que melhorava o estado de saúde e prolongava a vida, mas causava tais perturbações do juízo nos três primeiros dias que só ele se arriscava a torná-la. Em outros tempos costumava tocar harpa à cabeceira dos doentes para sedá-los com certa música adrede composta. Não praticava a cirurgia, que sempre considerou uma arte inferior, própria de curandeiros e barbeiros, e sua especialidade aterradora era predizer para os enfermos o dia e a hora em que iam morrer. Contudo, tanto a sua boa fama quanto a má se baseavam num mesmo fato: dizia-se, e ninguém jamais o desmentiu, que tinha ressuscitado um morto.
Apesar de sua experiência, Abrenuncio estava comovido com o raivoso.
O corpo humano não foi feito para os anos que a pessoa é capaz de viver — disse.
O marquês não perdeu uma palavra de sua dissertação minuciosa e colorida, e só falou quando o médico não teve mais nada a dizer.
Que se pode fazer com esse pobre homem? — perguntou.
Matá-lo — disse Abrenuncio.
O marquês olhou-o surpreendido.
Pelo menos é o que faríamos se fôssemos bons cristãos — prosseguiu o médico, impassível. E não se assuste, senhor: há mais cristãos bons do que se crê.
Referia-se na realidade aos cristãos pobres de qualquer cor, nos arrabaldes e no campo, que tinham a coragem de misturar veneno na comida dos seus parentes raivosos para evitar-lhes o horror dos últimos momentos. No fim do século anterior uma família inteira tomou uma sopa envenenada porque ninguém teve a coragem de envenenar sozinho um menino de cinco anos.
Acredita-se que nós, médicos, não sabemos que essas coisas acontecem — concluiu Abrenuncio.
Não há tal. O que nos falta é autoridade moral para assumi-las.
Em vez disso, fazemos com os moribundos o que o senhor acaba de ver: os encomendamos a Santo Huberto e amarramos a um poste para que possam agonizar pior e por mais tempo.
Não há outro recurso? — perguntou o marquês.
Depois dos primeiros ataques de raiva não há recurso algum — disse o médico. Falou de tratados alegres que consideravam curável a doença, com base em diversas fórmulas: a hepática terrestre, o cinábrio, o almíscar, o mercúrio argentino, o Anagallis flore purpureo. Prosseguiu: — Tudo bobagens. O que se dá é que uns são acometidos de raiva e outros não, e fica fácil dizer que estes escaparam por causa do remédio. — Procurou com os olhos o marquês e arrematou. — Por que tem tanto interesse? — Por piedade — mentiu o marquês.
Contemplou na janela o mar posto em letargo pelo tédio das quatro, e notou com o coração oprimido que as andorinhas estavam de volta. A brisa ainda não começara. Um grupo de meninos caçava a pedradas um alcatraz; extraviado numa praia pantanosa, e o marquês o seguiu em seu voo fugitivo até o ver perder-se entre as cúpulas cintilantes da cidade fortificada.
A carruagem entrou no recinto das muralhas pela porta de terra da Meia Lua, e Abrenuncio guiou o cocheiro até a sua casa, através do ruidoso bairro dos artesãos. Não foi fácil. Neptuno tinha mais de setenta anos, era indeciso e míope, e estava habituado a que o cavalo seguisse sozinho pelas ruas que conhecia melhor que ele. Quando afinal deram com a casa, Abrenuncio se despediu na porta com uma frase de Horácio.
Não sei latim — desculpou-se o marquês Não é preciso — disse Abrenuncio. E citou mesmo em latim.
O marquês ficou tão impressionado que o seu primeiro ato ao voltar para casa foi o mais extraordinário de sua vida. Ordenou que Neptuno fosse ao morro de São Lázaro recolher o cavalo morto e o enterrasse em terra sagrada, e que no dia seguinte bem cedo mandasse a Abrenuncio o melhor cavalo de sua cocheira.
Depois do alívio efêmero dos purgantes de antimônio, Bernarda se aplicava lavagens até três vezes ao dia para sufocar o incêndio de suas vísceras, ou afundava em banhos quentes com sabonetes perfumados até seis vezes, para temperar os nervos, já nada lhe restava então do que fora ao se casar, quando concebia aventuras comerciais que levava à prática com uma certeza de adivinha, tais eram os seus sucessos, até a malfadada tarde em que conheceu Judas Iscariote e foi arrebatada pela desgraça.
