terça-feira, 30 de janeiro de 2024

O Azarão | 10


Durante a semana, tenho que confessar, Rube e eu tramamos umas coisinhas. De novo. Não dá para evitar.
Não ia ter roubo.
Um soco. Fora.
Então, que diabo tinha pra nós dois fazermos? Decidi que ia ser jogo de bola no quintal, ou futebol, ou como você quiser chamar.
Para começo de conversa, tínhamos que jogar.
Jogamos.
Sério.
Talvez eu tenha perguntado a Rube se ele queria jogar, porque ainda estava infeliz com todo o fiasco da placa de trânsito. Foi bem desmoralizante conseguir e depois encontrar um meio de fracassar novamente. Magoou mais do que Rube podia dizer. Ele só ficava sentado lá, todas as tardes, coçando o queixo áspero com uma mão melancólica e sinistra. O cabelo estava como sempre, cobrindo as orelhas e batendo nas costas.
Vamos lá. — Tentei iniciar uma conversa com ele.
Não.
Era sempre assim. Eu, o irmão mais novo, sempre quisera que Rube fizesse coisas, podia ser uma partida de Banco Imobiliário ou uma bola no quintal. Rube, o irmão mais velho, bem, era quem decidia. Se ele não quisesse fazer uma coisa, nós não fazíamos. Talvez por isso sempre quis tanto sair para roubar com ele, só porque ele queria mesmo que eu fosse. Desistíramos de fazer coisas com o Steve uns anos atrás.
Vamos lá. — Continuei tentando. — Já enchi a bola, e os gols estão prontos. Vamos dar uma olhada. Estão riscados lá na cerca, dos dois lados.
Do mesmo tamanho? — Dois metros de largura, um e meio de altura.
Bom, bom.
Olhou para mim e, pela primeira vez em muitos dias, deu um sorrisinho.
Vamos? — perguntei mais uma vez, com muito mais ansiedade.
Está bem.
Saímos, então, e foi incrível.
Absolutamente incrível.
Rube caiu no concreto e se levantou. Duas vezes. Me xingou até dizer chega quando fiz gol, e a coisa estava ficando séria. Um chute errado foi na direção da cerca, prendemos a respiração, e em seguida, soltamos o ar quando a bola bateu na beirada e voltou. Até sorrimos um pro outro.
Foi incrível, sobretudo porque Rube andava todo triste com uma forma própria de crise de identidade ao mesmo tempo que eu estava na típica agonia por causa de toda a história com Rebecca Conlon. Isso era muito melhor. Sim. Era, porque, de repente, voltamos a fazer o que fazíamos melhor, nos jogar e jogar um ao outro no quintal, ficar sujos, ter certeza de xingar e agir feito idiotas e, se possível, ofender os vizinhos. Era muito melhor assim. Era uma bela volta aos velhos tempos.
A bola bateu na cerca e fez o cachorro do vizinho latir e os papagaios na gaiola ficarem loucos. Tomei um bico na canela. Rube caiu de novo no concreto, arranhando um pouco a pele da mão ao se apoiar na queda. Durante todo esse tempo, o cachorro do vizinho latiu, e os papagaios estavam num tipo de frenesi. Eram os velhos tempos, sim, e, como sempre, Rube ganhou: 7 a 6. Eu não ligava, porque nós dois acabamos rindo e não levamos as coisas tão a sério.
O que nos aguardava na escada dos fundos, porém, foi algo muito diferente.
Era Sarah, sozinha.
O primeiro a vê-la foi Rube. Me tocou de leve no braço e apontou para ela com a cabeça.
Olhei.
Falei bem baixinho: — Ai, não.
Então, Sarah olhou para a frente, porque deve ter me ouvido, e, para ser sincero, a aparência dela era péssima. Estava sentada lá, toda encolhida, com os joelhos quase encostando nos ombros e os braços cruzados como se quisesse manter todo o ar dentro dela. As lágrimas desciam pelo rosto.
Estranho.
Foi exatamente assim que aconteceu quando fomos até a nossa irmã e ficamos um de cada lado dela, fitando-a e sentindo as coisas, sem saber o que fazer.
Então, sentei perto dela, mas não tinha ideia do que dizer.
No fim, foi Sarah quem quebrou o silêncio. O cachorro do vizinho tinha se acalmado, e a vizinhança parecia atordoada com o que estava acontecendo no nosso quintal.
Era como se pudesse perceber. Podia perceber algum tipo de tragédia e desamparo em jogo aqui, e, para ser sincero, isso me surpreendeu. Estava tão acostumado com as coisas só acontecendo, esquecendo e ignorando todo sentimento.
Ela falou: — Ele arrumou outra pessoa.
O Bruce? — perguntei, e Rube olhou para mim com uma expressão incrédula no rosto.
Não — rosnou. — O rei da Suécia, porra. Quem você acha que foi? — Tá bem, tá certo! Então, Sarah se inclinou e falou: — Acho melhor vocês me deixarem sozinha por algum tempo.
Está bem.
Quando me levantei e saí com Rube, a cidade à nossa volta parecia de novo mais fria que nunca, e percebi que, mesmo que ela realmente tivesse notado que algo estava acontecendo, sem dúvida, não se importava. Seguia em frente mais uma vez. Eu podia sentir. Quase podia ouvi-la rir e saborear. De perto. Observando. Zombando. E estava fria, tão fria, ao observar minha irmã sangrar nos fundos da nossa casa.
No lado de dentro, Rube estava aborrecido.
Falou: — Está vendo agora? Isso estraga as coisas.
