O
filme estava sendo rodado em três locações. Diferentes quartos,
diferentes ruas e becos, diferentes bares que se intercambiavam.
Uma
cena noturna envolvia um roubo de milho de um terreno baldio e uma
correria com a polícia.
O
milho fora plantado e estava pronto para o roubo.
O
uso da locação custara ao orçamento cinco mil dólares. O terreno
baldio pertencia agora a um Centro de Reabilitação de Alcoólatras.
Pinchot procurara por toda parte uma locação mais barata, mas
finalmente tivera de conformar-se com aquela, que na verdade era o
mesmo terreno baldio de onde minha dona roubara o milho havia mais de
três décadas. O novo milho fora plantado no mesmo lugar do antigo.
Outras coisas não eram tão exatas. O apartamento próximo onde a
dona morava, e para o qual eu me mudei, fora transformado num Asilo
de Velhos.
O
grande prédio junto ao terreno baldio, agora usado como Centro de
Reabilitação, naquele tempo era um salão de baile muito popular.
Vivia sempre cheio, especialmente nas noites de sábado. Todo o andar
de baixo era um salão de baile, gigantesco, com grandes globos de
luz girando lentamente no teto, enquanto a orquestra ao vivo tocava
música de dança até de madrugada, e muitos carros extravagantes,
alguns com choferes, esperavam do lado de fora.
Nós
odiávamos aquele salão de baile e aquelas pessoas, enquanto
morríamos de fome e brigávamos uns com os outros e a polícia e o
senhorio, quando éramos levados à cadeia de Lincoln Heights e
depois saíamos sob fiança.
Agora
o prédio estava cheio de bêbados reformados, que liam a Bíblia,
fumavam cigarros demais e jogavam bingo na sala que era antes o
grande salão de baile.
O
terreno baldio era a única coisa que não mudara. Em todas aquelas
décadas, ninguém construíra nada de qualquer espécie ali.
Francine
e Jack já haviam feito alguns ensaios e desaparecido dentro de seus
reboques, onde esperavam a ação. Eu entornava uma cerveja quando
senti alguém me tocar o ombro. Era um cara muito simpático, de
barba bem aparada, bonitos olhos, bonito sorriso. Eu já o vira por
ali, mas não o conhecia, não sabia qual era sua posição e não
perguntei. Na verdade, achava que sua verdadeira função era
espionar para a Firepower.
– Por
favor – ele disse –, não se pode beber aqui no set.
– Por
que não?
– No
contrato que assinamos com o pessoal daqui consta que podemos filmar
nas instalações, mas não se permite nenhuma bebida.
– E
água?
– Você
sabe o que eu quero dizer.
– É,
aqueles ex-bêbados não podem ver ninguém tomar um trago.
– Não
acreditam em bebida.
– Mas
todo o filme é sobre bebida.
– Tivemos
muita dificuldade pra conseguir essas instalações. Por favor, não
estrague tudo.
– Tudo
bem, chapa. Mas faço isso por Pinchot, não por você...
Ele
se afastou com sua prancheta, rebolando o pequeno rabo que não
recebera todos os chutes que merecia.
Dei
as costas ao prédio, tomei outra golada e guardei a garrafa no bolso
do paletó.
– Eles
podem ver você – disse Sarah.
– Você
quer dizer que todos aqueles ex-bêbados estão pendurados nas
janelas me olhando beber esta cerveja?
– Não,
mas tem gente por aí.
– Tudo
bem, eu me escondo quando quiser dar uma golada em minha cerveja.
Sarah
estava certa. Eu não tinha direito de ser caprichoso. O ator
principal ganhava 750 vezes mais que eu.
Então
Jon Pinchot nos achou.
– Oi,
Sarah... Oi, Hank...
Disse-me
que Friedman mandara mesmo os cheques, que o meu fora feito
diretamente para mim e estava no correio. Nosso plano dera certo.
– Preciso
ir – disse Jon. – Vamos rodar a cena da plantação de milho.
Veja e me diga o que acha...
Finalmente
entraram em ação, e Francine subiu o morro correndo até os pés de
milho.
– Quero
um pouco de milho! – gritava.
Eu
me lembrava de Jane subindo aquele mesmo morro, eu atrás carregando
um grande saco de garrafas. Só que quando ela gritara “Eu quero um
pouco de milho!” fora como se quisesse de volta o mundo todo, o
mundo que de alguma forma perdera, ou o mundo que de algum modo a
deixara de lado. O milho seria a sua vitória, sua recompensa, sua
vingança, sua canção.
Mas
quando Francine gritara “Eu quero um pouco de milho!” o grito
soara petulante, tinha um tom de queixa na voz, e não era a voz
desesperada do bêbado. Estava bem, estava bom, mas não estava
exatamente correto.
E
quando ela começou a arrancar as espigas, eu soube que não era a
mesma coisa, que jamais poderia ser a mesma coisa. Francine era uma
atriz. Jane fora uma bêbada louca. Correta e terminantemente louca.
Mas ninguém espera perfeição de uma atuação. Uma boa imitação
já serve.
Assim,
Francine arrancava o milho, enfiava-o na bolsa, e Jack dizia:
– Você
está bêbada... Esse milho está verde...
