terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Cândido ou o Otimismo | Capítulos 3 e 4


Como Cândido fugiu de entre os búlgaros, e o que se tornou

Nada era tão belo, tão lesto, tão brilhante, tão bem-ordenado quanto os dois exércitos. Os clarins, os pífaros, os oboés, os tambores, os canhões, formavam uma harmonia tal como nunca houve no inferno. Os canhões derrubaram de início cerca de seis mil homens de cada lado; em seguida a rajada de mosquetes tirou do melhor dos mundos por volta de dez mil malandros que lhe infectavam a superfície. A baioneta também foi a razão suficiente da morte de alguns milhares de homens. O total bem podia chegar a umas trinta mil almas. Cândido, que tremia como um filósofo, escondeu-se o melhor que pôde durante aquela carnificina heroica.
Finalmente, enquanto ambos os reis faziam cantar o Te Deum cada um em seu campo, ele tomou o partido de ir arrazoar em outro lugar sobre efeitos e causas. Passou por cima de montes de mortos e de moribundos e chegou primeiro a uma aldeia vizinha; ela estava em cinzas: era uma aldeia abar que os búlgaros haviam queimado, segundo as leis do direito público. Aqui, anciãos crivados de tiros olhavam morrer as suas mulheres degoladas, que mantinham os filhos nas mamas ensanguentadas; ali, moças estripadas depois de terem saciado as necessidades naturais de alguns heróis exalavam o último suspiro; outras, meio queimadas, gritavam que terminassem de matá-las. Cérebros estavam espalhados pela terra, ao lado de braços e pernas amputados.
Cândido fugiu o mais depressa que pôde para outra aldeia; ela pertencia aos búlgaros, e heróis abares haviam-na tratado da mesma forma. Cândido, sempre caminhando sobre membros palpitantes ou através de ruínas, deixou enfim o teatro da guerra, carregando umas provisõezinhas em seu embornal e não esquecendo nunca a srta. Cunegunda. Faltaram-lhe provisões quando chegou à Holanda; mas tendo ouvido dizer que todo mundo era rico nesse país, e que o povo dali era cristão, não teve dúvidas de que o tratariam tão bem quanto o fora no castelo do senhor barão antes que de lá fosse expulso pelos belos olhos da srta. Cunegunda.
Pediu esmola a várias personagens sisudas, que lhe responderam todas que, se ele continuasse a exercer esse ofício, iriam trancafiá-lo numa casa de correção para que aprendesse a viver.
Dirigiu-se depois a um homem que acabara de falar uma hora seguida sobre a caridade numa grande assembleia. Esse orador, olhando-o de atravessado, disse-lhe: “O que é que o senhor veio fazer aqui? Está aqui pela boa causa?”. “Não existe efeito sem causa”, respondeu modestamente Cândido, “tudo está encadeado necessariamente e arranjado em função do melhor. Foi preciso que eu fosse expulso de junto da senhorita Cunegunda, que tivesse passado pelo açoite, e é preciso que eu peça o meu pão até que possa ganhá-lo; tudo isso não podia ser de outra maneira.” “Meu amigo”, disse o orador, “o senhor acredita que o papa seja o Anticristo?” “Eu ainda não tinha ouvido dizer isso”, respondeu Cândido; “mas quer ele o seja, quer não, está me faltando pão.” “Não mereces comê-lo”, disse o outro; “vá, malandrinho, vá, miserável, não chegues perto de mim pelo resto de tua vida.” A mulher do orador, tendo posto a cabeça na janela e avistando um homem que duvidava que o papa fosse o Anticristo, derramou-lhe na cabeça um… cheio. Ó céu! A que excesso chega o zelo da religião nas mulheres!
Um homem que não tinha sido batizado, um bom anabatista chamado Tiago, viu a maneira cruel e ignominiosa com que assim se tratava um de seus irmãos, um ser de dois pés sem penas, que tinha uma alma; ele o levou à sua casa, limpou-o, deu-lhe pão e cerveja, presenteou-o com dois florins, e até quis ensinar-lhe a trabalhar nas suas manufaturas de tecidos da Pérsia que se fabricam na Holanda. Cândido, quase se prosternando diante dele, exclamou: “Mestre Pangloss bem que me dissera que tudo está pelo melhor no mundo, pois estou infinitamente mais comovido com a vossa extrema generosidade do que com a severidade daquele senhor de sobretudo preto e da senhora sua esposa”.
No dia seguinte, enquanto passeava, encontrou um mendigo coberto de pústulas, de olhos mortiços, com a ponta do nariz roída, a boca torta, dentes pretos e falando com uma voz estrangulada, atormentado por uma tosse violenta e cuspindo um dente a cada esforço.

Capítulo 4

Como Cândido encontrou o seu antigo mestre de filosofia, o dr. Pangloss, e o que disso adveio

