sábado, 3 de fevereiro de 2024

As rãs | Parte III


2.

Soube pelo meu pai que, depois de levar aquela tesourada da minha sogra, minha tia se viu às voltas com uma ferida infeccionada e uma febre que não cedia. Mesmo assim, ela comandou a busca e apreensão de Wang Vesícula. Busca e apreensão talvez não sejam os termos apropriados, mas era o que acontecia na prática.
O portão da casa de Wang Vesícula estava bem fechado, não se ouvia barulho nenhum, nem de galinha nem de cachorro. Sua tia mandou arrombarem o cadeado de ferro para entrar no pátio”, meu pai contou. “Ela com certeza já estava sabendo de alguma coisa. Entrou mancando pela sala dos Wang, levantou a tampa da panela, viu um resto de canja ali dentro, esticou a mão para sentir a temperatura, ainda estava morna. Então ela gritou com um riso maligno: ‘Chen Nariz, Wang Vesícula, vocês vão sair daí por conta própria? Ou vão me fazer desentocar vocês como se fossem ratos?’.” De dentro do quarto não vinha nem um pio. Sua tia apontou para o armário no canto. Dentro tinha algumas roupas velhas. Mandou tirar tudo até aparecer o fundo do armário. Então ela catou um rolo de abrir massa e bateu forte na tábua do fundo, tum-tum-tum, até que apareceu a entrada de um buraco. Sua tia disse: ‘Podem sair daí, heróis da guerrilha. Ou será que ainda vamos precisar encher de água?’.
A primeira a sair foi Chen Orelha, a filha do casal. A menininha saiu com o rosto rajado de poeira cinza e branca, parecendo um diabinho de templo. Ao invés de chorar, mostrou os dentes numa risadinha, ‘hehe’. Em seguida foi a vez de Chen Nariz rastejar para fora, barbudo, de cabelo encarapinhado, vestindo uma camiseta furada que deixava à mostra os pelos louros do peito. Sua aparência era de dar pena. Assim que saiu da toca, aquele homenzarrão desabou de joelhos na frente da sua tia e começou a bater com a testa no chão sem parar, tum-tum-tum.” Meu pai conta que o choro de Chen Nariz sacudiu a aldeia inteira.
Tia, tiazinha querida, eu fui a primeira criança a nascer pelas suas mãos, Wang Vesícula é só meia porção de gente, por caridade, tia, nos poupe… Minha família há de se lembrar de sua bondade pelo resto dos tempos…”
Segundo as pessoas presentes, sua tia disse a ele com lágrimas nos olhos: “Ah, Chen Nariz, não sou eu que decido. Por mim, poderia fazer o que quisesse. Se quisesse a minha mão, eu cortava para te dar!”.
Tia, tenha misericórdia…”
Esperta, a filha de Chen Nariz imitou o pai e ficou de joelhos, batia a testinha no chão e dizia:
Misericórdia, misericórdia…”
Nisso”, continuou meu pai, em meio às pessoas que assistiam à cena do pátio, “Cinco Sentidos começou a cantarolar aquela música do filme Guerra de túneis: ‘A guerra de túneis, ei, a guerra de túneis, milhões de valentes soldados à espreita… Pela planície infinita avança a guerra de túneis, o inimigo teima em resistir, mas será aniquilado…’.
A tia enxugou o rosto, sua expressão mudou de repente: ‘Já chega, Chen Nariz, mande Wang Vesícula sair logo!’.
Chen Nariz avançou de joelhos e abraçou uma perna da sua tia. Chen Orelha imitou o pai e abraçou a outra perna.
Nesse momento, Cinco Sentidos voltou a cantarolar no pátio: ‘Pela planície infinita avança a guerra de túneis… se ousa entrar o invasor… sofrerá uma derrota arrasadora… vasectomia para todos… controle de natalidade para todos…’.
Sua tia quis se esquivar, mas Chen Nariz e Orelha estavam firmemente agarrados a ela.
Percebendo alguma coisa, ela ordenou a seus subordinados: ‘Desçam no buraco!’.
Um miliciano desceu com uma lanterna na boca.
Outro miliciano o seguiu.
Uma voz falou lá de dentro: ‘Não tem ninguém aqui!’.
Sua tia teve um ataque de nervos e caiu desmaiada.
Chen Nariz é um sujeito bem ardiloso”, meu pai disse, “sabe aquela horta nos fundos da casa dele? Ali tem um poço com uma roldana, o túnel ia dar dentro desse poço. Ninguém sabe como ele conseguiu terminar uma empreitada dessa grandeza. E ninguém sabe para onde levou tudo aquilo de terra. Aproveitando que Chen Nariz e a filha estavam agarrados às pernas da tia, Wang Vesícula engatinhou até a saída e subiu puxando a corda da roldana. Deve ter sido muito difícil para ela, pequenina daquele jeito, carregando um barrigão, sair de dentro de um poço fundo puxando uma corda.
Amparada por outras pessoas, sua tia foi até o poço. Furiosa, batia o pé no chão e gritava: ‘Como pude ser tão burra? Como pude ser tão burra? Meu pai comandou a escavação de um túnel desses no Hospital Xihai!’.
