Como
era de se esperar em uma residência de meninos e rapazes, quando um
de nós partia, quase não se falava sobre o assunto. Apenas
acontecia.
Tommy
sabia.
A
mula, idem.
Clay
passara a noite nas Cercanias outra vez e acordara domingo de manhã
com a caixa ainda nas mãos.
Ele
se sentou e releu a carta.
Pegou
o isqueiro e o El Matador no quinto.
***
Ao
chegar em casa, guardou na caixa o endereço remendado do Assassino,
empurrou-a bem fundo debaixo da cama e foi fazer seus abdominais em
silêncio, no carpete.
Lá
pela metade, Tommy apareceu. Clay enxergava o irmão a cada vez que
voltava ao chão. O pombo, Tetê, estava encarapitado no ombro do
garoto, e uma leve brisa agitava os pôsteres de Henry, a maioria de
músicos das antigas. Algumas atrizes, jovens e exuberantes.
— Clay
— chamou Tommy, surgindo em seu campo de visão. — Depois você
me ajuda com os cascos dele?
Ele
acabou o exercício e foi com o irmão para o quintal, onde
encontraram Aquiles perto do varal. Clay se aproximou e estendeu ao
bicho a palma da mão aberta com um torrão de açúcar, depois se
abaixou e cutucou uma pata.
O
primeiro casco subiu; limpo.
Depois
o segundo.
Ao
fim da limpeza, Tommy estava machucado, como sempre, mas não havia
nada que Clay pudesse fazer. Mulas não mudam de opinião com muita
facilidade.
Para
animá-lo, Clay pegou mais dois cubinhos brancos de açúcar.
Estendeu
um para Tommy.
A
manhã transbordava no quintal.
Um
pufe vazio e murcho estava largado no chão, uma bicicleta sem guidão
jazia na grama e o varal permanecia ali, estático, parado ao sol.
Aurora
chegou logo depois, saindo da casinha que tinham construído para
Aquiles nos fundos da casa, indo até o varal e correndo em volta
dele, enquanto o açúcar derretia na boca dos meninos.
Já
quase no fim, Tommy soltou:
— Quem
é que vai me ajudar a fazer isso quando você for embora?
Então
Clay fez algo que nem ele esperava:
Segurou
Tommy pela camisa e o jogou no lombo de Aquiles, sem sela.
— Merda!
Tommy
levou um susto e tanto, mas na mesma hora se entregou ao momento e
abraçou a mula, risonho.
***
Após
o almoço, Clay estava prestes a sair de casa quando Henry o deteve.
— Aonde
você pensa que vai?
Uma
breve pausa.
— Ao
cemitério. Talvez Bernborough.
— Espera
aí — pediu Henry, pegando as chaves. — Vou contigo.
Quando
chegaram lá, pularam a cerca e caminharam por entre os túmulos.
Eles procuraram eles acharam eles se agacharam eles se levantaram
eles cruzaram os braços eles se voltaram para o sol vespertino; eles
observaram os restos mortais das tulipas.
— Nada
de margaridas?
Esboçaram
uma risada.
— Ei,
Clay.
Ambos
estavam encurvados e tensos, e Clay se virou para o irmão; Henry
estava cordial como sempre, mas de uma forma diferente, seu olhar
vagando pelas estátuas.
A
princípio, ele só disse:
— Meu
Deus. — Um longo silêncio. — Meu Deus, Clay. — E então tirou
algo do bolso. — Toma.
De
uma mão para outra:
Um
belo maço de notas.
— Leva.
— Clay olhou mais de perto. — É seu, Clay. Sabe as apostas em
Bernborough? Você não tem noção de quanto dinheiro ganhamos. E eu
nunca te paguei.
Mas
não, ali não tinha dinheiro só das apostas, era mais do que isso,
um peso de papel feito de notas.
— Henry...
— Anda,
pega.
Quando
Clay segurou e apertou o bolo, ficou ainda mais chocado com o volume.
Não era como o Zippo, mais pesado do que aparentava; aquilo pareceu
afundar na mão dele.
— Clay
— disse Henry. — Ei, Clay — continuou, encarando o irmão bem
no fundo dos olhos. — Por que você não faz que nem qualquer
pessoa normal e compra a merda de um celular, hein? Que tal? Aí você
avisa pra gente quando chegar lá.
E
Clay, com um sorriso de desdém:
Não,
Henry, não precisa.
— Então
tá, gasta até o último centavo naquela merda de ponte. — O mais
matreiro dos sorrisos. — Só me traz o troco quando terminar.
***
Em
Bernborough, Clay deu algumas voltas e, ao contornar o que restara da
gaiola de proteção para lançamento de disco, teve uma bela
surpresa — pois ali, na marca dos trezentos metros, estava Rory.
Clay
parou, pousando as mãos nos quadríceps.
Rory
o observava com seus olhos de sucata.
Clay
não ergueu o olhar, mas sorriu.
