quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Ulrica

Hana tekr sverthit
Gram ok leggr i
methal theira bert
Volsunga Saga, 27*

O meu relato será fiel à realidade ou, em todo caso, à minha lembrança pessoal da realidade, o que afinal dá no mesmo. Os fatos ocorreram faz pouco tempo, porém sei que o hábito literário é, do mesmo modo, o hábito de intercalar traços circunstanciais e de acentuar as ênfases. Quero narrar o meu encontro com Ulrica (não soube seu sobrenome e talvez jamais venha a sabê-lo) na cidade de York. A crônica abarcará uma noite e uma manhã.
Não me custaria nada mencionar que a vi pela primeira vez junto às Cinco Irmãs de York, estes vitrais puros das imagens que os iconoclastas de Cromwell respeitaram, mas o fato é que nos conhecemos na saída do Northern Inn, que está do outro lado das muralhas. Éramos poucos e ela estava de costas. Alguém lhe ofereceu um copo e recusou.
Sou feminista, — disse —. Não quero imitar os homens.
Desagradam-me seu tabaco e seu álcool.
A frase queria ser engenhosa e adivinhei que não era a primeira vez que ela a pronunciava. Soube depois que isto não era característica dela, mas o que dizemos nem sempre se parece conosco.
Disse que havia chegado tarde ao museu, mas que a haviam deixado entrar quando souberam que era norueguesa.
Um dos presentes comentou: — Não é a primeira vez que os noruegueses entram em York.
Assim é, — disse ela —. A Inglaterra foi nossa e nós a perdemos, se é que alguém pode ter algo ou algo pode perder-se.
Foi então quando a olhei. Uma linha de William Blake fala de moças de prata suave ou de ouro furioso, porém em Ulrica se encontravam o ouro e a suavidade. Era leve e alta, de traços finos e olhos cor de cinza. Menos que seu rosto, impressionou-me esse ar de tranquilo mistério. Sorria com facilidade e o sorriso parecia distanciá-la.
Estava vestida de negro, o que é raro nas terras do Norte, onde se trata de avivar com cores o apagado do ambiente. Falava um inglês nítido e preciso e acentuava levemente os erres. Não sou observador; estas coisas descobri-as pouco a pouco.
Fomos apresentados, e eu lhe disse que era professor da Universidade dos Andes, de Bogotá. Esclareci que era colombiano.
Perguntou-me de modo pensativo: — O que é ser colombiano?
Não sei — respondi. É um ato de fé.
Como ser norueguesa — assentiu.
Nada mais posso lembrar do que se disse essa noite. No dia seguinte desci cedo ao refeitório. Através dos vidros, vi que havia nevado; as campinas se perdiam na manhã. Não havia mais ninguém.
Ulrica convidou-me à sua mesa. Disse-me que lhe agradava sair a caminhar sozinha.
A mim também. Podemos sair juntos os dois.
Afastamo-nos da casa, sobre a neve jovem. Não havia uma só alma nos campos. Propus que fôssemos a Thorgate, que se situa rio abaixo, há poucas milhas. Sei que já estava enamorado de Ulrica; não teria querido ao meu lado nenhuma outra pessoa.
Em seguida ouvi o longínquo uivo de um lobo. Nunca ouvi um lobo uivar, mas sei que era um lobo. Ulrica não se alterou.
Logo disse, como se pensasse em voz alta: — As poucas e pobres espadas que vi ontem em York Minster comoveram-me mais do que as grandes naves do museu de Oslo.
Nossos caminhos se cruzavam. Essa tarde, Ulrica prosseguia viagem com destino a Londres, e eu na direção de Edimburgo.
Em Oxford Street, — disseme — repetirei os passos de De Quincey, que buscava sua Ana perdida entre as multidões de Londres.
De Quincey — respondi — deixou de procurá-la. E eu, ao longo do tempo, sigo buscando-a.
Talvez — disse em voz baixa — a tenhas encontrado.
Compreendi que uma coisa inesperada não me estava proibida e beijei-a na boca e nos olhos. Afastou-me com suave firmeza, dizendo-me em seguida: — Serei tua na pousada de Thorgate. Entrementes, peço-te que não me toques. É melhor que seja assim.
Para um homem solteiro entrado em anos, o amor oferecido é um dom que já não se espera. O milagre tem direito de impor condições.
Pensei em meus tempos de moço em Popayán e em uma garota do Texas, clara e esbelta como Ulrica, que me havia negado seu amor.
Não cometi o erro de perguntar-lhe se me amava. Compreendi que não era o primeiro e que não seria o último. Essa aventura, possivelmente a última para mim, seria uma das muitas para essa resplandecente e decidida discípula de Ibsen.
De mãos dadas seguimos adiante.
Tudo isto é como um sonho — disse-lhe eu — e eu nunca sonho.
Como aquele rei — replicou Ulrica — que não sonhou até que um feiticeiro fê-lo dormir em uma pocilga.
E acrescentou depois: — Ouve bem. Um pássaro vai cantar. Logo em seguida ouvimos o canto.
Nestas terras — disse eu — acreditam que quem vai morrer pode prever o futuro.
E eu estou perto de morrer. Olhei-a atônito.
Cortemos caminho pela floresta — apressei-a —. Chegaremos mais rapidamente a Thorgate.
A floresta é perigosa — replicou. Seguimos pela campina.
Eu queria que este momento durasse sempre — murmurei.
Sempre é uma palavra que não está permitida aos homens — afirmou Ulrica. E para tornar menos enfático o que dizia, pediu-me para repetir meu nome, que não havia ouvido bem.
Xavier Otárola, lhe disse.
Quis repeti-lo mas não pode. E eu fracassei igualmente com o nome de Ulrikke.
Vou te chamar Sigurd — declarou com um sorriso.
Se sou Sigurd — repliquei — tu serás Brynhildr. Retardou sua caminhada.
Conheces a saga? — perguntei.
Claro — respondeu. A trágica história que os alemães deitaram a perder com seus tardios Nibelungos.
Não quis discutir e respondi: — Brynhildr, tu caminhas como se quisesses que entre nós dois houvesse uma espada na cama.
De repente nos achamos em frente à pousada. Não me surpreendeu que se chamasse, como a outra, Northern Inn.
Do alto da escada, Ulrica gritou-me: — Ouviste o lobo? Já. não restam lobos na Inglaterra. Apressa-te.
Ao subir o andar alto notei que as paredes estavam forradas de papel à maneira de William Morris, de um vermelho muito profundo, com frutos e pássaros entrelaçados. Ulrica entrou primeiro. O aposento escuro era baixo, com um teto de duas águas. O esperado leito se duplicava num vidro, e o mogno polido me lembrou o espelho da Escritura. Ulrica já se tinha despido. Chamou-me por meu verdadeiro nome, Xavier. Senti que a neve aumentava. Já não havia móveis nem espelhos. Não havia espada entre nós dois. O tempo se escoava como areia. Secular, fluiu na sombra o amor, e eu possuí pela primeira e última vez a imagem de Ulrica.

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*Arrebatou a espada a Gram e colocou-se entre os contendores (islandês arcaico). (N. do T.).

Jorge Luis Borges, in Livro de Sonhos

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