Deitada
no chão da cozinha, Penélope tomou uma decisão.
Era
a vontade do pai que ela tivesse uma vida melhor, portanto era isso
que faria:
Ela
se despiria de sua brandura, de sua polidez.
Ela
tiraria a caixa de sapatos de debaixo da cama.
Ela
pegaria o dinheiro.
Ela
enfiaria as notas no bolso e iria até a estação de trem — sempre
com a carta, e Viena, na memória:
Há
outra forma de existir.
Sim,
e ela decidiu abraçá-la naquele dia.
Bez
wahania.
Sem
mais delongas.
***
Ela
carregava um mapa dos estabelecimentos na cabeça.
Já
fizera a ronda antes e era capaz de enumerar todas as lojas de música
da região de acordo com localização, preço e especialidade. Uma
delas sempre chamava sua atenção, em grande parte por causa do
preço; era a única opção viável para ela. Contudo, também
apreciava o aspecto caótico do lugar: os rolos de partitura, o busto
empoeirado de um Beethoven pra lá de emburrado num canto, o vendedor
debruçado no balcão. Ele tinha um rosto magro e amigável, e estava
quase sempre comendo gomos de laranja e gritando para se ouvir, pois
era meio surdo.
— Pianos?
— ribombara o homem, da primeira vez em que ela entrara na loja.
Ele
atirou uma casca de laranja na lixeira e errou. (“Merda, tão
perto!”) Apesar da má audição, notou o sotaque dela.
— O
que uma turista como a senhorita quer com um piano? É pior do que
amarrar uma bigorna no pescoço! — dissera, levantando-se e indo
até a Hohner mais próxima. — Uma moça magrinha como você
precisa é de uma dessas. Vinte contos.
Ele
abriu o estojinho e correu os dedos pela gaita. Será que aquele era
seu jeito de informar que ela não tinha como comprar um piano?
— Dá
pra levar pra qualquer lugar — anunciara ele.
— Mas
eu não vou a lugar algum.
A
atitude do velho senhor mudou.
— Certo.
— Ele lambera as pontas dos dedos, se empertigando. — Quanto você
tem?
— No
momento, não muito. Uns trezentos dólares, acho.
Ele
soltou uma gargalhada, emendando num acesso de tosse.
O
balcão recebeu alguns pedacinhos de laranja.
— Meu
bem, deixa eu te dizer uma coisa: você está delirando. Se quer um
piano bom, ou pelo menos um razoável, volte quando tiver mil pratas.
— Mil
pratas?
— Mil
dólares.
— Ah.
Posso tocar algum?
— Claro!
Mas
até então ela não tinha chegado a tocar nenhum dos pianos, nem
naquela nem em nenhuma outra loja. Se precisava de mil dólares,
precisava de mil dólares, e só depois de reunir a quantia ela ia
procurar um piano, experimentá-lo e comprá-lo, tudo no mesmo dia.
E
o dia, por acaso, era aquele.
Mesmo
se lhe faltassem cinquenta e três dólares.
***
Ela
entrou na loja com os bolsos estufados.
O
rosto do vendedor se iluminou.
— Você
voltou!
— Sim
— respondeu, ofegante e encharcada de suor.
— Trouxe
os mil dólares?
— Trouxe...
— Ela pegou as notas. — Novecentos... e quarenta e sete.
— Sim,
mas...
Penny
bateu no balcão com as duas mãos, deixando marcas na poeira, as
palmas e os dedos pegajosos. Olhou bem nos olhos do vendedor, o corpo
tão tenso que os ombros estavam prestes a se deslocar.
— Por
favor. Preciso tocar piano hoje. Pagarei o resto assim que tiver o
dinheiro... mas preciso tocar hoje, por favor.
Pela
primeira vez, o homem não abriu seu sorriso forçado, e seus lábios
se mexeram o suficiente para falar:
— Tudo
bem. — Ele saiu andando e falando ao mesmo tempo. — Aqui.
É
claro que ele a levou até o piano mais barato, mas era um belo
instrumento, cor de avelã.
Ela
se sentou no banco. Abriu a tampa.
Olhou
para o desfile de teclas.
Algumas
estavam meio lascadas, mas, por entre as lacunas do próprio
desespero, Penny já estava apaixonada, e ainda nem tirara uma única
nota daquele instrumento.