Encontrou-o por acaso num rodeio de feira lutando no braço, quase nu e sem nenhuma proteção, contra um touro de lida. Era tão belo e corajoso que não pôde esquecê-lo. Dias depois tornou a vê-lo num cumbé de carnaval a que ela assistia fantasiada de mendiga e com máscara, rodeada por suas escravas em trajes de marquesa, com gargantilhas, pulseiras e brincos de ouro e pedras preciosas. Judas estava no centro de uma roda de curiosos, dançando com quem lhe pagasse, e fora preciso impor ordem para acalmar as ânsias das pretendentes. Bernarda lhe perguntou quanto custava e ele respondeu dançando: — Meio real.
Bernarda tirou a máscara.
O que quero saber é quanto custas para toda a vida — disse.
Judas viu que a cara descoberta não era de mendiga. Soltou seu par e aproximou-se dela andando com meneios de grumete para se valorizar.
Quinhentos pesos ouro — disse.
Ela o mediu com olho de avaliadora juramentada. Era enorme, com pele de foca, torso bombeado, ancas estreitas e pernas espigadas e com mãos plácidas que negavam o seu oficio. Bernarda calculou: — Medes oito palmos.
Mais três polegadas — disse ele.
Ela o fez baixar a cabeça para lhe examinar a dentadura, e ficou perturbada com o hálito de amoníaco das suas axilas. Os dentes eram perfeitos, sãos e bem-alinhados.
Teu senhor deve estar louco se acha que alguém vai te comprar a preço de cavalo — disse Bernarda.
Sou livre e me vendo eu mesmo — respondeu ele. E rematou com um tom especial: — Senhora.
Marquesa — disse ela.
Ele fez uma reverência de cortesão que a deixou sem fôlego.
Comprou-o pela metade do que pedia. "Só pelo prazer da vista", segundo disse. Em troca, respeitou-lhe a condição de livre e o tempo para continuar com seu touro de circo. Instalou-o num quarto próximo ao seu, que tinha sido do moço da cavalariça, e esperou-o desde a primeira noite, nua e com a porta destrancada, certa de que ele viria sem ser convidado. Mas teve de esperar duas semanas sem dormir em paz, tantos eram os ardores do corpo.
Na realidade, logo que soube quem era ela e viu a casa por dentro, ele recuperou sua distância de escravo. Entretanto, quando Bernarda deixou de esperá-lo e voltou a dormir de camisola, com a porta trancada, ele entrou pela janela. Despertou-a o ar do quarto rarefeito por seu fartum amoniacal. Sentiu o resfolegar de minotauro procurando-a às apalpadelas no escuro, o fogaréu do corpo em cima dela, as mãos de presa que agarraram a camisola à altura do pescoço e a rasgaram de cima a baixo, enquanto lhe roncava ao ouvido: "Puta, puta".
Desde essa noite ela soube que não queria outra coisa na vida.
Ficou louca por ele. Iam de noite aos bailes de lampião nos arrabaldes, ele vestido de cavalheiro, com sobrecasaca e chapéu-coco que Bernarda comprava obedecendo ao seu gosto, ela a princípio fantasiada de qualquer coisa, e depois com a própria cara. Deu-lhe um banho de ouro, com correntes, anéis e pulseiras, e o fez incrustar diamantes nos dentes. Achou que ia morrer quando percebeu que ele se deitava com todas as que encontrava em seu caminho, mas afinal se acostumou às sobras. Foi por esse tempo em que Dominga de Adviento entrou em seu dormitório à hora da sesta, pensando que Bernarda estava no trapiche, e os surpreendeu pelados fazendo amor no chão. A escrava, de mão na aldraba, ficou mais deslumbrada que atônita.
Não fiques aí como uma morta — gritou Bernarda. — Ou vai embora ou vem rolar aqui conosco.
Dominga de Adviento fugiu com uma batida de porta que soou para Bernarda como uma bofetada. Chamou-a aquela noite e a ameaçou com castigos atrozes se fizesse o menor comentário sobre o que tinha visto.
