Durante
a semana, tenho que confessar, Rube e eu tramamos umas coisinhas. De
novo. Não dá para evitar.
Não
ia ter roubo.
Um
soco. Fora.
Então,
que diabo tinha pra nós dois fazermos? Decidi que ia ser jogo de
bola no quintal, ou futebol, ou como você quiser chamar.
Para
começo de conversa, tínhamos que jogar.
Jogamos.
Sério.
Talvez
eu tenha perguntado a Rube se ele queria jogar, porque ainda estava
infeliz com todo o fiasco da placa de trânsito. Foi bem
desmoralizante conseguir e depois encontrar um meio de fracassar
novamente. Magoou mais do que Rube podia dizer. Ele só ficava
sentado lá, todas as tardes, coçando o queixo áspero com uma mão
melancólica e sinistra. O cabelo estava como sempre, cobrindo as
orelhas e batendo nas costas.
— Vamos
lá. — Tentei iniciar uma conversa com ele.
— Não.
Era
sempre assim. Eu, o irmão mais novo, sempre quisera que Rube fizesse
coisas, podia ser uma partida de Banco Imobiliário ou uma bola no
quintal. Rube, o irmão mais velho, bem, era quem decidia. Se ele não
quisesse fazer uma coisa, nós não fazíamos. Talvez por isso sempre
quis tanto sair para roubar com ele, só porque ele queria mesmo que
eu fosse. Desistíramos de fazer coisas com o Steve uns anos atrás.
— Vamos
lá. — Continuei tentando. — Já enchi a bola, e os gols estão
prontos. Vamos dar uma olhada. Estão riscados lá na cerca, dos dois
lados.
— Do
mesmo tamanho? — Dois metros de largura, um e meio de altura.
— Bom,
bom.
Olhou
para mim e, pela primeira vez em muitos dias, deu um sorrisinho.
— Vamos?
— perguntei mais uma vez, com muito mais ansiedade.
— Está
bem.
Saímos,
então, e foi incrível.
Absolutamente
incrível.
Rube
caiu no concreto e se levantou. Duas vezes. Me xingou até dizer
chega quando fiz gol, e a coisa estava ficando séria. Um chute
errado foi na direção da cerca, prendemos a respiração, e em
seguida, soltamos o ar quando a bola bateu na beirada e voltou. Até
sorrimos um pro outro.
Foi
incrível, sobretudo porque Rube andava todo triste com uma forma
própria de crise de identidade ao mesmo tempo que eu estava na
típica agonia por causa de toda a história com Rebecca Conlon. Isso
era muito melhor. Sim. Era, porque, de repente, voltamos a fazer o
que fazíamos melhor, nos jogar e jogar um ao outro no quintal, ficar
sujos, ter certeza de xingar e agir feito idiotas e, se possível,
ofender os vizinhos. Era muito melhor assim. Era uma bela volta aos
velhos tempos.
A
bola bateu na cerca e fez o cachorro do vizinho latir e os papagaios
na gaiola ficarem loucos. Tomei um bico na canela. Rube caiu de novo
no concreto, arranhando um pouco a pele da mão ao se apoiar na
queda. Durante todo esse tempo, o cachorro do vizinho latiu, e os
papagaios estavam num tipo de frenesi. Eram os velhos tempos, sim, e,
como sempre, Rube ganhou: 7 a 6. Eu não ligava, porque nós dois
acabamos rindo e não levamos as coisas tão a sério.
O
que nos aguardava na escada dos fundos, porém, foi algo muito
diferente.
Era
Sarah, sozinha.
O
primeiro a vê-la foi Rube. Me tocou de leve no braço e apontou para
ela com a cabeça.
Olhei.
Falei
bem baixinho: — Ai, não.
Então,
Sarah olhou para a frente, porque deve ter me ouvido, e, para ser
sincero, a aparência dela era péssima. Estava sentada lá, toda
encolhida, com os joelhos quase encostando nos ombros e os braços
cruzados como se quisesse manter todo o ar dentro dela. As lágrimas
desciam pelo rosto.
Estranho.
Foi
exatamente assim que aconteceu quando fomos até a nossa irmã e
ficamos um de cada lado dela, fitando-a e sentindo as coisas, sem
saber o que fazer.
Então,
sentei perto dela, mas não tinha ideia do que dizer.
No
fim, foi Sarah quem quebrou o silêncio. O cachorro do vizinho tinha
se acalmado, e a vizinhança parecia atordoada com o que estava
acontecendo no nosso quintal.
Era
como se pudesse perceber. Podia perceber algum tipo de tragédia e
desamparo em jogo aqui, e, para ser sincero, isso me surpreendeu.
Estava tão acostumado com as coisas só acontecendo, esquecendo e
ignorando todo sentimento.
Ela
falou: — Ele arrumou outra pessoa.
O
Bruce? — perguntei, e Rube olhou para mim com uma expressão
incrédula no rosto.
— Não
— rosnou. — O rei da Suécia, porra. Quem você acha que foi? —
Tá bem, tá certo! Então, Sarah se inclinou e falou: — Acho
melhor vocês me deixarem sozinha por algum tempo.
