quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Grandes esperanças | 3


Era uma manhã de geada, muito úmida. Eu vira a umidade do lado de fora de minha janelinha, como se um duende tivesse ficado ali a noite inteira a chorar, usando a janela à guisa de lenço. Agora eu a via nas sebes desfolhadas e na grama rala, formando como que teias de aranha de uma espécie mais grosseira, pendendo de graveto a graveto e de folha a folha. Em cada grade e portão a umidade formava uma camada grudenta; e a névoa do charco era tão espessa que a placa de madeira do poste que indicava a direção da nossa aldeia — uma direção que ninguém tomava, pois ninguém jamais ia lá — só se tornou visível para mim quando fiquei bem embaixo dela. Então, quando levantei a vista para a placa, que pingava, ela tomou forma na minha consciência oprimida como um espectro que me sentenciava às presigangas.
A névoa ficou mais pesada ainda quando penetrei o charco, de modo que, em vez de eu correr em direção às coisas, tudo parecia correr em minha direção. Essa sensação era muito desagradável para um espírito cheio de culpa. As porteiras e diques e barrancos surgiam-me de repente em meio à névoa, como se gritassem de modo perfeitamente claro: “Um menino com um pastelão de porco que não é dele! Peguem esse menino!”. Os bois também surgiam diante de mim subitamente, olhando-me com seus olhos fixos, vapor saindo de suas narinas: “Ora essa, um ladrãozinho!”. Um boi preto, com uma gravata branca — o qual parecia à minha consciência despertada ter um ar clerical — fixou-me os olhos de modo tão obstinado, e girava a cabeçorra de maneira tão acusadora, que choraminguei para ele: “Não foi por querer, senhor! Não foi para mim que eu peguei!”. Quando então o animal baixou a cabeça, exalou uma nuvem de fumaça pelo nariz e desapareceu, com um coice e um floreio da cauda.
Enquanto isso, eu me aproximava do rio; mas por mais depressa que caminhasse, não conseguia aquecer os pés, aos quais o frio úmido parecia estar pregado, tal como o ferro estava preso à perna do homem com quem eu ia me encontrar. Eu conhecia bem o caminho da bateria, pois já estivera lá uma vez, num domingo, com Joe, o qual, sentado num canhão velho, me dissera que quando eu fosse seu aprendiz,1 com contrato e tudo, nós haveríamos de fazer grandes patuscadas ali! Porém, na confusão da névoa, terminei me dando conta de que me desviara demais para a direita, e por isso tive que tentar voltar seguindo o rio, pela margem de pedras soltas acima da lama e estacas que traçavam o limite da maré. Caminhando com toda a pressa, tinha eu acabado de atravessar uma vala que sabia ser bem próxima à bateria, e subira o montículo do outro lado dela, quando vi o homem sentado à minha frente. Estava de costas para mim, de braços cruzados, a cabeça caída para a frente, pesada de sono.
Julguei que o homem ficaria mais satisfeito se eu me aproximasse dele, com seu desjejum, de modo inesperado; assim fui chegando pé ante pé e toquei-o no ombro. No mesmo instante ele levantou-se de um salto, e não era o mesmo homem, e sim outro!
E, no entanto, ele estava com a mesma roupa de pano cinzento grosseiro, e também tinha um ferro grande na perna, e estava manco, e rouco, e transido de frio, e era sob todos os aspectos igual ao outro homem; só que não tinha o mesmo rosto, e usava um chapéu de feltro chato, de aba larga e copa baixa. Tudo isso vi num momento, pois tive apenas um momento para ver: ele xingou-me, tentou golpear-me — um golpe fraco e confuso que não me atingiu e teve o efeito de fazê-lo tropeçar e quase cair — e depois saiu correndo pela névoa adentro, tropeçando duas vezes no caminho, até que o perdi de vista.
É o rapaz!”, pensei, sentindo meu coração disparar ao identificá-lo. Creio que teria sentido uma dor no fígado também, se soubesse onde ele ficava.