Aí
surgia o carro dos tiras, lampejando sua luz vermelha e o forte
holofote sobre eles, e Francine e Jack corriam para a casa, como Jane
e eu tínhamos feito, e já chegavam ao elevador quando os tiras
gritaram pelo alto-falante:
– PAREM
OU NÓS ATIRAMOS!
Mas
em vez de saltarem do carro e correrem atrás deles, aqueles tiras
simplesmente ficaram lá sentados. A tomada acabara.
Sarah
e eu levamos alguns minutos para encontrar Jon Pinchot.
Ele
estava lá parado, calado.
– Jon,
cara, os tiras deviam saltar e perseguir os dois!
– Eu
sei. As portas do carro emperraram. Eles não conseguiram sair.
– Quê?
– Eu
sei. É incrível. Vamos mandar consertar as portas do carro e filmar
tudo de novo.
– Sentimos
muito – disse Sarah.
Jon
estava deprimido. Geralmente ria quando as coisas saíam errado.
– Volto
a ver vocês depois de refilmarmos.
Nós
saímos, atravessamos a rua. Eu detestava ver Jon abatido daquele
jeito. Ele tinha raça. Algumas pessoas não gostavam dele porque
parecia ter muita empáfia. Mas a maior parte era verdadeira. Nós
todos bancávamos os valentes. Mas eu não gostava de vê-lo perder
sua empáfia.
Francine,
Jack e muitos dos outros voltaram aos seus reboques. Eu detestava as
longas demoras entre tomadas. Os filmes custam muito dinheiro porque
a maior parte do tempo ninguém faz nada além de esperar e esperar e
esperar. Até que isso e aquilo fiquem prontos, e a iluminação
esteja pronta, e a câmera, e o cabeleireiro tenha acabado de fazer
xixi e o consultor tenha sido consultado, não acontece nada. Era uma
punheta deliberada, um salário para isso, um salário para aquilo, e
só um homem podia ligar a tomada na parede, e o técnico de som
estava puto com o assistente de diretor, e aí os atores não estavam
se sentindo bem porque é assim que os atores devem se sentir, e por
aí vai. Tudo desperdício desperdício desperdício. Mesmo naquele
filme de orçamento extremamente baixo, eu tinha vontade de berrar:
“TUDO BEM, CORTA ESSA MERDA! NÃO TEM NADA AQUI QUE NÃO SE POSSA
FAZER EM 10 MINUTOS, E VOCÊS ESTÃO HÁ HORAS ENROLANDO!”.
Mas
não tinha raça para dizer isso. Era apenas um escritor. Uma despesa
menor.
Aí
aconteceu algo que me estufou o ego. Chegaram equipes de televisão
da Itália e da Alemanha. Ambas queriam entrevistas comigo. As duas
eram dirigidas por mulheres.
– Ele
nos prometeu primeiro – disse a italiana.
– Mas
você vai extrair todo o sumo dele – disse a alemã.
– Espero
– disse a italiana.
Sentei-me
diante das luzes italianas. Estávamos em ação.
– Que
acha do cinema?
– Filmes?
– É.
– Mantenho
distância.
– Que
faz quando não está escrevendo?
– Cavalos.
Aposto neles.
– Eles
te ajudam a escrever?
– Ajudam.
Ajudam a esquecer a literatura.
– Você
está bêbado neste filme?
– Estou.
– Acha
que beber é coragem?
– Não,
mas também nada mais é.
– Que
significa seu filme?
– Nada.
– Nada?
– Nada.
Talvez dar uma olhada no rabo da morte.
– Talvez?
– Talvez
quer dizer que não tenho certeza.
– Que
vê você quando dá uma olhada no “rabo da morte”?
– O
mesmo que você.
– Qual
é sua filosofia de vida?
– Pense
o mínimo possível.
– Mais
alguma coisa?
– Quando
não conseguir pensar em mais nada pra fazer, seja bondoso.
– Isso
é bonito.
– Bonito
não é necessariamente bondoso.
– Tudo
bem, Sr. Chinaski. Que palavras tem para o povo italiano?
– Não
gritem tanto. E leiam Celine.
Com
esta, as luzes se apagaram.
A
entrevista alemã foi ainda menos interessante.
A
dona queria o tempo todo saber o quanto eu bebia.
– Ele
bebe, mas não tanto quanto antes – disse-lhe Sarah.
– Preciso
de outro trago agora mesmo, senão não falo mais.
A
bebida veio imediatamente. Vinha num grande copo de papel e a bebi de
vez. Ah, era boa. De repente me pareceu idiotice alguém querer saber
o que eu pensava. A melhor parte de um escritor está no papel. A
outra é geralmente bobagem.
A
dona alemã tinha razão. A dona italiana consumira todo o meu sumo.
Eu
era agora um astro mimado. E estava preocupado com a filmagem do
campo de milho.
Precisava
falar com Jon, dizer a ele para deixar Francine mais bêbada, mais
louca, com um pé no inferno, uma mão arrancando milho dos talos e a
morte aproximando-se, os prédios vizinhos exibindo rostos de sonho,
olhando aqui embaixo a tristeza da existência para todos nós: os
ricos, os pobres, os belos e os feios, os talentosos e os inúteis.
– Não
gosta de cinema? – perguntou a alemã.
– Não.
As
luzes se apagaram. A entrevista acabara.
E
a cena do campo de milho foi refeita. Talvez não exatamente como
devia ser, mas quase.
Charles Bukowski, in Hollywood
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