Longe
de estar com raiva ou sentindo-se traído, Rory gravitava em algum
lugar entre a empolgação com a violência vindoura e uma
compreensão perfeita da mente do irmão.
— Tenho
que admitir, garoto... Você tem coragem.
Clay
ergueu o rosto, o corpo empertigado, mas a princípio manteve-se
calado enquanto Rory prosseguia.
— Você
pode ficar fora três dias ou três anos... Mas sabe que o Matthew
vai te matar, né? Quando você voltar.
Um
aceno de cabeça.
— Vai
estar preparado para ele?
— Não.
— Quer
se preparar?
Ele
pensou a respeito
— Ou
talvez você nunca volte.
Clay
espumou de raiva por dentro.
— Eu
vou voltar — disse ele, enfático. — Vou sentir falta dessas
nossas conversas existenciais.
Rory
sorriu.
— Tá
bom, mas olha... — Esfregou as mãos. — Quer treinar um pouco?
Acha que eu pegava pesado aqui? O Matthew está em outra categoria.
— Não
precisa, Rory.
— Você
não vai aguentar nem quinze segundos.
— Mas
eu sei muito bem como apanhar.
Rory,
um passo mais perto.
— Disso
eu sei, mas posso te mostrar, pelo menos, como durar um pouquinho
mais.
Clay
olhou para ele, bem para o pomo de adão.
— Não
se preocupe, agora é tarde demais.
Rory
sabia melhor do que ninguém — Clay já estava pronto; tinha
passado a vida inteira treinando para aquele momento, e eu podia
matá-lo à vontade.
Clay
simplesmente se recusava a morrer.
***
Quando
ele voltou para casa, dinheiro na mão, eu estava assistindo ao
primeiro Mad Max — pouco sombrio ou quer mais? Tommy estava comigo,
mas começou a implorar para vermos outra coisa.
— A
gente não pode mesmo ver uma coisa que não seja dos anos 1980?
— Já
estamos vendo — respondi. — Esse filme é de 1979.
— É
disso que eu tô falando! Não vale nada dos anos 1980 ou de antes! A
gente nem pensava em nascer nessa época! Então por que a gente
não...
— Você
sabe por quê — cortei. Então vi a expressão no rosto dele, e o
garoto estava prestes a chorar... — Ah, merda... Desculpa, Tommy,
de verdade.
— Mentiroso!
Ele
tinha razão, eu não sentia muito coisa nenhuma; aquilo fazia parte
de ser um Dunbar.
Quando
Tommy saiu, Clay entrou. Já tinha guardado o dinheiro na caixa e se
sentou no sofá.
— Oi
— disse, se virando para mim.
Não
me dei ao trabalho de desviar o olhar da tela. Não queria papo.
— Ainda
tem o endereço?
Ele
assentiu, e ficamos assistindo a Mad Max.
— Anos
1980 de novo?
— Nem
começa.
Ficamos
em silêncio até a parte em que o assustador líder da gangue fala:
“E Cundalini quer a mão de volta!”, então olhei para meu irmão.
— Ele
tá falando sério, não tá? — comentei.
Clay
sorriu, mas não reagiu.
Nós
também estamos.
***
À
noite, quando todo mundo já estava na cama, com a TV ligada no mudo,
Clay olhou para Agamenon, o peixinho-dourado, que retribuiu o olhar
com tranquilidade antes de dar mais uma cabeçada vigorosa no
aquário.
Clay
foi até a gaiola e, de supetão, pegou o pombo. Apertou-o entre as
mãos, mas com delicadeza.
— E
aí, Tetê, beleza?
O
pássaro balançou um pouco a cabeça, e, pela plumagem, Clay sentiu
sua respiração, as palpitações de seu coração.
— Quietinho,
garoto, quietinho...
Então,
de repente, arrancou uma pena miúda do pescoço do pássaro; cinza,
com uma borda esverdeada, singela, na palma da mão esquerda.
Pôs
o pássaro de volta na gaiola.
O
pombo ficou olhando para ele com um semblante sério, então se pôs
a andar de um lado para outro.
***
Depois
disso vieram as prateleiras e os jogos de tabuleiro:
Jogo
da Vida, Palavras Cruzadas, Lig 4.
Logo
abaixo estava o que ele queria.
Clay
abriu o jogo e ficou momentaneamente distraído pelo filme na TV.
Parecia bom — preto e branco, uma moça discutindo com um homem em
uma lanchonete —, mas logo se voltou aos tesouros do Monopoly.
Mexeu no dado e nos hotéis até encontrar a bolsinha que estava
procurando e, pouco depois, entre seus dedos, estava o ferro de
passar.
Clay,
o sorridente, sorriu.
***
Perto
da meia-noite, foi mais fácil do que poderia ter sido; o quintal
estava livre de merda de cachorro e merda de mula, cortesia de Tommy,
bendito seja.
Clay
parou diante do varal, os pregadores um pouco acima dele em fileiras
de cores sortidas. Pegou um meio desbotado, mas que um dia já fora
de um azul bem vivo.