Acontece. — Quando disse isso, vi o vulto do Steve na varanda da frente. Distante de nós.
Tá, mas por que hoje? — Por que não? Do sofá, olhei para uma foto antiga de Steve, Sarah, Rube e eu bem pequenos, de pé, formando uma escadinha para algum fotógrafo. Steve sorria. Sarah sorria. Todos nós sorríamos. Era estranho ver isso porque ela estava lá todo dia e só agora é que eu realmente a notava. O sorriso do Steve. Ele se importava com a gente. O sorriso da Sarah. Era bonito Rube e eu parecíamos limpos. Nós quatro éramos pequenos, destemidos, e nossos sorrisos eram tão poderosos que isso me fazia sorrir mesmo estando no sofá, naquele momento ruim.
Aonde isso foi parar? Perguntei para mim mesmo. Eu nem conseguia me lembrar da foto sendo tirada. Era mesmo real? Nesse momento, Sarah estava na escada dos fundos, chorando, e Rube e eu afundávamos no sofá, incapazes de ajudá-la. Steve não parecia se importar com nenhum de nós.
Aonde isso foi parar? Pensei de novo. De que forma aquela imagem pôde se transformar nisso? Será que os anos nos venceram? Será que nos enfraqueceram? Como foi que passaram feito grandes nuvens brancas, desintegrando com tanta lentidão que não podíamos nos dar conta delas? De um jeito ou de outro, tudo estava muito ruim e ia piorar.
Piorou à noite, quando Sarah saiu e não voltou durante muitas horas.
Ela saiu, dizendo as palavras: "Vou dar uma volta", e muito tempo passou enquanto estava fora. O restante de nós fingia indiferença, no começo, mas, às onze, estávamos todos preocupados. Até o Steve parecia um pouco preocupado.
Vamos — falou papai para nós. — Vamos sair para procurar.
Ninguém questionou.
Rube e eu saímos na van com meu pai, e mamãe e Steve ficaram em casa, caso Sarah aparecesse durante a nossa ausência. Procuramos nos bares e nas casas dos amigos dela. E até na casa do Bruce. Ela não estava em lugar algum.
A meia-noite, quando voltamos para casa, ela ainda não voltara, e tudo o que podíamos fazer era esperar.
Cada um fez isso de um modo diferente.
Minha mãe ficou sentada, em silêncio, sem olhar para ninguém.
Papai não parava de fazer café e tomava tudo, como se não houvesse amanhã.
Steve botou e tirou do tornozelo a bolsa de água quente, e mantinha-o elevado, determinado.
Rube murmurou alguma coisa muito baixo, umas quinhentas vezes: — Eu vou matar aquele filho da mãe. Eu vou matar aquele filho da mãe. Vou pegar o Bruce Patterson. Vou matar o... Eu vou. Eu vou...
Quanto a mim, cerrei um pouco os dentes e me inclinei para a frente, apoiando o queixo na mesa. Só Rube foi para a cama. O restante de nós ficou.
Nenhum sinal? — perguntou mamãe ao acordar a uma da manhã.
Não. — Meu pai balançou a cabeça, e, pouco depois, todos dormíamos sob o globo de luz branca e incômoda da cozinha.
Mais tarde, um sonho estava se aproximando.
Cam? — Cam? Me sacudiram para eu acordar. Dei um pulo.
Sarah? Não. Sou eu. Era o Rube.
Ai, seu idiota! — É. — Ele sorriu. — Ela ainda não chegou? — Não. A não ser que tenha passado por nós direto e ido para a cama.
Não. Ela não está lá.
Foi aí que percebemos outra coisa: agora Steve também se fora.
Procurei no porão.
Nada. — Olhei para Rube. Então, nós dois fomos até a varanda e, depois, até a rua. Onde diabos Steve se metera? — Espera. — Rube deu uma volta, olhando a rua. — Lá está ele.
Vimos nosso irmão sentado, apoiado num poste. Corremos até ele. Paramos. Rube perguntou: — O que foi que aconteceu? Steve olhou para nós, e nunca o vi com tanto medo assim, ou tão ferrado. Parecia tão desengonçado, e ainda assim parecia um homem; ele sempre parecia um homem. Sempre...
mas nunca assim. Não um cara vulnerável.
As muletas eram dois braços mortos, jogadas ali, de madeira, perto dele.
Lentamente, delicado, nosso irmão falou: — Eu acho. — E parou. Recomeçou. — Eu só queria encontrá-la.
Não dissemos nada, mas acredito que, quando ajudamos Steve a se levantar e voltar para casa, ele deve ter visto como era a vida do Rube, da Sarah, e a minha.
Tinha visto como era cair e não saber se ia voltar a se levantar, e isso o assustou. Assustou porque nós realmente levantamos. Nós sempre levantamos. Nós sempre.
Nós o levamos para casa.
Nós...
Dali, todos esperamos na cozinha novamente, mas só Rube e eu estávamos acordados. Em determinado momento, ele cochichou alguma coisa para mim. A mesma coisa de antes.
Continuou: — Ei, Cam. Vamos pegar o tal Patterson. — Parecia tão seguro. — Vamos pegar ele.
Eu estava cansado demais para dizer algo além de "Vamos".
Pouco depois, Rube adormeceu, como mamãe, papai e Steve. Não levou muito tempo para meus próprios olhos ficarem pesados, e eu também dormi.
Todos nós, dormindo na cozinha.
Sonhei.
Está vindo.
Não é um sonho ruim.
Quando voltei a acordar, tinha mais uma pessoa agora, dormindo como o restante de nós, à mesa da cozinha.

