Assim
transcorreu aquela noite, quando Carey foi embora das Cercanias e
Clay revelou o que havia dentro do embrulho.
Ele
descolou a fita adesiva com delicadeza.
Dobrou
bem a seção de turfe do jornal e o alisou, acomodando-o embaixo da
perna. Só então olhou para o presente em si — uma caixa de
madeira velha —, segurando com as duas mãos o objeto arranhado cor
de avelã. Era do tamanho de um livro de capa dura, com dobradiças
enferrujadas e uma lingueta quebrada.
À
volta dele, as Cercanias pareciam mais vastas do que nunca.
Uma
brisa sutil rondava o lugar.
Que
leveza.
Clay
abriu a pequena tampa de madeira, e ela rangeu como uma tábua de
assoalho, caindo para trás.
Lá
dentro havia outro presente.
Um
presente dentro de um presente.
E
uma carta.
***
Clay
teria lido a carta primeiro, mas, para chegar até ela, precisou
pegar o isqueiro; era um Zippo feito de estanho, quase do tamanho de
uma caixa de fósforos.
Antes
mesmo de pensar em segurá-lo, Clay já estava com o objeto na mão.
Girando-o.
Apertando-o.
Ficou
surpreso ao notar como era pesado, e ao girá-lo outra vez ele viu;
correu o dedo pelas palavras gravadas no metal:
El
Matador no quinto.
Aquela
menina era de outro mundo mesmo.
***
Ao
abrir a carta, ficou tentado a acender o Zippo, a recorrer ao brilho
de sua chama, mas o luar já provia iluminação suficiente.
A
caligrafia pequena e precisa de Carey dizia:
Querido
Clay,
Quando
você estiver lendo isto, já teremos conversado... mas eu só queria
dizer que sei que você vai partir muito em breve e que eu vou sentir
saudade. Já estou com saudade.
Matthew
me contou sobre um lugar remoto e uma ponte que você talvez vá
construir. Tento imaginar do que essa ponte será feita, mas no fim
das contas acho que isso não fará diferença. Queria poder levar
crédito pela frase, mas sei que você vai se lembrar dela, do texto
de orelha de O marmoreiro:
“tudo
que ele construiu na vida era feito não apenas de bronze ou de
mármore ou de tinta, mas dele... e de tudo que havia dentro dele.”
Tenho
certeza de uma coisa:
Essa
ponte vai ser feita de você.
Se
não tiver problema, quero ficar com o livro por enquanto... Talvez
para me certificar de que você vai voltar um dia para buscar, e
voltar também pras Cercanias.
Quanto
ao Zippo, dizem que quem brinca com fogo acaba se queimando, mas
quero te dar o isqueiro de presente mesmo assim, ainda que seja só
para dar sorte e para que tenha algo que o faça se lembrar de mim.
Além disso, um isqueiro até que faz sentido. Clay, argila. E você
sabe o que dizem sobre a argila, não sabe? É claro que sabe.
Com
amor,
Carey
P.S.:
Me desculpe pelo estado da caixa, mas algo me diz que você vai
gostar dela mesmo assim. Pode usá-la para guardar algumas coisas
preciosas. Mal não vai fazer. Coloque mais coisas aí, e não só um
pregador.
P.P.S.:
Espero que goste da gravação.
Bem,
o que você faria?
O
que você diria?
Clay
continuou lá, no colchão, imóvel.
Perguntou
a si mesmo:
O
que, afinal, dizem sobre a argila?
Mas
então, de repente, entendeu.
Na
verdade, compreendeu antes mesmo de chegar ao fim da pergunta, e
permaneceu nas Cercanias por um bom tempo. Leu e releu a carta.
Por
fim, quando rompeu a imobilidade, foi apenas para pegar o isqueiro
pequeno e pesado e encostá-lo nos lábios. Por um momento, quase
sorriu:
Essa
ponte vai ser feita de você.
Não
que Carey apreciasse atos grandiosos ou quisesse receber atenção,
amor, ou sequer respeito. Não. Carey era feita de pequenos gestos,
dando a tudo seu toque descomplicado da verdade — e daquela vez não
fora diferente, ela tinha conseguido:
Deu
a Clay uma dose a mais de coragem.
E
deu um rumo a esta história.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
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