Não se preocupe, minha branca — disse a escrava. — A senhora pode me proibir o que quiser, e eu obedeço. — E concluiu: — Só não pode proibir o que eu penso.
Se o marquês soube, fez-se de desentendido. Afinal, Sierva María era a única coisa que lhe restava em comum com a esposa, e não a considerava como filha sua, mas só dela. Bernarda, por sua parte, nem sequer pensava na menina. Tanto a esquecia que de regresso de uma de suas longas temporadas no trapiche a confundiu com outra, tão crescida e diferente estava. Chamou-a, examinou-a, interrogou-a sobre sua vida, mas não lhe arrancou uma só palavra, És igual a teu pai — disse-lhe. — Um monstro.
Esse continuava sendo o estado de espírito de ambos no dia em que o marquês voltou do hospital do Amor de Deus e anunciou a Bernarda sua decisão de assumir com mão de guerra as rédeas da casa. Havia em sua urgência algo frenético que deixou a mulher sem resposta.
A primeira coisa que fez foi devolver à menina o quarto de dormir de sua avó marquesa, de onde fora tirada para dormir com os escravos. O esplendor de outrora permanecia intacto debaixo do pó: a cama imperial que a criadagem pensava ser de ouro, tal o brilho de seus cobres; o mosquiteiro de gazes de noiva, as ricas vestes de passamanaria, o lavatório de alabastro com numerosos frascos de perfumes e pomadas alinhados em ordem marcial sobre o toucador, o urinol portátil, a escarradeira e o vomitório de porcelana, o mundo de fantasia que a anciã imobilizada pelo reumatismo sonhava para a filha que não teve e a neta que nunca viu.
Enquanto as escravas ressuscitavam o dormitório, o marquês se ocupou em ditar a sua lei na casa. Espantou os escravos que dormitavam à sombra das arcadas e ameaçou com açoites e masmorra os que tornassem a fazer suas necessidades pelos cantos ou jogassem perde-ganha nos quartos fechados. Não eram disposições novas. Tinham sido muito mais rigorosas quando Bernarda estava no comando e Dominga de Adviento na vigilância, e o marquês alardeava em público a sua sentença histórica.— "Na minha casa se faz o que eu obedeço." Mas desde que Bernarda sucumbiu nos atoleiros do cacau e Dominga de Adviento morreu, os escravos voltaram a se infiltrar com grande sigilo, primeiro as mulheres com suas crias para ajudar nos ofícios miúdos, depois os homens ociosos em busca da fresca dos corredores. Apavorada com o fantasma da ruína, Bernarda mandava-os arranjar comida mendigando na rua. Numa de suas crises, resolveu alforriá-los, exceto três ou quatro do serviço doméstico, mas o marquês se opôs com uma desrazão: — Se é para morrerem de fome, melhor que morram aqui e não por esses cafundós.
Não se ateve a fórmulas tão fáceis quando o cachorro mordeu Sierva María. Investiu de poderes o escravo que lhe pareceu de mais autoridade e maior confiança, dando instruções cuja severidade espantou a própria Bernarda. Ao anoitecer, quando a casa estava pela primeira vez em ordem desde a morte de Dominga de Adviento, encontrou Sierva Maria no alojamento das escravas, com meia dúzia de jovens negras que dormiam nas redes entrecruzadas em diferentes níveis.
Acordou todas para dar as ordens do novo governo.
A partir de hoje, a menina vai morar na casa — disse. — E saibam aqui e em todo o reino que ela só tem uma família, e de gente branca.
A menina resistiu quando ele quis levá-la nos braços para o quarto de dormir, e foi preciso fazê-la entender que uma ordem de homens reinava no mundo já no quarto da avó, enquanto o saiote de algodão das escravas era trocado por uma camisola de dormir, dela não se arrancou uma palavra sequer. Bernarda os viu da porta: o marquês sentado na cama, pelejando com os botões da camisola que não passavam pelas casas novas, e a menina de pé diante dele, olhando-o impassível. Bernarda não se conteve.
Por que não se casam? — zombou: — Não seria mau negócio parir marquesinhas crioulas com patas de galinha para vender nos circos.
[…]

Gabriel García Márquez, in Do Amor e Outros Demônios

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