Terminado
“O Conto Burocrático do Capitão do Porto e do Director da
Alfândega”. Tirando a questão, relativamente insignificante, de
saber se o que escrevi é de facto um conto, creio haver posto na
história muito mais do que a anedota original prometia. Interessante
foi ter repetido, em relato de espírito tão diferente, aquele jogo
do mostrar e do esconder que usei nas primeiras páginas do
“Centauro”, falando, alternadamente, de homem e de cavalo para
demorar a informação de que, afinal, era de um único ser que se
tratava — o centauro. Neste caso do “Conto Burocrático”, o
outro era, simplesmente, o mesmo.
Graças
às tão louvadas e tão caluniadas tecnologias, agora o inefável
fax (por que é que não dizemos, à moda antiga, fac simile?), pude
ler, hoje mesmo, o artigo que o Eduardo Prado Coelho publicou hoje no
Público. A inteligência deste homem — irritante, às
vezes, graças a uma espécie de clareza de visão e de exposição
(agressivas pela eficácia, mas nunca pedantes) que é capaz de nos
fazer parecer tudo óbvio desde o princípio, quando o que nos teria
dado prazer seria ver compartilhadas por ele as dificuldades do nosso
próprio entendimento — soube ler, como ninguém o fez até agora,
In Nomine Dei. Estimam-se aqui os louvores, aliás, como é
norma sua, sempre discretos (“um texto que equaciona com meios
poderosamente pedagógicos todos os problemas da estrutura religiosa
do pensamento”, “numa dessas fórmulas envolventes e certeiras de
que Saramago tem o segredo”, “uma contribuição preciosa para
aqueles que consideram fundamental a defesa da sociedade civil contra
os fanatismos e fantasmas dos fantásticos”), mas o que Prado
Coelho diz de mais importante, e que, sem ambiguidades, põe o dedo
na ferida que eu pretendi mostrar e desbridar com esta peça,
condensa-se em duas perguntas finais: “Como conciliar o princípio
da crença com o princípio da tolerância? Seremos nós capazes de
viver em crença, para sermos um pouco mais que coisa nenhuma, e
aceitarmos a pluralidade inconciliável das crenças?” Ora, se o
meu livro foi capaz de suscitar em Prado Coelho estas interrogações,
dou-me por satisfeito. Fica demonstrado — e que me seja perdoada a
presunção — que algumas interpelações fundamentais também
podem ser feitas do lado de cá. Não deixo, contudo, de
pensar que foi preciso eu ter escrito alguns milhares de páginas e,
depois delas, estas de In Nomine Dei para que o nosso
“conselheiro cultural” (conselheiro em todos os sentidos, não só
no diplomático) se dispusesse a olhar com alguma atenção um texto
meu.
José Saramago, in Cadernos de Lanzarote
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