quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

O jogo “peteca-lembrança”

Escrever me dá muita alegria pelo retorno que recebo dos meus leitores. Pena que não haja formas de responder a todos, um por um. A arte é muito longa, e o tempo é muito curto. Mas, de vez em quando... É o que aconteceu. Recebi uma carta de uma pessoa, a propósito de um texto meu. Vou transcrever:

Rubem Alves, você escreve para a alegria de nossas almas. Alimenta quem os anos já embranqueceram os cabelos, a memória já esvaindo-se, mas com a sensibilidade à flor da pele. A crônica “Amar sem esperar retribuição”, referindo-se ao jogo das petecas, cativou-me... Tenho mais de oitenta anos, sou viúva, fiz cinquenta anos de casada e ainda tenho a peteca-lembrança, bem guardada... A princípio joga-se com o companheiro: paixão, risos, castelos, ilusões. Depois, já se derruba a peteca: briguinhas, ressentimentos; mas o jogo continua gostoso e atraente. A peteca cai, a gente ergue, e o jogo segue com pequenas interrupções. Então, um triste dia, o parceiro parte, e o jogo interrompe. Como fazer para continuar o jogo sozinho, sem o sabor do companheirismo? Dei uma solução: o jogo peteca-lembrança. Guardei-a numa caixa, amarrei-a com fita verde-esperança. Um dia, encontrarei o amado parceiro em outro degrau da vida e jogaremos eternamente, de mãos dadas.
Assinado: Lurdes Camargo de Moura.

Fiquei comovido com a carta da Lurdes. Mas, e o endereço? Aí me chegou pelo correio, uma carta. Era dela! E ela contou outros detalhes:

Ter mais de oitenta anos, mudar de cidade, ser viúva, não é só fazer tricô, crochê e ver novelas. Resido há cinco anos em Campinas, com minha filha, genro e três netos. Se me perguntarem se está tudo “joia”, eu respondo: “É só bijuteria”... Tenho as duas pernas fraturadas, um único rim, pressão alta. Em contrapartida, sou alegre, bem-humorada, e uma bengala é o meu veículo precioso. Sem boas qualidades físicas, as espirituais estruturam a minha vida…

Lurdes! O que você escreveu fez bem para a minha alma! Corrijo-me: você fez bem à minha alma! Você sabe que eu sou psicanalista e vivo andando pelos caminhos da alma. E há uma pergunta para a qual não consigo encontrar resposta: Onde se encontram as fontes da alegria? Alguns acham que elas se encontram nas experiências infantis, que somos alegres ou tristes por causa das coisas que outros nos fizeram, quando éramos crianças. Eu não acredito nisso não. Acho que as fontes da alegria não se encontram no tempo. Acho que as fontes da alegria não são administradas pelo pai ou pela mãe. Minha suspeita é que elas se encontram na eternidade. A alegria é sempre inexplicável. Tem um profeta do Velho Testamento, Habacuque, que escreveu uma das orações mais lindas que conheço, e ela é linda por causa de uma única palavra: todavia. Ele começa a oração descrevendo campos devastados, árvores frutíferas sem frutos, currais sem vacas ou ovelhas. De repente ele interrompe o rol de desgraças e diz: “Todavia eu me alegrarei...” Não há razões para a alegria. Ela é uma fonte da eternidade que emerge no tempo. Obrigado por você existir.
Só há uma coisa que não entendi no que você escreveu. Você diz que chegará o dia em que você reencontrará o parceiro, você tirará a peteca da caixa em que você a guardou e vocês então jogarão peteca eternamente, de mãos dadas. Que estória é essa? Nunca vi ninguém jogar peteca de mãos dadas. Não tem jeito. Suspeito mesmo é que você não tem intenções de jogar peteca e que essas mãos dadas anunciam um jogo muito mais divertido... Quando o jogo de peteca é bom, terminado o jogo, guardada a peteca, um outro jogo a dois pode começar... Que assim seja, querida Lurdes.

Rubem Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente

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