Cândido, mais movido pela compaixão do que pelo horror, deu a esse espantoso mendigo os dois florins que recebera de seu honesto anabatista Tiago. O fantasma olhou para ele fixamente, verteu lágrimas e saltou-lhe ao pescoço. Cândido, apavorado, recuou. “Ah!”, disse o miserável ao outro miserável, “não estais mais reconhecendo o vosso querido Pangloss?” “Que ouço eu? O senhor, meu querido mestre! O senhor, nesse estado horrível! Que desgraça vos aconteceu? Por que não estais mais no mais belo dos castelos? O que aconteceu com a senhorita Cunegunda, a pérola das mocinhas, a obra-prima da natureza?” “Não aguento mais”, disse Pangloss. Imediatamente Cândido levou-o ao estábulo do anabatista, onde o fez comer um pouco de pão; e quando Pangloss já estava refeito: “E então”, disse-lhe ele, “Cunegunda?” “Morreu”, retomou o outro. Cândido desmaiou; o amigo o fez recobrar os sentidos com um pouco de vinagre ruim que se encontrava por acaso no estábulo. Cândido reabre os olhos. “Cunegunda está morta! Ah! Melhor dos mundos, onde estás? Mas de que doença ela morreu? Não seria por me ver expulso do castelo do senhor seu pai a grandes pontapés?” “Não”, disse Pangloss. “Ela foi estripada por soldados búlgaros, depois de ter sido violada tanto quanto se pode sê-lo; eles quebraram a cabeça do senhor barão, que queria defendê-la; a senhora baronesa foi cortada em pedaços; meu pobre pupilo, tratado exatamente como a irmã; e quanto ao castelo, não ficou pedra sobre pedra, nem uma cocheira, nem um carneiro, nem um pato, nem uma árvore; mas fomos bem vingados, pois os abares fizeram o mesmo num baronato vizinho que pertencia a um senhor búlgaro.”
Ao ouvir isso, Cândido desmaiou de novo; mas, voltando a si e tendo dito o que devia dizer, indagou-se sobre a causa e o efeito, e sobre a causa suficiente que tinha colocado Pangloss num estado tão lamentável. “Ah!”, disse o outro, “foi o amor; o amor, o consolador do gênero humano, o conservador do universo, a alma de todos os seres sensíveis, o terno amor.” “Pena!”, disse Cândido, “eu o conheci, esse amor, esse soberano dos corações, essa alma de nossa alma; ele nunca me trouxe nada além de um beijo e vinte pontapés na bunda. Como essa bela causa pôde produzir em vós um efeito tão abominável?”
Pangloss respondeu nestes termos: “Ó meu caro Cândido! Conhecestes Paquette, aquela bela acompanhante de nossa augusta baronesa; degustei em seus braços as delícias do paraíso, que produziram estes tormentos infernais pelos quais me vedes devorado. Ela estava infectada. Talvez já tenha morrido disso. Paquette tinha recebido essa dádiva de um franciscano muito sábio, que fora buscar sua fonte; pois ele a pegara de uma velha condessa, que a recebera de um capitão de cavalaria, que a devia a uma marquesa, que a pegara de um pajem, que a recebera de um jesuíta, que, sendo noviço, a havia contraído em linha direta de um dos companheiros de Cristóvão Colombo. Quanto a mim, não a passarei a ninguém, pois estou morrendo”.
Ó Pangloss!”, exclamou Cândido, “aí está uma estranha genealogia! Não foi o diabo que esteve na origem disso?” “Não mesmo!”, replicou aquele grande homem. “Era uma coisa indispensável no melhor dos mundos, um ingrediente necessário; pois se Colombo não tivesse pegado, numa ilha da América, essa doença que envenena a fonte da geração, que muitas vezes até impede a geração, e que é evidentemente o oposto do grande escopo da natureza, não teríamos nem o chocolate nem a cochonilha. Há que se observar ainda que, até hoje, em nosso continente, essa doença nos é particular, como a controvérsia. Os turcos, os indianos, os persas, os chineses, os siameses, os japoneses não a conhecem ainda; mas há uma razão suficiente para que a conheçam, por sua vez, dentro de alguns séculos. Enquanto isso, ela fez um maravilhoso progresso entre nós, e principalmente nos grandes exércitos compostos de honestos estipendiários, bem-educados, que decidem do destino dos Estados; pode-se garantir que, quando trinta mil homens combatem em ordem de batalha enfileirados contra tropas de igual número, há cerca de vinte mil sifilíticos de cada lado.”
Eis aí algo admirável”, disse Cândido, “mas é preciso curá-lo.” “E como posso fazê-lo?”, disse Pangloss. “Eu não tenho um tostão, meu amigo; e em toda a extensão deste globo, não se pode nem fazer uma sangria, nem tomar uma lavagem sem pagar, ou sem que haja alguém que pague por nós.”
Este último discurso determinou Cândido; ele foi lançar-se aos pés de seu caridoso anabatista Tiago e fez-lhe uma pintura tão comovente do estado a que seu amigo estava reduzido, que o bom homem não hesitou em recolher o dr. Pangloss; fê-lo tratar-se às suas expensas. Pangloss, no tratamento, só perdeu um olho e uma orelha. Ele escrevia bem e sabia perfeitamente a aritmética. O anabatista Tiago fez dele o seu guarda-livros. Ao cabo de dois meses, sendo obrigado a ir a Lisboa para cuidar dos negócios de seu comércio, levou em seu navio os dois filósofos; Pangloss explicou-lhe como tudo era o melhor possível. Tiago não era de sua opinião. “É preciso”, dizia ele, “que os homens tenham corrompido um pouco a natureza, pois não nasceram lobos e tornaram-se lobos. Deus não lhes deu canhões de vinte e quatro polegadas nem baionetas, e eles fizeram baionetas e canhões para se destruir. Eu poderia listar as bancarrotas, e a justiça que se apossa dos bens dos falidos para frustrar os credores.” “Tudo isso era indispensável”, repetia o doutor caolho, “e as desgraças particulares fazem o bem geral, de modo que quanto mais houver desgraça particular, mais tudo ficará bem.” Enquanto ele arrazoava, o céu escureceu, os ventos sopraram dos quatro cantos do mundo e o navio foi assaltado pela mais horrível tempestade, à vista do porto de Lisboa.

Voltaire, in Cândido ou o Otimismo

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