segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Outro ano começa

Um jornalista me pergunta:
Como o senhor vê o mundo neste ano que começa?
Respondo:
Neste momento exato, às nove e vinte da manhã do dia 5 de janeiro, vejo o mundo inteiramente rosa e azul.
Isto não tem implicação literária, nem política, nem subjetiva. Isto significa que de minha janela grandes canteiros de flores rosadas me golpeiam a vista e, mais além, o mar Pacífico e o céu se confundem num abraço azul.
Mas compreendo, como se sabe, que outras cores existem no panorama do mundo. Quem pode esquecer a cor de tanto sangue derramado inutilmente cada dia no Vietnam? Quem pode esquecer a cor das aldeias queimadas pelo napalm?
Respondo outra pergunta do jornalista. Como em outros anos, nestes novos 365 dias publicarei um novo livro. Estou certo dele. Eu o acaricio e o maltrato, escrevendo-o todo dia.
De que ele trata?
Que posso responder? Em meus livros sempre se trata do mesmo, sempre escrevo o mesmo livro. Que me perdoem meus amigos que, desta nova vez e neste novo ano cheio de novos dias, eu não tenha o que lhes oferecer senão meus versos, os mesmos novos versos.
O ano que termina trouxe vitórias para nós terrestres, vitórias no espaço e nas suas rotas. Durante o ano todos os homens quiseram voar. Todos nós temos viajado em sonhos cosmonautas. A conquista da grande altura nos pertence a todos, tenham sido norteamericanos ou soviéticos os que cingiram a primeira auréola lunar e comeram as primeiras uvas lunares.
Deve tocar a nós, os poetas, a maior parte dos dons descobertos. Desde Júlio Verne, que concebeu materialmente num livro o antigo sonho espacial, até Jules Laforgue, Heinrich Heine e José Asunción Silva (sem esquecer Baudelaire, que descobriu seu malefício), o pálido planeta foi investigado, cantado e publicado por nós, os poetas, antes de todos os outros.

Passam-se os anos. A gente se gasta, floresce, sofre e sente prazer. Os anos levam e trazem a vida para a gente. As despedidas se fazem mais freqüentes: os amigos entram e saem da prisão, vão ou voltam da Europa ou simplesmente morrem.
Os que se vão quando a gente está muito longe do lugar onde morrem, parece que morreram menos, continuam vivendo dentro da gente tal como foram. Um poeta que sobrevive a seus amigos se inclina a cumprir em sua obra uma antologia enlutada. Eu me abstive de continuá-la por temor à monotonia da dor humana diante da morte. É que a gente não quer se converter em um catálogo de defuntos, ainda que estes sejam os muito amados. Quando escrevi no Ceilão, em 1928, “Ausencia de Joaquín”, pela morte de meu companheiro, o poeta Joaquín Cifuentes Sepúlveda, e quando mais tarde escrevi “Alberto Rojas Jiménez vem voando”, em Barcelona, em 1931, pensei que ninguém mais dos meus ia morrer. E morreram ao lado, nas colinas argentinas de Córdoba, jaz sepultado o melhor de meus amigos argentinos: Rodolfo Araoz Alfaro, que deixou viúva nossa chilena Margarita Aguirre.
Neste ano que acaba de findar, o vento levou a frágil estatura de Ilya Ehrenburg, amigo queridíssimo, heroico defensor da verdade, titânico demolidor da mentira. Na mesma Moscou enterraram este ano o poeta Ovadi Savich, tradutor da poesia de Gabriela Mistral e da minha, não só com exatidão e beleza mas também com resplandecente amor. O mesmo vento da morte levou meus irmãos poetas Nazim Hikmete Semión Kirsanov. E muitos outros.
Amargo acontecimento foi o assassinato oficial do Che Guevara na bem triste Bolívia. O telegrama de sua morte percorreu o mundo como um calafrio sagrado. Milhões de elegias trataram de fazer coro à sua existência heróica e trágica. Em sua memória foram espalhados, por todas as latitudes, versos nem sempre dignos de tal dor. Recebi um telegrama de Cuba, de um coronel literário, pedindo-me os meus. Até agora não os escrevi. Penso que tal elegia deve conter não só o protesto imediato mas também o eco profundo da dolorosa história. Pensarei sobre esse poema até que amadureça em minha cabeça e em meu sangue.
Comove-me que no diário do Che Guevara seja eu o único poeta citado pelo grande chefe guerrilheiro. Recordo que o Che me contou certa vez, diante do sargento Retamar, como leu muitas vezes meu Canto General aos primeiros, humildes e gloriosos barbudos de Sierra Maestra. Em seu diário transcreve, com ênfase de presságio, um verso de meu “Canto a Bolívar”: “su pequeño cadáver de capitán vallente...” (seu pequeno cadáver de capitão valente...). (N. da T.)

Pablo Neruda, in Confesso que Vivi

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