Estou parado em um gol vazio. O estádio está lotado. Talvez umas 120 mil pessoas me olhem fixamente. Elas entoam.
Homem-lobo! Homem-lobo! Olho ao redor do estádio, para todas as pessoas me incentivando, e eu as amo, embora sejam completamente estranhas para mim. Acho que são da América do Sul. Brasileiras ou coisa assim. Argentinas, talvez.
Não vou decepcionar vocês — murmuro para elas, sabendo que não podiam me ouvir, mesmo se eu gritasse.
A minha frente, tem uma fila de pessoas, todas com as cores do adversário.
São as pessoas da minha história: Papai, Rube, mamãe, Steve, Sarah, Bruce, a nova namorada sem rosto do Bruce, Greg, a auxiliar de dentista, o dentista, Dennison — o diretor —, a assistente social, os colegas de Rube e Rebecca Conlon.
Estou usando todas as coisas que um goleiro precisa usar: chuteira, meião levantado, uma camisa de malha verde com padrões de diamante na frente e luvas. É noite, e o ar noturno se parte em mil pedaços por causa dos refletores imensos em posição vertical, Jeito torres de vigia sobre todos nós.
Estou pronto.
Bato palmas e me agacho, pronto para mergulhar em qualquer direção e pegar a bola. O gol atrás de mim parece ter quilômetros de largura e de profundidade. A rede é uma jaula frouxa, balançando e murmurando na brisa.
Papai dá um passo à frente, ajeita a bola, grita que isso é um tipo de disputa de pênaltis de final de Copa, e que tudo depende de mim. Recua, para e corre, chutando a bola à minha direita. Mergulho, mas a bola está fora do alcance. Ele olha para mim depois que a bola estufa o canto da rede, e sorri, como se dissesse — Desculpe, garoto. Tive que fazer isso.
Mamãe dá um passo à frente. Depois, Rube. Os dois marcam, Rube dá um sorriso cruel. E diz — Você não tem jeito, Querido.
A multidão, todo esse tempo, está sempre fazendo um zumbido, como se fosse estática no meu ouvido. Quando não agarro e o adversário faz gol, eles berram e, então, suspiram, pois estão torcendo por mim. Querem que eu defenda um, pois sabem que estou lutando. Veem meus pequenos braços e a vontade em meus lábios, e não podem ouvir, mas sentem as palmas quando me preparo para cada cobrança. Ainda entoam.
Meu nome.
Meu nome.
Mesmo assim, por mais que tente, não consigo agarrar nem um chute.
Mesmo a Sarah, infeliz, passa por mim. Antes de chutar, diz — Não tente me ajudar. É inútil. Tudo está fora do seu controle.
Steve chuta, e Bruce. Os colegas de Rube. Todo mundo.
Então, Rebecca Conlon dá um passo à frente.
Caminha em direção a mim.
Devagar.
Sorrindo.
Ela diz Se você agarrar, amarei você.
Faço que sim com a cabeça, solene, pronto.
Ela recua, se aproxima, chuta a bola.
Está muito alta, e eu a perco no meio das luzes. Encontro-a e mergulho, no alto e à direita, e, de algum modo, a bola bate no meu pulso e acerta com força meu rosto.
Caio com ela.
Ela quica, quando bato no chão, e rola, devagarinho, sobre a linha e para o fundo da rede.
Ah, eu mergulho, mas não adianta. Falho, e rapidamente estou só, não no estádio, mas no quintal ensolarado, sentado contra a cerca e com o nariz sangrando.

Markus Zusak, in O Azarão

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