— Está
bem.
Quando
me levantei e saí com Rube, a cidade à nossa volta parecia de novo
mais fria que nunca, e percebi que, mesmo que ela realmente tivesse
notado que algo estava acontecendo, sem dúvida, não se importava.
Seguia em frente mais uma vez. Eu podia sentir. Quase podia ouvi-la
rir e saborear. De perto. Observando. Zombando. E estava fria, tão
fria, ao observar minha irmã sangrar nos fundos da nossa casa.
No
lado de dentro, Rube estava aborrecido.
Falou:
— Está vendo agora? Isso estraga as coisas.
— Acontece.
— Quando disse isso, vi o vulto do Steve na varanda da frente.
Distante de nós.
— Tá,
mas por que hoje? — Por que não? Do sofá, olhei para uma foto
antiga de Steve, Sarah, Rube e eu bem pequenos, de pé, formando uma
escadinha para algum fotógrafo. Steve sorria. Sarah sorria. Todos
nós sorríamos. Era estranho ver isso porque ela estava lá todo dia
e só agora é que eu realmente a notava. O sorriso do Steve. Ele se
importava com a gente. O sorriso da Sarah. Era bonito Rube e eu
parecíamos limpos. Nós quatro éramos pequenos, destemidos, e
nossos sorrisos eram tão poderosos que isso me fazia sorrir mesmo
estando no sofá, naquele momento ruim.
Aonde
isso foi parar? Perguntei para mim mesmo. Eu nem conseguia me lembrar
da foto sendo tirada. Era mesmo real? Nesse momento, Sarah estava na
escada dos fundos, chorando, e Rube e eu afundávamos no sofá,
incapazes de ajudá-la. Steve não parecia se importar com nenhum de
nós.
Aonde
isso foi parar? Pensei de novo. De que forma aquela imagem pôde se
transformar nisso? Será que os anos nos venceram? Será que nos
enfraqueceram? Como foi que passaram feito grandes nuvens brancas,
desintegrando com tanta lentidão que não podíamos nos dar conta
delas? De um jeito ou de outro, tudo estava muito ruim e ia piorar.
Piorou
à noite, quando Sarah saiu e não voltou durante muitas horas.
Ela
saiu, dizendo as palavras: "Vou dar uma volta", e muito
tempo passou enquanto estava fora. O restante de nós fingia
indiferença, no começo, mas, às onze, estávamos todos
preocupados. Até o Steve parecia um pouco preocupado.
— Vamos
— falou papai para nós. — Vamos sair para procurar.
Ninguém
questionou.
Rube
e eu saímos na van com meu pai, e mamãe e Steve ficaram em casa,
caso Sarah aparecesse durante a nossa ausência. Procuramos nos bares
e nas casas dos amigos dela. E até na casa do Bruce. Ela não estava
em lugar algum.
A
meia-noite, quando voltamos para casa, ela ainda não voltara, e tudo
o que podíamos fazer era esperar.
Cada
um fez isso de um modo diferente.
Minha
mãe ficou sentada, em silêncio, sem olhar para ninguém.
Papai
não parava de fazer café e tomava tudo, como se não houvesse
amanhã.
Steve
botou e tirou do tornozelo a bolsa de água quente, e mantinha-o
elevado, determinado.
Rube
murmurou alguma coisa muito baixo, umas quinhentas vezes: — Eu vou
matar aquele filho da mãe. Eu vou matar aquele filho da mãe. Vou
pegar o Bruce Patterson. Vou matar o... Eu vou. Eu vou...
Quanto
a mim, cerrei um pouco os dentes e me inclinei para a frente,
apoiando o queixo na mesa. Só Rube foi para a cama. O restante de
nós ficou.
— Nenhum
sinal? — perguntou mamãe ao acordar a uma da manhã.
— Não.
— Meu pai balançou a cabeça, e, pouco depois, todos dormíamos
sob o globo de luz branca e incômoda da cozinha.
Mais
tarde, um sonho estava se aproximando.
Cam?
— Cam? Me sacudiram para eu acordar. Dei um pulo.
Sarah?
Não. Sou eu. Era o Rube.
Ai,
seu idiota! — É. — Ele sorriu. — Ela ainda não chegou? —
Não. A não ser que tenha passado por nós direto e ido para a cama.
— Não.
Ela não está lá.
Foi
aí que percebemos outra coisa: agora Steve também se fora.
Procurei
no porão.
— Nada.
— Olhei para Rube. Então, nós dois fomos até a varanda e,
depois, até a rua. Onde diabos Steve se metera? — Espera. — Rube
deu uma volta, olhando a rua. — Lá está ele.
Vimos
nosso irmão sentado, apoiado num poste. Corremos até ele. Paramos.
Rube perguntou: — O que foi que aconteceu? Steve olhou para nós, e
nunca o vi com tanto medo assim, ou tão ferrado. Parecia tão
desengonçado, e ainda assim parecia um homem; ele sempre parecia um
homem. Sempre...
mas
nunca assim. Não um cara vulnerável.