— E
aí? — Ela se virou devagar para o vendedor, a um passo de
desmoronar; era a Garota do Aniversário novamente. — Ora, vamos
logo com isso, então.
Ela
assentiu e voltou a atenção para o piano, para a lembrança de um
país antigo. Para a lembrança de um pai, e das mãos dele em suas
costas. Penélope estava voando, bem alto — uma estátua entre os
balanços —, e tocou, e chorou. Apesar do longo período de seca,
tocou lindamente (um dos noturnos de Chopin), sentindo nos lábios o
gosto das lágrimas. Fungou, engolindo-as, e tocou cada nota com
perfeição.
A
Rainha dos Erros não cometeu erro algum.
Ao
lado dela, o aroma de laranja.
— Entendi
— disse ele. — Já entendi. — Ele estava de pé à direita
dela. — Acho que entendi o que você quer dizer.
Ele
fez o piano por novecentos e providenciou a entrega para ela.
***
O
único problema era que o vendedor não tinha apenas uma audição
medonha e uma loja caótica — sua caligrafia também era um terror.
Se seus garranchos tivessem sido um pouco mais legíveis, talvez eu e
meus irmãos nem existíssemos, porque, em vez de mandar o piano para
a rua Pepper 3/7, os rabiscos do homem acabaram enviando os
entregadores para o número 37.
Como
é de se imaginar, os funcionários ficaram possessos.
Era
sábado.
Três
dias após a compra.
Enquanto
um batia à porta, os outros dois começaram a descarregar. O
instrumento já havia sido retirado do caminhão e aguardava na
calçada. O chefe falou com um homem na varanda da casa e logo se
virou para gritar com os outros dois.
— O
que vocês estão fazendo, cacete?
— Como
assim?
— Estamos
na porra do lugar errado!
O
entregador entrou para usar o telefone do morador e logo voltou,
resmungando sem parar.
— Idiota
— praguejou. — Babaca comedor de laranja.
— O
que aconteceu?
— A
entrega é em outro lugar. Número 3, apartamento 7.
— Mas
olha ali, não tem como estacionar no número 3!
— Então
vamos parar no meio da rua mesmo.
— Os
vizinhos vão chiar.
— Os
vizinhos vão chiar só de ver você aqui.
— Como
assim?
A
boca do chefe se retorceu em expressões variadas de desaprovação.
— Tá
bom. Deixa eu ir lá ver. Já vão preparando o carrinho de mão. Não
dá para empurrar o piano até o outro lado da rua, vai ser a
sentença de morte das rodinhas, e a nossa também. Vou ver se tem
gente em casa. Só o que me falta agora é a gente levar isso lá e
dar com a cara na porta.
— Boa
ideia.
— É
claro que é uma boa ideia. Agora, vocês dois nem me encostem nesse
piano, ouviu?
— Ouvi.
— Só
quando eu mandar.
— Tá
bom!
***
O
chefe saiu, e os outros entregadores olharam para o homem na varanda:
O
que não queria um piano.
— E
aí, tudo bem? — perguntou ele para os funcionários.
— Tudo.
Só um pouco cansados.
— Querem
beber alguma coisa?
— Nem.
O chefe não ia gostar.
O
homem no alpendre não era nem muito alto nem muito baixo. Tinha
cabelo escuro e ondulado, olhos de um azul bem claro e um coração
combalido. Quando o chefe voltou, apareceu com uma mulher tímida de
rosto pálido e braços bronzeados, bem no meio da rua Pepper.
O
homem desceu para a calçada enquanto os entregadores colocavam o
piano no carrinho.
— Olha
— disse ele —, eu posso ajudar, se vocês quiserem.
E
foi assim que, numa tarde de sábado, quatro homens e uma mulher
empurraram um piano de madeira cor de avelã por um trecho
considerável da rua Pepper. Nos lados opostos do instrumento estavam
Penélope Lesciuszko e Michael Dunbar — e Penélope não tinha como
saber. Mesmo percebendo a simpatia dele com os moços do frete e seu
zelo pela integridade do piano, jamais poderia adivinhar que estava
diante da maré que a levaria ao resto-de-sua-vida, a um sobrenome e
a um apelido.
Como
ela disse a Clay, ao recontar a história:
— É
curioso pensar que, um dia, eu acabaria me casando com aquele homem.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
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