Sua tia saiu de lá carregada por outras pessoas, foi internada no hospital. Ela pegou a mesma infecção que teve o dr. Bethune e quase morreu. Mas, como foi sempre tão leal e dedicada ao Partido Comunista, o Partido não a abandonou nessa hora. Dizem que usaram os remédios mais caros para salvá-la.
Passou duas semanas internada, a ferida nem tinha fechado e ela fugiu do hospital. Estava cismada! Falava que não podia comer nem dormir enquanto não tirasse a criança da barriga de Wang Vesícula. Será que alguém que leva o senso de responsabilidade a esse ponto ainda pode ser considerado gente? Aí já virou um deus ou um demônio”, suspirou meu pai.
Chen Nariz e a filha ficaram presos na comuna. Dizem que ele foi torturado, mas é boato. Os funcionários da aldeia que foram visitar contaram que só estavam trancados num quarto com cama, cobertores, uma garrafa térmica e duas canecas; recebiam comida e água. A comida era a mesma dos funcionários da comuna: pãozinho no vapor, canja de painço e mais um prato quente. Pai e filha ficaram mais brancos, engordaram. Claro que não comiam de graça, era pago. Chen Nariz ficou rico com os negócios, tinha dinheiro. A comuna combinou com o banco e sacou tudo o que ele tinha em conta, eram trinta e oito mil iuanes! Enquanto sua tia estava no hospital, a comuna mandou uma força-tarefa à aldeia, fizeram uma assembleia e anunciaram a decisão: todos os aldeões que estivessem em condições de andar deveriam sair em busca de Wang Vesícula. Cada pessoa receberia uma gratificação de cinco iuanes por dia, pagos com o dinheiro de Chen Nariz. Tinha gente que não queria ir, achava que não era um ganho honesto. Mas ninguém podia deixar de ir, quem não fosse teria de pagar cinco iuanes; com isso todo mundo logo saiu à procura dela. Eram nada menos de setecentos habitantes na aldeia, no primeiro dia saíram mais de trezentos, à noite voltaram para receber a ‘gratificação’, e lá se foram mais de mil e oitocentos iuanes. A comuna disse ainda que quem encontrasse Wang Vesícula e a trouxesse de volta receberia duzentos iuanes de recompensa; quem desse uma pista que levasse a sua captura receberia cem. Daí a aldeia inteira enlouqueceu, tinha gente que até batia palmas de animação, mas também tinha gente que tentava esconder o desgosto. Eu sabia que algumas pessoas queriam mesmo pôr a mão naquela recompensa de cem ou duzentos iuanes, mas a grande maioria não estava procurando de verdade, davam umas voltas pela plantação gritando: ‘Wang Vesícula, apareça! Se não aparecer vão acabar com o dinheiro da sua família!’. E depois de gritar por algum tempo, iam trabalhar cada qual em sua terra. À noite, naturalmente, deviam ir receber a gratificação, do contrário tinham de pagar multa.”
E não acharam?”, perguntei.
Achar onde? A essa hora já deve estar longe”, disse meu pai.
Pequenina daquele jeito, avançando dois palmos a cada passo, ainda mais com aquele barrigão, será que pode ter ido longe? Para mim, deve estar escondida na aldeia mesmo. Será que ainda está na casa da mãe dela?”, falei, abaixando a voz.
E você acha que ninguém pensou nisso?”, respondeu meu pai. “Aquela gente da comuna é muito esperta, só faltou cavoucarem o chão da casa de Wang Pé, abriram até o kang achando que Wang Vesícula podia estar ali dentro. Acho que ninguém nesta aldeia ousaria esconder o paradeiro dela, a multa é de três mil iuanes.”
Será que ela entrou em desespero? Foram olhar no rio? Num poço?”
Você está subestimando aquela menina! É mais esperta que todo mundo desta aldeia junto. Ela não desiste por nada.”
E é mesmo. Lembrei-me do seu rostinho faceiro e de sua expressão ora de astúcia, ora de teimosia e disse, preocupado: “Ela já deve estar de sete meses, não é?”.
Por isso é que sua tia tem pressa! Como ela mesma diz, enquanto não sair da ‘boca da panela’ é só um pedaço de carne, se precisar raspar, então raspa, se precisar tirar, então tira; mas depois que saiu da ‘boca da panela’ é gente, pode até faltar um braço ou uma perna, mas é gente, e se é gente está sob a proteção das leis do país.”
A imagem de Wang Vesícula voltou a aparecer na minha mente: com seus setenta centímetros de altura, carrega uma barriga enorme, ergue a cabeça delicada, move as perninhas finas e curtas com uma grande trouxa de pano pendurada no braço, foge aos tropeços por uma trilha desolada e espinhosa. Na fuga, olha para trás, tropeça e cai, levanta-se e continua a correr… Ou então, numa tina de madeira levada pelo rio caudaloso, rema ofegante com uma tábua de misturar pasta de soja.

Mo Yan, in As rãs

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