Logo cheguei à bateria, e lá estava o homem certo — abraçando o próprio corpo e mancando de um lado para o outro, como se tivesse passado a noite inteira a abraçar-se e mancar sem interrupção — à minha espera. Ele estava mesmo com muito frio. Eu meio que esperava que a qualquer momento ele caísse duro diante de meus olhos, morto de frio. Havia também tanta fome em seu olhar que, quando lhe entreguei a lima e ele a depôs na grama, ocorreu-me que teria tentado comê-la se não tivesse visto minha trouxa. Não me virou de cabeça para baixo, dessa vez, para pegar o que eu tivesse, porém me deixou na posição normal enquanto eu abria a trouxa e esvaziava os bolsos.
O que tem nessa garrafa, menino?”, ele perguntou.
Brande”, respondi.
Ele já estava enfiando o recheio de torta goela abaixo de um modo muito curioso — mais parecia um homem que estivesse guardando a comida em algum lugar com muitíssima pressa do que alguém comendo — porém interrompeu o processo para tomar um gole de bebida. Enquanto isso, estremecia de modo tão violento que era com dificuldade que conseguia manter o gargalo entre os dentes sem trincá-lo.
Acho que o senhor está com sezão”, disse eu.
Sou mais ou menos da tua opinião, menino”, disse ele.
Aqui é muito ruim”, prossegui. “O senhor tem dormido no chaco, e isso sempre dá sezão. E reumatismo também.”
Vou fazer meu desjejum antes que eles me pegue pra me matar”, disse ele. “Eu havia de comer mesmo que eles me fosse pendurar naquela forca acolá, logo adespois. Duvido que a sezão me derrube, sou capaz de apostar.”
Ele devorava recheio de torta, osso, pão, queijo e pastelão de porco, tudo ao mesmo tempo: olhando desconfiado, enquanto comia, para a névoa que nos cercava, e a toda hora parando — parando até de mastigar — para escutar. Algum som ouvido ou imaginado, algum estalido no rio ou respiração de animal no charco, assustou-o, e ele disse de repente:
Tu não és um diabrete traiçoeiro? Não trouxeste ninguém junto contigo?”
Não, senhor! Ninguém!”
Nem mandaste ninguém não vir atrás?”
Não!”
Bom”, disse ele, “acredito em ti. Só mesmo sendo um filhote de cão feroz pra, pequeno como és, ajudar a caçar um rato desgraçado, já quase morto e jogado no lixo, como esse pobre rato desgraçado de mim!”
Alguma coisa estalou em sua garganta, como se ele tivesse dentro dele um mecanismo como o de um relógio, que estivesse prestes a dar a hora. E ele passou a manga rude e rasgada nos olhos.
Apiedando-me de seu desamparo, e vendo-o atacar aos poucos o pastelão, criei coragem de dizer: “Que bom que o senhor gostou”.
Falaste?”
Eu disse que bom que o senhor gostou.”
Obrigado, meu menino. Gostei, sim.”
Muitas vezes eu vira um cão grande que tínhamos devorando seu alimento; e me dei conta então de que havia uma semelhança nítida entre a maneira de comer do cachorro e a dele. O homem dava mordidas fortes, intensas, súbitas, tal como o animal. Ele engolia, ou melhor, abocanhava, cada bocado, cedo demais e rápido demais; e olhava para os lados, para lá e para cá, enquanto comia, como se acreditasse haver o perigo, em todas as direções, de que alguém viesse lhe tomar o pastelão. De tal modo o perturbava essa possibilidade que ele não aproveitava direito a comida, pensei, nem suportaria ter algum comensal a seu lado sem ficar trincando os dentes para ele. Sob todos esses aspectos ele muito se assemelhava ao cão.
