quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Com a Marinha de Guerra em Ouro Preto

No seu livro de memórias, Alma do Tempo, que José Olympio publicou, Afonso Arinos de Melo Franco lembra que em 1933 ele era diretor dos Diários Associados de Minas, e relembra alguns dos que trabalhavam lá naquele tempo. Conta que uma vez, querendo fazer uma perfídia com o pessoal do jornal governista A Tribuna, aproveitou-se de uma viagem minha a Ouro Preto para escrever e assinar por mim a crônica diária que eu fazia. Mandei-lhe então um telegrama pedindo “que não abusasse do meu santo nome em vão”.
O que Afonso Arinos não conta e, com certeza nem lembra é o drama dessa minha viagem a Ouro Preto. Newton Prates ou Otávio Xavier — não me recordo mais — mandou-me lá fazer uma reportagem sobre a visita do ministro da Marinha, o Almirante Protógenes Guimarães. O ministro viajou com todo o seu gabinete, o Estado-Maior da Armada, muitos outros oficiais e toda a banda de música dos Fuzileiros Navais, além de vários jornalistas do Rio.
Havia um paisano encarregado de lidar com o pessoal da imprensa; era o Augusto de Lima Júnior, o Liminha, filho do bom poeta de “Plenilúnio de Maio em Montanhas de Minas”, irmão do excelente delegado de polícia e pintor Renato Lima.
Desafeto dos Melo Franco, o Liminha resolveu sabotar o repórter do único jornal mineiro presente a Ouro Preto. Negava-me desdenhosamente todas as informações, programas, cópias de discursos etc, que fornecia aos meus colegas de imprensa carioca. Negou-me um lugar à mesa no grande banquete, quando todos os outros jornalistas eram convidados. E quando tentei me aproximar do ministro para uma entrevista, o Liminha interpôs-se rudemente, dizendo que o almirante não tinha declarações a fazer, e me convidando a sair do recinto.
Eu tinha apenas (que saudade!) 20 anos, mas já fora até correspondente de guerra (no ano anterior, durante a Revolução Constitucionalista, na Mantiqueira) e, embora muito tímido, não me deixaria passar para trás tão facilmente. Arranjei condução própria para acompanhar a caravana; metia-me em toda parte sem ser convidado; convenci um funcionário dos telégrafos a me mostrar os textos de todos os despachos mandados pelos outros repórteres, entrei como "penetra" no baile e assisti de pé ao banquete. Em resumo — fiz meu serviço. E em certo momento consegui fazer uma pergunta ao ministro: que achava ele da idéia, então aventada romanticamente, de se instalar a Constituinte Nacional em Ouro Preto? O simpático almirante era contra (e isto eu sabia) a instalação de qualquer Constituinte, e respondeu de brincadeira: “Acho que a Constituinte devia ser instalada no Quartel dos Fuzileiros Navais do Rio...”
Precipitou-se o Liminha a interromper minha entrevista, e dois oficiais me explicaram que aquilo era uma boutade do ministro, que eu não deveria publicar.
Publiquei, está visto — e o resultado foi que a recepção à comitiva em Belo Horizonte foi a mais fria possível, em ambiente de verdadeiro mal-estar. Além disto, irritado como estava, contei vários detalhes pitorescos, como o fato de um jovem oficial ter assumido a regência da orquestra durante o baile, e a senhora Maria Eugênia Celso, convidada de honra pelos seus méritos de escritora e por ser neta do último ministro da Marinha do Império, o Visconde de Ouro Preto, ter recitado seu poema caipira "Meu Home" depois do brinde oficial ao Presidente da República, no banquete. Fiz, em resumo, uma crônica irreverente e mesmo leviana, mas totalmente verdadeira. Tenho a idéia de que falei mal até dos santos barrocos, e disse que o Almirante Graça Aranha tinha cara de irmão de romancista, uma bobagem assim.
Essa reportagem, verídica mas inconveniente, foi lida durante a viagem de trem de Ouro Preto para Belo Horizonte, e, pela manhã, eu, que também ia a bordo, fui identificado como seu autor. Fui cercado por um grupo de oficiais indignados. O ministro não dormira, de tão aborrecido. Dona Maria Eugênia Celso estava com dor de cabeça. Eu desrespeitara a Marinha de Guerra Brasileira!
Sentado junto à janela do trem, fraco e indefeso, percebi que havia ali duas correntes.
As opiniões estavam divididas, como naquela anedota do toureiro. A metade dos oficiais achava que eu devia ser jogado pela janela do trem, a outra metade pensava que eu devia ser massacrado ali mesmo. Fiquei como um coelho, mas me neguei a assinar qualquer documento que importasse em retratação; insisti em que tudo que escrevera era rigorosamente a verdade. Um dos oficiais (lembro-me que era um aviador naval) sugeriu, certamente penalizado, que eu confessasse que estava bêbado ao escrever a tal crônica; que eu fosse dizer isso pedindo desculpas ao Ministro Protógenes Guimarães. Neguei-me. Os mais exaltados quiseram então me agredir, mas foram contidos pelos outros. Minha juventude e minha fraqueza tornariam uma covardia qualquer agressão, e eles sentiram isto; minha firmeza de atitude, ao mesmo tempo que irritava uns, impressionava favoravelmente outros. Além disto, que efeito teria em Belo Horizonte a notícia de que o repórter do melhor jornal local fora surrado pelos oficiais da Marinha? A discussão durou muito tempo e nunca mais fiz uma viagem tão longa em minha vida. Meu pânico inicial transformou-se em frieza e indiferença, como se tudo aquilo não estivesse acontecendo comigo.
Houve sugestões gentis — me fazer engolir o jornal, por exemplo. “Façam o que quiserem; escrevi, está escrito” — era tudo o que eu dizia. Alguns oficiais se afastavam, apareciam outros; ouvi apreciações sobre minha pessoa muito pouco amáveis, mas resisti. Justiça seja feita aos indignados oficiais: nenhum me tocou sequer.
Em Sabará subiram ao trem o Sr. Gustavo Capanema, então secretário do Interior de Minas, e outros homens do governo estadual, que eu conhecia. Tratei de ficar junto deles, pois assim eu me sentia garantido. Meu suplício acabara. Na estação em Belo Horizonte três oficiais mais exaltados ainda tentaram me abordar, mas me coloquei ao lado de um oficial da Força Pública mineira que conhecera no ano anterior, na Revolução de 32, o Coronel Vargas — e eles desistiram, receando um escândalo.
O jornal deu uma nota se escusando pela minha desastrada reportagem; mas o efeito político da visita do ministro estava perdido. Sua boutade irritara profundamente os círculos políticos favoráveis à constitucionalização, que o almirante, como velho “tenentista”, não via com bons olhos. Tudo, afinal, culpa do Liminha…

Rubem Braga, in Recado de primavera

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