terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Grandes esperanças | 1


Sendo o sobrenome de meu pai Pirrip, e meu nome de batismo Philip, quando menino minhas tentativas de pronunciar os dois nomes não resultavam em nada mais longo nem mais explícito do que Pip. Por isso passei a denominar-me Pip, e assim vim a ser chamado.
Digo que Pirrip era o sobrenome de meu pai com base na sua lápide e na minha irmã — a sra. Joe Gargery, que se casou com o ferreiro. Como jamais vi meu pai nem minha mãe, e nunca vi retrato deles (pois que viveram muito antes do tempo das fotografias), minhas primeiras fantasias a respeito de sua aparência se fundavam, de modo nada razoável, nas suas lápides. A forma das letras na lápide de meu pai me inspirou a estranha ideia de que ele teria sido um homem quadrado, robusto, moreno, com cabelos negros crespos. A partir do aspecto e fraseado da inscrição, “Também Georgiana Esposa do Acima”, extraí a conclusão infantil de que minha mãe era sardenta e doente. Cinco pequenos losangos de pedra, cada um com cerca de meio metro de comprimento, dispostos numa fileira ordenada ao lado da sepultura dos dois, e dedicados à memória de cinco irmãozinhos meus — que desistiram de tentar viver excepcionalmente cedo nesse conflito universal — me inspiraram a convicção, à qual me apegava com fervor religioso, de que todos eles haviam nascido de costas, com as mãos nos bolsos das calças, e de lá jamais as tiraram neste estado da existência.
Nossa região era o charco junto ao rio, a uma distância, onde o rio fazia curva, de trinta quilômetros do mar. Minhas primeiras impressões vívidas e abrangentes da identidade das coisas, creio eu que as vivenciei numa memorável tarde fria e úmida, já perto do anoitecer. Nessa ocasião descobri com certeza que aquele lugar lúgubre, coberto de urtigas, era o campo-santo; e que Philip Pirrip, paroquiano de lá, e também Georgiana, esposa do acima, estavam mortos e enterrados; e que Alexandre, Bartholomew, Abraham, Tobias e Roger, filhos pequenos dos dois, também estavam mortos e enterrados; e que o descampado escuro e plano que se estendia além do campo-santo, pontuado por diques e outeiros e porteiras, com algumas cabeças de gado esparsas a pastar, era o charco; e que a linha plana e cor de chumbo mais além era o rio; e que aquele pasto selvagem e longínquo de onde vinha o vento era o mar; e que o serzinho estremecendo de medo de tudo isso, e começando a chorar, era Pip.
Para com esse barulho!”, gritou uma voz terrível, e um homem veio vindo por entre as sepulturas ao lado do alpendre da igreja. “Fica quieto, seu diabrete, senão eu te corto a garganta!”
Um homem assustador, com uma roupa grosseira toda cinzenta, com um grande ferro na perna. Um homem sem chapéu, e com sapatos rasgados, e com um trapo velho amarrado em torno da cabeça. Um homem que havia afundado na água, e chafurdado na lama, e torcido o pé nas pedras, e se cortado nas pederneiras, e se espetado nas urtigas, e se rasgado nas urzes; que mancava, e estremecia, e rosnava; e que me olhava com olhar feroz, estalejando os dentes enquanto me agarrava pelo queixo.
Ah! Não me corte a garganta, senhor”, implorei apavorado. “Por favor, não faça isso, senhor.”
Diz o teu nome!”, ordenou o homem. “Depressa!”
Pip, senhor.”
De novo”, disse o homem, olhando-me fixamente. “Fala!”
Pip. Pip, senhor!”
Mostra onde tu moras”, disse o homem. “Aponta pro lugar!”
Indiquei a direção de nossa aldeia, na margem plana do rio, em meio a amieiros e árvores podadas, a quase dois quilômetros da igreja.
O homem, tendo me olhado por um momento, virou-me de cabeça para baixo e esvaziou-me os bolsos. Neles não havia nada além de um pedaço de pão. Quando a igreja se endireitou — pois ele foi tão repentino e forte que a fez virar de ponta-cabeça diante de mim, e vi o campanário debaixo de meus pés —, quando a igreja se endireitou, como eu dizia, dei por mim sentado numa lápide alta, tremendo, enquanto ele devorava o pão com avidez.
Filhote de cachorro”, disse o homem, lambendo os beiços, “tuas bochecha é bem gorducha.”
Creio que eram mesmo gordas, embora na época eu fosse um menino pequeno para minha idade, e nada forte.
Ora se eu não comia elas”, disse o homem, sacudindo a cabeça de modo ameaçador, “e posso muito bem comer, mesmo!”
Manifestei enfaticamente a esperança de que ele não fizesse tal coisa, e agarrei-me com mais força à lápide em que ele me colocara; em parte para não cair dela, em parte para não chorar.
Escuta aqui!”, disse o homem. “Que é da tua mãe?”
Ali, senhor!”, apontei.
Ele assustou-se, correu um pouco, parou e olhou para trás.
Ali, senhor!”, expliquei, tímido. “Também Georgiana. É a minha mãe.”
Ah!”, ele exclamou, voltando. “E aquele ali ao lado da tua mãe é o teu pai?”
Sim, senhor”, respondi, “paroquiano de cá.”
Ah!”, ele murmurou então, pensativo. “Tu vives com quem — se é que eu vou ser bonzinho e te deixar viver, coisa que ainda não decidi?”
Minha irmã, senhor — a senhora Joe Gargery — mulher de Joe Gargery, o ferreiro, senhor.”