Acho que o senhor não vai deixar nada pra ele”, comentei, tímido; após um silêncio durante o qual hesitei, não sabendo se minha observação seria educada. “Lá de onde veio essa comida tem mais.” Foi a certeza desse fato que me levou a fazer a insinuação.
Deixar nada pra quem? Ele quem?”, disse meu amigo, parando de mastigar um pedaço de pastelão.
O rapaz. De quem o senhor falou. Que estava escondido com o senhor.”
Ah, ah!”, ele retrucou, com uma espécie de riso áspero. “Ele? Sei, sei! Ele não quer saber de comida.”
Ele me deu a impressão de que queria, sim”, disse eu.
O homem parou de comer, e me encarou com uma atenção intensa e uma enorme surpresa.
Ele? Quando?”
Logo agora.”
Adonde?”
Ali”, respondi, apontando, “onde ele estava cochilando, e pensei que fosse o senhor.”
O homem agarrou-me pelo colarinho e olhou-me de tal modo que comecei a achar que ele voltara a pensar na ideia de cortar-me a garganta.
Vestido tal como o senhor, sabe, só que com chapéu”, expliquei, trêmulo, “e… e…” — eu queria dizê-lo do modo mais delicado — “e com… a mesma razão pra querer uma lima emprestada. O senhor não ouviu o canhão ontem à noite?”
Então deram tiro mesmo!”, disse ele a si próprio.
Não entendo como o senhor pode ter dúvida”, retruquei, “pois nós ouvimos lá em casa, que é mais longe, e ainda por cima estávamos com as janelas fechadas.”
Ora, vê lá”, explicou ele, “quem está sozinho nesse descampado, com a cabeça tonta e a barriga vazia, morrendo de frio e fome, não faz outra coisa a noite toda que não ouvir tiro de canhão e gente gritando. Ouvir? Ele vê os sordado, de túnica vermelha iluminada pelos archote, vindo cercar o lugar onde ele está. Ouve chamar o número dele, ouvi gente provocando, ouve o barulho dos mosquete, ouve as ordem de ‘Preparar! Apontar! Bala nele, sordado!’, sente as mão agarrando — e não tem nada! Ora, essa noite mesmo eu vi um esquadrão de busca — vindo tudo em ordem, os desgraçado, marchando, marchando — vi bem uns cem. E os tiro! Ora, eu vi a bruma tremer com os tiro de canhão, adespois que já tinha clareado. — Mas esse homem” — ele falara até então como se tivesse esquecido a minha presença — “reparaste alguma coisa nele?”
O rosto dele estava muito machucado”, disse eu, relembrando algo que eu mal sabia que sabia.
Não aqui?”, exclamou o homem, batendo na face esquerda de modo impiedoso, com a mão aberta.
Isso, aí mesmo!”
Que é dele?” Enfiou o pouco de comida que restava no peito do casaco cinzento. “Mostra pra que lado que ele foi. Eu mato ele feito um cachorro. O diabo leve esse ferro na minha perna machucada! Me dá a lima, menino.”
Apontei a direção onde a névoa havia ocultado o outro homem, e ele levantou a vista por um instante. Mas logo se escarrapachou na grama crescida e úmida, atacando o ferro com a lima como um louco, sem ligar para mim nem para sua própria perna, onde havia uma escoriação antiga e também sangue, mas que ele manipulava com brutalidade, como se ela fosse tão insensível quanto a lima. Ele voltara a me fazer muito medo, agora que estava possuído por aquela pressa feroz, e além disso eu tinha muito medo de prolongar aquela minha saída por mais tempo. Disse-lhe que tinha de ir embora, mas ele sequer percebeu, e assim julguei que o melhor a fazer era escapulir. Quando vi o homem pela última vez, ele estava debruçado sobre o joelho e limando com força o grilhão, murmurando imprecações impacientes dirigidas ao ferro e à perna. Quando ouvi o homem pela última vez, ao parar na névoa e aguçar os ouvidos, a lima continuava em ação.

Charles Dickens, in Grandes esperanças

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