As
muletas eram dois braços mortos, jogadas ali, de madeira, perto
dele.
Lentamente,
delicado, nosso irmão falou: — Eu acho. — E parou. Recomeçou. —
Eu só queria encontrá-la.
Não
dissemos nada, mas acredito que, quando ajudamos Steve a se levantar
e voltar para casa, ele deve ter visto como era a vida do Rube, da
Sarah, e a minha.
Tinha
visto como era cair e não saber se ia voltar a se levantar, e isso o
assustou. Assustou porque nós realmente levantamos. Nós sempre
levantamos. Nós sempre.
Nós
o levamos para casa.
Nós...
Dali,
todos esperamos na cozinha novamente, mas só Rube e eu estávamos
acordados. Em determinado momento, ele cochichou alguma coisa para
mim. A mesma coisa de antes.
Continuou:
— Ei, Cam. Vamos pegar o tal Patterson. — Parecia tão seguro. —
Vamos pegar ele.
Eu
estava cansado demais para dizer algo além de "Vamos".
Pouco
depois, Rube adormeceu, como mamãe, papai e Steve. Não levou muito
tempo para meus próprios olhos ficarem pesados, e eu também dormi.
Todos
nós, dormindo na cozinha.
Sonhei.
Está
vindo.
Não
é um sonho ruim.
Quando
voltei a acordar, tinha mais uma pessoa agora, dormindo como o
restante de nós, à mesa da cozinha.
Estou
parado em um gol vazio. O estádio está lotado. Talvez umas 120 mil
pessoas me olhem fixamente. Elas entoam.
— Homem-lobo!
Homem-lobo! Olho ao redor do estádio, para todas as pessoas me
incentivando, e eu as amo, embora sejam completamente estranhas para
mim. Acho que são da América do Sul. Brasileiras ou coisa assim.
Argentinas, talvez.
— Não
vou decepcionar vocês — murmuro para elas, sabendo que não podiam
me ouvir, mesmo se eu gritasse.
A
minha frente, tem uma fila de pessoas, todas com as cores do
adversário.
São
as pessoas da minha história: Papai, Rube, mamãe, Steve, Sarah,
Bruce, a nova namorada sem rosto do Bruce, Greg, a auxiliar de
dentista, o dentista, Dennison — o diretor —, a assistente
social, os colegas de Rube e Rebecca Conlon.
Estou
usando todas as coisas que um goleiro precisa usar: chuteira, meião
levantado, uma camisa de malha verde com padrões de diamante na
frente e luvas. É noite, e o ar noturno se parte em mil pedaços por
causa dos refletores imensos em posição vertical, Jeito torres de
vigia sobre todos nós.
Estou
pronto.
Bato
palmas e me agacho, pronto para mergulhar em qualquer direção e
pegar a bola. O gol atrás de mim parece ter quilômetros de largura
e de profundidade. A rede é uma jaula frouxa, balançando e
murmurando na brisa.
Papai
dá um passo à frente, ajeita a bola, grita que isso é um tipo de
disputa de pênaltis de final de Copa, e que tudo depende de mim.
Recua, para e corre, chutando a bola à minha direita. Mergulho, mas
a bola está fora do alcance. Ele olha para mim depois que a bola
estufa o canto da rede, e sorri, como se dissesse — Desculpe,
garoto. Tive que fazer isso.
Mamãe
dá um passo à frente. Depois, Rube. Os dois marcam, Rube dá um
sorriso cruel. E diz — Você não tem jeito, Querido.
A
multidão, todo esse tempo, está sempre fazendo um zumbido, como se
fosse estática no meu ouvido. Quando não agarro e o adversário faz
gol, eles berram e, então, suspiram, pois estão torcendo por mim.
Querem que eu defenda um, pois sabem que estou lutando. Veem meus
pequenos braços e a vontade em meus lábios, e não podem ouvir, mas
sentem as palmas quando me preparo para cada cobrança. Ainda entoam.
Meu
nome.
Meu
nome.
Mesmo
assim, por mais que tente, não consigo agarrar nem um chute.
Mesmo
a Sarah, infeliz, passa por mim. Antes de chutar, diz — Não tente
me ajudar. É inútil. Tudo está fora do seu controle.
Steve
chuta, e Bruce. Os colegas de Rube. Todo mundo.
Então,
Rebecca Conlon dá um passo à frente.
Caminha
em direção a mim.
Devagar.
Sorrindo.
Ela
diz Se você agarrar, amarei você.
Faço
que sim com a cabeça, solene, pronto.
Ela
recua, se aproxima, chuta a bola.
Está
muito alta, e eu a perco no meio das luzes. Encontro-a e mergulho, no
alto e à direita, e, de algum modo, a bola bate no meu pulso e
acerta com força meu rosto.
Caio
com ela.
Ela
quica, quando bato no chão, e rola, devagarinho, sobre a linha e
para o fundo da rede.
Ah,
eu mergulho, mas não adianta. Falho, e rapidamente estou só, não
no estádio, mas no quintal ensolarado, sentado contra a cerca e com
o nariz sangrando.
Markus Zusak, in O Azarão
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