Ferreiro, é?”, disse ele. E olhou para a própria perna.
Depois de olhar feroz para a perna e para mim algumas vezes, aproximou-se de minha lápide, segurou-me pelos dois braços e inclinou-me para trás até onde pôde fazê-lo, de modo que pudesse me olhar nos olhos do modo mais penetrante, enquanto os meus olhavam para os dele, impotentes.
Escuta aqui”, disse ele, “o negócio é saber se te deixo viver ou não. Tu sabes o que é uma lima de ferro.”
Sei, sim, senhor.”
E sabes o que é comida.”
Sei, sim, senhor.”
Depois de cada pergunta, ele me inclinava um pouco mais, de modo a acentuar minha sensação de impotência e perigo.
Me traz uma lima.” Inclinou-me outra vez. “E me traz comida.” Inclinou-me outra vez. “Me traz as duas coisa.” Inclinou-me outra vez. “Senão eu te ranco o coração e o figo.” Inclinou-me outra vez.
Eu estava terrivelmente assustado, e tão tonto que me agarrei a ele com as duas mãos, dizendo: “Se o senhor por favor parar de me entortar, pode ser que eu não fique enjoado, e preste mais atenção no senhor”.
Ele me virou ao contrário com toda a força, de modo que a igreja pulou por cima de seu próprio cata-vento. Então me segurou pelos braços, de cabeça para cima, sobre a lápide, e continuou, ameaçador:
Me traz amanhã, de manhã bem cedo, a lima e a comida. Leva tudo pra mim, na velha bateria acolá. Faz isso e não ouses dizer uma palavra a ninguém, nem dar a entender que encontraste uma pessoa como eu, nem pessoa nenhuma, que aí eu te deixo viver. Se não fizeres o que mando, ou se desviares do que eu te digo, por pouco que seja, teu coração e teu figo vai ser arrancado, assado e comido. Olha, eu não estou sozinho não, ao contrário do que podes estar pensando. Tem um rapaz escondido comigo, e em comparação com esse rapaz eu sou um anjo. Esse rapaz está ouvindo tudo que eu digo. Esse rapaz tem um jeito secreto que só ele sabe de pegar um garoto, e rancar o coração dele, e o figo dele. Não adianta tentar se esconder desse rapaz. O garoto pode trancar a porta, se enfiar na cama quentinha, se embrulhar todo nas coberta, puxar elas até cobrir a cabeça, crente que está muito confortável e bem protegido, mas aí esse rapaz entra sem fazer barulho, chega até ele e rasga ele ao meio. Eu estou no momento impedindo esse rapaz de fazer mal a ti, com muita dificuldade. É muito difícil impedir esse rapaz de te rasgar ao meio. E então, o que me dizes?”
Eu disse que ia lhe trazer a lima, e os restos de comida que conseguisse pegar, e viria a seu encontro na bateria de manhã cedinho.
Diz que Deus te mate mortinho se não fizeres isso!”, disse o homem.
Obedeci, e ele me pôs no chão.
Pois então”, insistiu, “lembra do que foi combinado, e lembra daquele rapaz, e vai pra casa!”
Bo-boa noite, senhor”, gaguejei.
Boa uma ova!”, exclamou, correndo a vista pela planície fria e úmida. “Eu queria ser um sapo. Ou então uma enguia!”
Enquanto abraçava o próprio corpo, que tremia, com os dois braços — apertando com força, como para não se desmanchar — seguia mancando até a mureta da igreja. Fiquei a vê-lo, contornando com cuidado as urtigas, por entre as sarças que cingiam os montículos verdes, e a meus olhos de criança ele dava a impressão de estar se esquivando das garras dos defuntos, que esticavam os braços cautelosos de suas sepulturas, para lhe agarrar o tornozelo e puxá-lo para dentro.
Chegando à mureta, passou por cima dela, como um homem cujas pernas estão dormentes e duras, e depois se virou para me procurar. Quando vi que ele se virava, voltei-me na direção de minha casa, e corri o mais depressa que pude correr. Mas pouco depois olhei para trás e vi que ele voltava para os lados do rio, ainda a abraçar-se com os dois braços, pondo com cuidado os pés feridos entre as pedras grandes postas aqui e ali no charco, para servirem de passadeiras quando chovia forte, ou quando subia a maré.
O charco era apenas uma longa linha horizontal negra quando parei para tentar encontrá-lo; e o rio não passava de mais uma linha horizontal, bem menos larga e menos negra; e o céu, só um feixe de linhas longas de um vermelho colérico, entremeadas com faixas negras e densas. Na margem do rio eu divisava, com dificuldade, os dois únicos vultos negros em toda a paisagem que pareciam estar em posição vertical; um deles era o farol que orientava os marinheiros — parecia um barril sem aros no alto de um poste — uma coisa feia quando vista de perto; o outro, um patíbulo onde pendiam umas correntes, no qual outrora fora enforcado um pirata. O homem seguia mancando em direção a esse patíbulo, como se fosse o pirata redivivo, que dele tendo descido agora voltava, para lá se pendurar outra vez. Esse pensamento fez-me muito mal; e, ao ver os bois levantando as cabeças e olhando para o homem, perguntei a mim mesmo se eles também teriam a mesma impressão. Corri a vista à minha volta, temendo deparar com o rapaz terrível, e não vi nenhum sinal dele. Porém, como estava com medo de novo, fui para casa correndo sem parar.

Charles Dickens, in Grandes esperanças

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