sábado, 27 de janeiro de 2024

Como isso termina


O final é sempre uma surpresa. Até eu fiquei surpreso com o final.
Eu estava na cozinha preparando um sanduíche de geleia com pasta de amendoim. Minha mãe estava tirando o pó do alto da moldura das janelas, pó que você nunca vê, a menos que suba numa escada e olhe, que é o que ela estava fazendo. Eu me lembro de estar pensando que vida triste e horrível ela devia ter, para desperdiçar até mesmo um segundo limpando aquelas molduras, quando meu pai entrou. Eram umas quatro horas da tarde, o que era estranho porque eu não me lembrava da última vez que o tinha visto ainda com o sol brilhando, e ao olhar para ele naquela claridade, entendi por quê: ele não parecia bem. Na verdade, ele estava com uma aparência péssima. Ele largou alguma coisa em cima da mesa de jantar e entrou na cozinha, seus sapatos de sola de couro batendo no chão recém-encerado. Minha mãe escutou, e quando ele entrou na cozinha ela desceu da escada e largou o pano que estava usando na bancada, ao lado da cesta de pão, e se virou para olhá-lo com um olhar que eu só pude caracterizar como sendo de desespero. Sabia o que ele estava prestes a contar a ela, a nós. Ela sabia por que ele estava fazendo testes e biópsias, cuja natureza eles acharam melhor esconder de mim até terem certeza, e naquele dia tiveram certeza. Era por isso que ela estava limpando o alto das janelas, porque aquele era o dia em que saberiam e ela não queria pensar naquilo, não queria ficar ali sentada pensando no que poderia saber naquele dia.
E soube.
Está em toda parte — ele disse. Foi assim. Está em toda parte, ele disse, e se virou para sair. Minha mãe foi atrás dele, deixando-me ali imaginando o que, além de Deus, estaria em toda parte, e por que aquilo perturbava tanto meus pais. Mas não tive que imaginar por muito tempo.
Calculei o que era antes que eles me contassem.

Entretanto, ele não morreu. Ainda não. Em vez de morrer, ele se tornou um nadador. Havia anos que tínhamos uma piscina, mas ele nunca ligou para ela. Agora que estava o tempo todo em casa e precisava fazer exercício, agarrou-se à piscina como se tivesse nascido na água, como se fosse seu elemento natural. E ele era lindo de ver. Atravessava a água quase sem deslocá-la. Seu corpo longo e rosado, coberto de cicatrizes, lesões, hematomas e esfoladuras, cintilava no azul da piscina. Seus braços moviam-se diante dele com tanta sinceridade, como se estivesse acariciando a água em vez de usá-la para mover-se lá dentro. Suas pernas faziam movimentos precisos como os de um sapo atrás dele, e sua cabeça mergulhava e varava a superfície como um beijo. Isso levava horas. Submersa por tanto tempo, sua pele ficava encharcada de água, com as dobras inteiramente brancas. Uma vez o vi descascando a pele em tiras, devagar, metodicamente, como se estivesse na muda. O resto do dia ele passava quase todo dormindo. Quando não estava dormindo, eu às vezes o via com um olhar vago, como se estivesse em comunhão com um segredo. Observando-o, via que ele se tornava mais alheio a cada dia, e não só alheio a mim, mas alheio àquele tempo e àquele lugar. O modo como seus olhos afundavam na cabeça, desprovidos de fogo e paixão. O modo como seu corpo encolhia e murchava. O modo como ele parecia estar ouvindo uma voz que só ele podia ouvir.
Eu me consolava um pouco com o fato de que tudo aquilo estava acontecendo para o bem dele, que de alguma forma haveria um final feliz, e que mesmo aquela doença era uma metáfora de outra coisa: significava que ele estava ficando cansado do mundo. Isso tinha se tornado tão óbvio. Não havia mais gigantes, nem olhos que tudo veem, nem garotas do rio cujas vidas você podia salvar e que voltariam depois para salvar a sua. Ele tinha se tornado simplesmente Edward Bloom: Homem. Eu o tinha apanhado num mau momento de sua vida. E isso não era culpa dele. O mundo simplesmente não tinha mais a magia que permitia que ele vivesse nele com grandiosidade.
A doença era seu ingresso para um lugar melhor.
Eu agora sei.

Ainda assim, foi a melhor coisa que poderia ter acontecido para nós, essa viagem final. Bem, talvez não a melhor coisa, mas uma boa coisa, considerando todas as circunstâncias. Eu o via uma vez todas as noites — mais do que o via quando estava bem. Ele era o mesmo homem, até então. Senso de humor, intacto. Não sei por que isso parece importante, mas parece. Suponho que em alguns casos indique certa capacidade de recuperação, uma determinação, uma vontade inabalável.
Um homem estava conversando com um gafanhoto. O homem disse: “Sabe, existe um drinque com o seu nome.” E o gafanhoto disse: “Quer dizer que existe um drinque chamado Howard?”
E esta aqui: Um homem entrou num restaurante e pediu uma xícara de café sem creme. O garçom voltou uns minutos depois e disse, desculpando-se, que eles estavam sem creme. Ele se importaria de tomar o café sem leite?
Mas as piadas nem eram mais engraçadas. Estávamos simplesmente esperando pelo último dia. Estávamos contando piadas velhas, infames, aguardando o fim. Ele foi ficando cada vez mais cansado. Às vezes, no meio de uma piada, esquecia o que estava dizendo ou se enganava no final — dava um excelente remate, mas que pertencia a outra piada.
A própria piscina começou a se deteriorar. Ninguém mais cuidava dela. Estávamos atônitos contemplando o fim de meu pai. Ninguém a limpava nem colocava os produtos químicos que mantinham a água azul, e as algas começaram a crescer nas paredes, deixando a água verde-escura. Mas papai continuou a nadar nela até o fim. Mesmo quando começou a parecer mais um lago do que uma piscina, ele continuou nadando. Um dia, quando fui ver como ele estava, podia jurar que tinha visto um peixe — uma perca — subir à superfície atrás do anzol. Tive certeza de ter visto.
Papai — eu disse. — Você viu isso?
Ele tinha parado no meio de uma braçada e estava boiando.
Você viu aquele peixe, papai?
E então ri, porque olhei para o meu pai, contador de piadas, eterno cômico, e vi que ele parecia engraçado. Foi isso exatamente o que pensei, quando olhei para ele, pensei: Ele parece engraçado. E não deu outra, ele não tinha parado no meio de uma braçada. Ele tinha desmaiado, e seus pulmões estavam cheios d’água. Eu o tirei da piscina e chamei uma ambulância. Apertei seu estômago e a água saiu da sua boca como um esguicho. Esperei que abrisse um olho e desse uma piscadela, começasse a rir, transformasse aquele acontecimento real em algo diferente, em algo realmente espetacular e engraçado, algo para se recordar e rir. Segurei a mão dele e esperei.
Esperei um longo tempo.

Daniel Wallace, in Peixe Grande

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