***
Então
ele se ajoelhou perto da haste.
É
claro que Aurora apareceu, e Aquiles estava de guarda, com cascos e
patas ao lado do garoto. A crina, apesar de escovada, estava cheia de
nós — e Clay estendeu o braço e tocou de leve na pata da mula.
Tudo dentro dele parecia imenso.
Em
seguida foi a vez de Aurora; bem devagar, ele segurou uma de suas
patas preta e branca:
O
dourado nos olhos dela, um adeus para ele.
Ele
amava aquele olhar canino de esguelha.
Então
saiu pelos fundos e foi até as Cercanias.
***
E
o resto é história. Ele nem ficou muito tempo lá; já havia
partido, portanto nem chegou a retirar o plástico. Não, tudo que
fez foi se despedir e prometer que voltaria.
De
volta à casa, no quarto que dividia com Henry, olhou no fundo da
caixa; o pregador era o acréscimo final. No escuro, observou os
demais objetos, da pena ao ferro, o dinheiro, o pregador e o endereço
remendado do Assassino. E é claro, o isqueiro de metal, com a
inscrição dela para ele — El Matador no quinto.
Em
vez de dormir, ele acendeu a luminária, leu seus livros e se deixou
carregar pelas horas.
Já
passava um pouco das três e meia, então ele sabia que Carey logo
sairia de casa:
Clay
se levantou, guardou os livros na bolsa, sempre com o isqueiro na
mão. No corredor, tateou outra vez as palavras gravadas no metal.
Abriu
a porta sem fazer barulho.
Deteve-se
no corrimão da varanda.
Muitas
eras atrás, ele estivera lá comigo.
O
ultimato na porta da frente.
Logo
surgiu Carey Novac, mochila nas costas e bicicleta ao lado.
Primeiro
ele viu uma roda: os raios.
Depois
a garota.
Seu
cabelo estava solto, seus passos eram ligeiros.
Estava
de jeans. A camisa de flanela de sempre.
A
primeira coisa que ela fez foi olhar para o outro lado da rua; ao
vê-lo, largou a bicicleta no chão, que ficou ali, apoiada no pedal,
a roda de trás ainda girando, enquanto a menina caminhava devagar na
direção dele, até parar bem no meio da rua.
— Oi
— disse ela. — Gostou?
Falou
baixinho, mas pareceu um grito.
Um
radiante ato de rebeldia.
A
quietude da rua Archer antes do amanhecer.
Quanto
a Clay, naquele momento ele pensou em várias coisas que queria dizer
a ela, que queria que ela soubesse, mas a única coisa que saiu de
sua cabeça foi “El Matador”.
Mesmo
a distância, dava para ver aqueles dentes não-exatamente-brancos e
não-exatamente-retos, o sorriso que desvelava a rua. Ela ergueu a
mão, e seu rosto trazia algo inédito para ele — faltavam palavras
à garota.
Quando
ela foi embora, caminhou e o observou, então o observou por mais um
instante.
— Tchau,
Clay.
Foi
só quando imaginou que ela já estaria na avenida Poseidon que ele
olhou outra vez para a mão, para o isqueiro. De maneira calma e
deliberada, ele o abriu, e a chama brotou no mesmo instante.
***
E
foi assim que foi.
No
escuro, ele apareceu para ver cada um de nós — eu, estirado na
cama, passando por Henry e seu sorriso adormecido e chegando a Tommy
e ao absurdo que era Rory. Num ato final de bondade (para ambos),
tirou Heitor do peito de Rory e o carregou no ombro como se fosse
mais uma bagagem. Na varanda, colocou o gato tigrado no chão, e o
bicho ronronava, mas também sabia que Clay estava indo embora.
E
então?
Primeiro
foi a cidade, depois a mula, e agora era o gato quem monopolizava a
conversa.
Ou
talvez não.
— Tchau,
Heitor.
Mas
ele não partiu, ainda não.
Não,
durante um longo tempo, pelo menos alguns minutos, ele esperou a
alvorada tomar a rua, dourada e gloriosa, e, quando enfim chegou, ela
escalou os telhados da rua Archer carregando consigo a maré do
passado:
Lá
fora, em algum lugar, havia uma rainha dos erros e uma distante
estátua de Stálin.
A
Garota do Aniversário arrastando um piano.
Um
coração colorido em meio ao cinza, às casas de papel.
Tudo
isso avançava cidade adentro, tomando as Cercanias e Bernborough.
Foi ganhando força pelas ruas, e, quando Clay finalmente partiu, o
lugar estava inundado de luz e maré. Cobriu primeiro seus pés,
depois os tornozelos, e, quando ele chegou à esquina, a água batia
na cintura.
Clay
olhou para trás uma última vez antes de mergulhar — para dentro e
para fora — na direção de uma ponte, que atravessaria o passado e
o levaria a um pai.
E
assim ele mergulhou nas águas tingidas de ouro.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
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