Escrever
me dá muita alegria pelo retorno que recebo dos meus leitores. Pena
que não haja formas de responder a todos, um por um. A arte é muito
longa, e o tempo é muito curto. Mas, de vez em quando... É o que
aconteceu. Recebi uma carta de uma pessoa, a propósito de um texto
meu. Vou transcrever:
Rubem
Alves, você escreve para a alegria de nossas almas. Alimenta quem os
anos já embranqueceram os cabelos, a memória já esvaindo-se, mas
com a sensibilidade à flor da pele. A crônica “Amar sem esperar
retribuição”, referindo-se ao jogo das petecas, cativou-me...
Tenho mais de oitenta anos, sou viúva, fiz cinquenta anos de casada
e ainda tenho a peteca-lembrança, bem guardada... A princípio
joga-se com o companheiro: paixão, risos, castelos, ilusões.
Depois, já se derruba a peteca: briguinhas, ressentimentos; mas o
jogo continua gostoso e atraente. A peteca cai, a gente ergue, e o
jogo segue com pequenas interrupções. Então, um triste dia, o
parceiro parte, e o jogo interrompe. Como fazer para continuar o jogo
sozinho, sem o sabor do companheirismo? Dei uma solução: o jogo
peteca-lembrança. Guardei-a numa caixa, amarrei-a com fita
verde-esperança. Um dia, encontrarei o amado parceiro em outro
degrau da vida e jogaremos eternamente, de mãos dadas.
Assinado:
Lurdes Camargo de Moura.
Fiquei
comovido com a carta da Lurdes. Mas, e o endereço? Aí me chegou
pelo correio, uma carta. Era dela! E ela contou outros detalhes:
Ter
mais de oitenta anos, mudar de cidade, ser viúva, não é só fazer
tricô, crochê e ver novelas. Resido há cinco anos em Campinas, com
minha filha, genro e três netos. Se me perguntarem se está tudo
“joia”, eu respondo: “É só bijuteria”... Tenho as duas
pernas fraturadas, um único rim, pressão alta. Em contrapartida,
sou alegre, bem-humorada, e uma bengala é o meu veículo precioso.
Sem boas qualidades físicas, as espirituais estruturam a minha vida…
Lurdes!
O que você escreveu fez bem para a minha alma! Corrijo-me: você fez
bem à minha alma! Você sabe que eu sou psicanalista e vivo andando
pelos caminhos da alma. E há uma pergunta para a qual não consigo
encontrar resposta: Onde se encontram as fontes da alegria? Alguns
acham que elas se encontram nas experiências infantis, que somos
alegres ou tristes por causa das coisas que outros nos fizeram,
quando éramos crianças. Eu não acredito nisso não. Acho que as
fontes da alegria não se encontram no tempo. Acho que as fontes da
alegria não são administradas pelo pai ou pela mãe. Minha suspeita
é que elas se encontram na eternidade. A alegria é sempre
inexplicável. Tem um profeta do Velho Testamento, Habacuque, que
escreveu uma das orações mais lindas que conheço, e ela é linda
por causa de uma única palavra: todavia. Ele começa a oração
descrevendo campos devastados, árvores frutíferas sem frutos,
currais sem vacas ou ovelhas. De repente ele interrompe o rol de
desgraças e diz: “Todavia eu me alegrarei...” Não há razões
para a alegria. Ela é uma fonte da eternidade que emerge no tempo.
Obrigado por você existir.
Só
há uma coisa que não entendi no que você escreveu. Você diz que
chegará o dia em que você reencontrará o parceiro, você tirará a
peteca da caixa em que você a guardou e vocês então jogarão
peteca eternamente, de mãos dadas. Que estória é essa? Nunca vi
ninguém jogar peteca de mãos dadas. Não tem jeito. Suspeito mesmo
é que você não tem intenções de jogar peteca e que essas mãos
dadas anunciam um jogo muito mais divertido... Quando o jogo de
peteca é bom, terminado o jogo, guardada a peteca, um outro jogo a
dois pode começar... Que assim seja, querida Lurdes.
Rubem Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente
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